quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Tensões entre modernismo e antimodernismo nas obras de Freud e Jung

Slavoj Zizek


http://zizek.weebly.com/texto-004.html


Jornal "Folha de São Paulo", 07 de julho de 2002


O surpreendente no antagonismo que existe entre Freud e Jung é até que ponto ele continua atual: quase um século depois de seu aparecimento, o ódio mútuo continua forte. Nas últimas décadas, a psicanálise foi a grande perdedora para a enxurrada da psiquiatria farmacológica e cognitivo-behaviorista. Enquanto isso, a teoria junguiana continuou firme e até ampliou sua hegemonia no campo da ideologia popular.
Jung não é apenas um verdadeiro autor best-seller - pelo intermédio de Joseph Campbell, que o popularizou, ele chegou ao ponto de desempenhar papel formador nas origens do universo de "Guerra nas Estrelas".
De onde vem essa popularidade contínua? É simples: Jung promete a reconciliação entre a ciência e a espiritualidade gnóstica, oferecendo uma espiritualidade fundamentada diretamente na pesquisa científica. Em seus escritos, encontramos, lado a lado, referências à física quântica, a pesquisas empíricas, à astrologia, à crença no reino espiritual oculto "mais profundo" etc.
O inconsciente junguiano não é mais aquele dos impulsos sexuais reprimidos, mas o da libido enquanto fluxo de energia psíquica do inconsciente para o consciente, dos poderes espirituais que ultrapassam o ego consciente. Para os junguianos, Freud permanece no nível do naturalismo biológico-sexual vulgar, ao passo que Jung reconciliaria o inconsciente com a espiritualidade "mais profunda".
Contrariando todas as aparências, não é fácil definir a diferença entre Jung e Freud. A primeira associação que fazemos consiste em dizer: "Sim, é claro - contra Freud, Jung afirmou os arquétipos e o inconsciente coletivo". Quando Freud trata de um caso de claustrofobia, ele sempre inicia a busca por alguma experiência traumática singular que esteja na raiz dessa fobia. O medo de ambientes fechados em geral seria baseado numa experiência de enclausuramento. Esse procedimento freudiano deve ser distinguido da busca junguiana por arquétipos: para Freud, a origem não é uma experiência traumática universal e paradigmática (por exemplo, o medo de permanecer encerrado no útero da mãe), mas alguma experiência singular que, possivelmente, tenha uma ligação inteiramente contingente, externa a um espaço fechado. E se eu tiver testemunhado alguma cena traumática que pode ter acontecido em algum outro lugar, num espaço fechado?
Sistema de raízes
Mas a distinção-chave não é essa. Jacques Lacan afirmava que a verdadeira fórmula do materialismo não é "Deus não existe", mas "Deus é inconsciente". Basta recordar que, numa carta escrita a Max Brod, Milena Jesenska escreveu sobre Kafka: "Sobretudo, coisas como dinheiro, Bolsa de Valores, a administração de divisas, máquinas de escrever são, para ele, inteiramente místicas (o que elas efetivamente são, não apenas para nós, os outros)". Devemos ler essa afirmação contra o pano de fundo da análise feita por Marx do fetichismo de produtos: a ilusão fetichista está em nossa vida social real, não na percepção que dela temos.
Um sujeito burguês sabe muito bem que não existe nada de mágico no dinheiro, que ele é apenas um objeto que simboliza um conjunto de relações sociais. Mesmo assim, ele age na vida real como se acreditasse que o dinheiro é uma coisa mágica. Assim, isso nos fornece um insight preciso sobre o universo de Kafka: ele foi capaz de vivenciar diretamente essas crenças fantasmáticas que nós, pessoas "normais", rejeitamos. A "magia" de Kafka é aquilo que Marx gostava de descrever como a "esquisitice teológica" dos produtos.
Esse "Deus é inconsciente" de Lacan não deve ser confundido com a tese "new age" junguiana oposta, de que "o inconsciente é Deus". A diferença entre as duas, a diferença da inversão entre sujeito e predicado, diz respeito à oposição entre verdade e mentira. O "Deus é inconsciente" de Lacan aponta para a falsidade fundamental que fornece a unidade fantasmática de uma pessoa: o que encontramos quando vamos buscar no núcleo mais profundo de nossa personalidade não é nosso verdadeiro "self", mas a falsidade primordial ("proton/ pseudos") - todos nós, em segredo, acreditamos no "grande Outro" (essa oposição é exatamente a mesma que existe entre "o sonho é vida" e "a vida é sonho".
Enquanto a primeira declaração visa à afirmação nietzschiana do sonho como experiência de vida integral, a segunda expressa a atitude de desespero melancólico à la Calderón: o que é a vida senão um sonho vão, uma sombra pálida, sem substância?). Contrastando com ela, "o inconsciente é Deus" significa que a verdade divina reside na profundeza inexplorada de nossa personalidade: Deus é a substância espiritual interna mais profunda de nosso ser, que encontramos quando penetramos em nosso verdadeiro "self".
E, à medida que, nessa perspectiva junguiana, o inconsciente é um grande sistema de raízes escondidas que nutre a consciência, não surpreende que já tenha sido Jung, muito antes de Gilles Deleuze, quem explicitamente o tenha descrito como um rizoma: "A vida sempre me pareceu ser como uma planta que se nutre de seu rizoma. Sua verdadeira vida é invisível, oculta no rizoma. (...) O que enxergamos é a flor, que é passageira.
O rizoma permanece" ["Memórias, Sonhos e Reflexões", ed. Nova Fronteira". O pano de fundo religioso dessa distinção é o espaço que separa o universo judaico-cristão daquele do gnosticismo pagão. Quando, pouco antes da ruptura entre eles, Freud confiou a Jung a presidência da Associação Psicanalítica Internacional, ele o fez em parte como estratégia desesperada para cortar o cordão umbilical judaico da psicanálise e torná-la aceitável aos não-judeus -mas a aposta não deu certo.
Devemos recordar o famoso dito de Heródoto com relação à Esfinge ("os enigmas dos antigos egípcios eram enigmas também para os próprios egípcios"), que aponta para o vínculo estreito entre o judaísmo e a psicanálise: em ambos os casos, o foco é no encontro traumático com o abismo do Outro que deseja.
O encontro do povo judaico com seu Deus, cujo chamado impenetrável os afasta dos caminhos da rotina do cotidiano humano; o encontro da criança com o enigma do gozo do Outro. Essa característica parece distinguir o "paradigma" judaico-psicanalítico não apenas de qualquer versão do paganismo e do gnosticismo (com sua ênfase sobre a autopurificação espiritual interior, sobre a virtude como a realização de nossos potenciais mais profundos) mas também, e não menos, do cristianismo. Afinal, este último não "supera" o caráter de "Outro" do Deus judaico por meio do princípio do amor, da reconciliação/ unificação de Deus e do homem no tornar-se homem de Deus?
Jornada interior
Tanto o paganismo quanto o gnosticismo (a reinscrição da postura judaico-cristã no paganismo) enfatizam a "jornada interior" de autopurificação espiritual, o retorno a nosso verdadeiro eu interior, a redescoberta do eu, formando um contraste claro com a idéia judaico-cristão de um encontro traumático externo (o chamado divino lançado ao povo judeu, o chamado de Deus a Abraão, a Graça inescrutável -todos totalmente incompatíveis com nossas características "inerentes", até mesmo com nossa ética "natural" inata).
Kierkegaard tinha razão: é Sócrates versus Cristo, a jornada interior do relembrar versus o renascimento por meio do choque do encontro externo. Nisso reside, também, o espaço último que vai eternamente separar Freud de Jung: enquanto o insight original de Freud diz respeito ao encontro externo traumático com a Coisa que incorpora o gozo, Jung reinscreve o tópico do inconsciente na problemática gnóstica padrão da jornada espiritual interior de autodescoberta.

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