quinta-feira, 8 de agosto de 2013
ATRAVESSAR PORTAS
Tomaz Amorim Fernandes Izabel
"Das portas na obra de Franz Kafka"
Em uma carta de Benjamin a seu amigo Scholem, o filósofo alemão cita uma
descrição que se aproxima deste espírito escrutinhante do narrador kafkiano. Permitimonos
a citação longa, pois, além de compartilhar o espírito kafkiano, a descrição de A.S.
Eddington faz referência, coincidentemente, à travessia de uma porta. Benjamin conta:
"Quando se lê o seguinte trecho da "Imagem do mundo
oferecida pela física", de Eddington, acredita-se estar ouvindo
Kafka:
‘Estou em pé na soleira da porta a ponto de entrar no meu
quarto. É uma empresa complicada. Primeiro tenho de lutar contra a
atmosfera que pressiona cada centímetro quadrado do meu corpo
com uma força de 1 quilograma. Além disso preciso tentar
desembarcar numa tábua que voa em torno do sol a uma velocidade
de 30 quilômetros por segundo; um atraso só de uma fração de
segundo e a tábua já está a milhas de distância. E essa proeza tem de
ser realizada enquanto pendo de um planeta esférico com a cabeça
voltada pra fora, mergulhada no espaço, e um vento de éter sopra
por todos os poros do meu corpo sabe Deus com que velocidade.
Também a tábua não tem substância firme. Pisar em cima dela
significa pisar em cima de um enxame de moscas. Será que não vou
cair pelo meio? Não, pois quando ouso e piso nela uma das moscas
me acerta e me golpeia para o alto; caio de novo e sou atirado para
cima por outra mosca e assim vai em frente. Posso portanto esperar
que o resultado geral será que eu permaneço continuamente mais ou
menos na mesma altura. Mas se apesar disso, por infelicidade, eu
caísse pelo meio do assoalho ou fosse lançado para o alto com tal
violência que voasse até o teto, esse acidente não seria uma violação
das leis da natureza, mas só uma coincidência extraordinariamente
improvável de acasos... Em verdade é mais fácil um camelo passar
pelo buraco de uma agulha do que um físico ultrapassar a soleira de
uma porta. Trata-se do portão de entrada de um celeiro ou da torre
de uma igreja, talvez fosse mais sábio que ele se resignasse em ser
apenas um homem comum e simplesmente entrasse, ao invés de
esperar que tenham se resolvido todas as dificuldades ligadas a uma
entrada cientificamente irrepreensível.’"49
Em ambas as concepções o real dado é estranhado e desconfiado até seu
absurdo. Em Eddington em busca de uma ordenação objetiva do conhecimento do
mundo, alinhado ao discurso científico, portanto, em Kafka em uma busca subjetiva pelo
sentido da experiência no mundo. A impossibilidade de sintetizar a percepção em um
sistema coerente ameaça a ação do indivíduo moderno em suas atividades mais banais.
O físico que busca a totalidade dos fenômenos causais tem um parceiro no narrador
kafkiano que quer explicitar todas as dobras e solucionar todo o mistério. Desde o
homem do campo que, não compreendendo a arbitrariedade da Lei, se impede de cruzar
a porta, até Josef K. que morre de tentar solucionar os mistérios do Tribunal, o
personagem kafkiano acaba por perecer esquecendo-se, ou sendo impedido, de seguir o
conselho de Eddington: "talvez fosse mais sábio que ele se resignasse em ser apenas um
homem comum e simplesmente entrasse".
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