sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Crise de valores, identidades e niilismo em Clube da luta

 
O Olho da História, n. 14, Salvador (BA), junho de 2010. Daniel Galantin e Fernando Botton





No Filme "Clube da Luta" (Fight Club, David Fincher, 1999), o personagem interpretado por Edward Norton tem uma vida segura, confortável e é viciado em comprar luxuosos móveis por catálogo. Percebemos sua pessoa como um típico exemplar da fauna mais emblemática do capitalismo:

Você compra móveis. E pensa, este é o último sofá que vou comprar na vida. Compra o sofá, e por um par de anos fica satisfeito porque, aconteça o que acontecer, ao menos tem o seu sofá. Depois precisa de um bom aparelho de jantar. Depois de uma cama perfeita. De cortinas. E de tapetes. Então cai prisioneiro de seu adorável ninho, e as coisas que antes lhe pertenciam passam a possuir você. (PALAHNIUK, 2000, p. 19)

Há no filme uma ácida crítica ao modelo de vida consumista e capitalista. O personagem de Norton é representado por um homem de classe média/alta portador de uma sanção social que lhe confere um posto de "masculinidade hegemônica". Segundo a concepção de Robert Connell existem múltiplas e plurais masculinidades, mas somente uma delas obtém o posto socialmente sancionado de "masculinidade hegemônica". Trata-se de um modelo de masculinidade que se enquadra no discurso social considerado como "positivo" (usamos positivo no sentido valorativo). Para o autor, nos últimos duzentos anos, o padrão hegemônico de masculinidade vem se deslocando para "uma masculinidade mais racional, mais calculativa, melhor ajustada a uma economia industrial-capitalista e a um estado burocrático" (CONNELL, 1995, p. 192) exatamente como vive o personagem interpretado por Norton.

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Observamos que há por parte do personagem de Norton a busca por uma fuga psicológica de um mundo cheio de simulacros e completamente vazio de sentido.

A fuga, nesse caso, não é diretamente relacionada à masculinidade, mas sim de um modelo de vida capitalista/consumista que o leva a completa alienação. A questão é que nessa fuga, o personagem de Norton cria em Tyler (Brad Pit) um estilo de vida oposto ao que vivia antes, e esse desabafo contra a sociedade do consumo é discurso de Tyler, criatura que subverte todos os valores sociais antes vividos pelo criador. Nesse momento também podemos perceber em Tyler a criação de um modelo de masculinidade diametralmente oposto ao que o personagem de Norton vivia.

Essa troca de valores sociais, culturais, morais e psicológicos também foi seguida por uma leva de homens que integraram o Clube da Luta, assim o Clube tem exatamente um público que busca se libertar dos fardos de uma sociedade capitalista, monetarista, excludente, consumista, moralista e tradicionalista como é os EUA. Nesse sentido, o intuito do Clube da Luta é bem mais semelhante ao de um grupo de apoio psicológico do que um ringue de violência gratuita.

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O Clube da Luta pôde ser considerado como uma via para subverter a lógica da saúde e defesa do corpo, a lógica das prescrições, da pacificidade social e os modelos de vida do consumismo fetichista. Mas além disso, o Clube serve como um local para a desconstrução coletiva de problemas causados pelas dificuldades da criação de uma pretensa identidade masculinidade de seus membros

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Percebemos que o que está em jogo é uma tentativa de definição psicológica e ontológica de masculinidade entre o "ser" e o "não ser" homem [se é que isso realmente existe]. Nesse sentido o Clube da Luta vem dar as respostas para os problemas de construção subjetiva do gênero masculino, sendo o enfrentamento, a luta, o ganho de cicatrizes e "o fundo do poço" as formas de "se sentir vivo", de fugir dos problemas criados pela sociedade do consumo e pelas crises geradas pelo distanciamento da formação viril de uma masculinidade idealizada.

Todas as contradições do personagem interpretado por Norton são evidenciadas justamente pelo personagem de Marla, que sempre acaba intensificando as crises dele, ao mesmo tempo em que mede forças e "vence" Tyler. Ou seja, o confronto entre a dual e bipolar cosmologia feminino-masculino delimita o início e o fim das crises sofridas pelo também dual e bipolar personagem.

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Nesse momento, propomos uma interpretação do filme "Clube da Luta" (Fight Club, David Fincher,1999) a partir de um diálogo com os escritos de Friedrich Nietzsche – principalmente quando estes versam sobre a questão do niilismo.

O filme já foi alvo de diversos trabalhos acadêmicos, pois apresenta uma atmosfera violenta e traz ácidas críticas à sociedade ocidental contemporânea, como os problemas de uma sociedade onde o consumo é associado à felicidade, onde a crise de identidade é assunto corriqueiro (nesse caso identidade de gênero), e onde a violência é encarada sempre como algo fundamentalmente ruim, uma falha humana a ser corrigida. Dentre os trabalhos sobre o filme, podemos citar o artigo "A era da frustração: melancolia, contra-utopia e violência em O clube da luta", do professor do departamento de sociologia da PUC-RJ, Paulo Jorge Ribeiro (RIBEIRO, 2002). O filme também foi citado pelo filósofo e psicanalista esloveno Slavoj Zizek no programa "Roda-viva" exibido no dia 02 de fevereiro de 2009 na tv cultura, onde o filósofo comentou ironicamente: "se você quer saber se um amigo seu é um liberal, pergunte para ele sobre o filme clube da luta. Se ele disser que não gostou, é muito provável que ele seja" .

Este filme reaqueceu o debate sobre a censura em regimes liberais, sobre as relações entre política, arte, e os códigos morais das sociedades contemporâneas. Na Inglaterra algumas cenas do filme foram censuradas pelo British Board of Film Classification, órgão responsável pela classificação da faixa etária dos filmes exibidos no país. Lá, o filme só foi lançado em sua versão completa em março de 2007. Nos EUA também houveram protestos contra o filme e o suposto culto à violência que ele carregaria.

Inicialmente percebemos que muitos daqueles que analisaram Clube da Luta, deixaram de lado o criador principal do enredo: o escritor norte-americano Chuck Palahniuk. Assim como deixaram de lado o fato de ele ser membro de uma organização de viés anarquista denominada "Cacophony Society". Esta organização diverge do anarquismo do século XIX pois, não se preocupam em buscar operar a passagem da sociedade do capitalismo diretamente para o comunismo, sem o estágio intermediário do socialismo. No próprio site oficial do grupo, não encontramos referência ao anarquismo, embora a descrição de "uma rede frouxamente estruturada formada por indivíduos que partilham um gosto por barulho cultural: sistemas de crença, estéticas e modos de vida que trazem uma nota de discordância para com as harmonias predominantes"1 possa nos permitir o estabelecimento de algumas relações. As semelhanças

com a subversão anarquista tornam-se mais visíveis quando sabemos que John Law, artista norte-americano e um dos fundadores da Cacophony é profundamente influenciado pelos movimentos dadaísta e situacionista, o que ajuda a explicar como o grupo também não pode ser colocado sob o viés anarquista clássico.

Tentaremos estabelecer um paralelo do filme com algumas ideias de Nietzsche, principalmente com relação ao tema do niilismo. O anarquismo entra nessa análise esvaziado de seu conteúdo clássico, de teóricos como Bakunin, Proudhon, Malatesta, Kropotkin e outros clássicos. Porém está presente com alguns ecos da obra de Max Stirner, principalmente no exceto "Revolução e Insurreição", presente na obra "O único e sua propriedade" (STIRNER, 2004), à qual tive acesso através de "Os grandes escritos anarquistas" (WOODCOCK, 1986). Gilles Deleuze, em "Nietzsche e a Filosofia" (s.d.), traçou alguns paralelos entre Nietzsche e Stirner os quais são de grande valor para a proposição desta interpretação e estão presentes nos excetos "contra o hegelianismo" e "as transformações da dialética".

No entanto, voltamos a destacar que essa interpretação é como uma chave para abrir uma porta; outros que usarem outra chave como a psicanálise, por exemplo (alguns trabalhos relacionaram o personagem de Brad Pitt com o Id do personagem de Edward Norton), abrirão a mesma porta, porém talvez vejam outra paisagem.

Nietzsche não desenvolveu a exaustão o tema do niilismo, tendo dedicado-se a ele principalmente a partir de 1881, boa parte de seus escritos sobre tal, foram publicações póstumas. Este tema faz parte da crítica à modernidade ocidental construída pelo filósofo alemão praticamente em toda a sua obra. Aqui não será possível fazer uma caracterização completa do niilismo. Mas, grosso modo, poderíamos defini-lo, através da obra nietzschiana, como o longo processo de desvalorização dos valores estabelecidos; processo que tende a se intensificar na sociedade ocidental moderna. Podemos dizer que esse fenômeno se desenvolve principalmente a partir da interpretação moral da existência, interpretação que se radicaliza em direção à sua consumação, aqui entendida como auto-supressão. Nietzsche traça a metáfora do niilismo como um hóspede: "o niilismo está à porta: de onde vem esse mais inquietante de todos os hóspedes?" (NIETZSCHE, 2008, §1 p.27). O autor de "Genealogia da Moral" deixa claro que o niilismo não é resultado de catástrofe social, de qualquer degeneração fisiológica, ou seja, não podemos pensar o niilismo enquanto consequência de fatores cataclísmicos. Nietzsche enxerga o niilismo como algo muito mais próximo da cultura ocidental, como que intrínseco a esta, e, como um bom anfitrião, parece ser aquele que abre as portas para este hóspede. Isso permite que Nietzsche coloque o niilismo como "a lógica de nossos grandes valores e ideais pensada até o fim"(NIETZSCHE, 2008, §4 p.24).

Com a morte de Deus – constatada no §125 de Gaia Ciência (NIETZSCHE, 2007), um dos eventos fundamentais da modernidade – desaparece também o mundo supra-sensível e a divisão antes estabelecida entre este e o mundo sensível. Porém já nesse aforismo fica claro que os homens não entenderam a gravidade de tal acontecimento, como é o caso dos ateus (os quais podem ser encarados como os pós-hegelianos como Feuerbach ou os positivistas) que troçam do homem louco porque já haviam preenchido o trono vazio de Deus com novos ideais, os ideais modernos. O niilismo pode ser entendido a partir da relação que os homens estabelecem com esse acontecimento e suas conseqüências. Não é necessário concordar com toda a leitura heideggeriana de Nietzsche a qual coloca a vontade de potência como uma forma do ser e Nietzsche como ainda um metafísico, mas acreditamos que Heidegger deixa clara a tragédia que o homem louco anunciou.

Se Deus morreu, enquanto fundamento supra-sensível e enquanto meta de tudo o que é efectivamente real, se o mundo supra-sensível das idéias perdeu a sua força vinculativa, e sobretudo a sua força que desperta e edifica, então nada mais permanece a que o homem possa se agarrar, e segundo o qual possa se orientar (HEIDEGGER, 1998, p.251).

A exemplo de Clademir Luís Araldi no artigo "Para uma caracterização do niilismo na obra tardia de Nietzsche" (1998), poderíamos dividir o niilismo em incompleto, e completo, sendo que este último ainda poderia ser ativo ou passivo. No niilismo incompleto tenta-se preencher a morte de Deus com novos ideais modernos laicizados, como o progresso histórico, a ciência, a moral laicizada e a política em suas diversas facetas. Ou seja, colocam-se esses ideais no lugar vazio de Deus, "há a tentativa de superar o niilismo sem transvalorar os valores" (ARALDI, 1998, p.86). Esse parece ser o lugar de onde fala o personagem de Edward Norton antes de conhecer o de Brad Pitt. O jovem e bem sucedido yuppie, que trabalha numa grande corporação e tem um salário invejável. Vivia tranquilamente em seu condomínio de classe média alta e preenchia sua vida comprando as novidades tecnológicas e da moda, sempre renovando suas roupas e o design interior do apartamento com os lançamentos anunciados em catálogos. Substituição de Deus pelo Mercado e consumo. Este momento é pouco mostrado durante o filme, apenas relatado por Edward Norton. É o momento anterior à crise de insônia.

No niilismo completo há uma autoconsciência do homem sobre si próprio e sobre a sua nova situação após a morte de Deus. Essa forma de niilismo pode ser vista como a conseqüência dos valores tidos até agora como superiores. Este seria o momento onde o homem encara a terrível face do sem sentido da existência, da ausência de finalidades superiores, de valores absolutos, enfim, de um portoseguro onde possa amparar-se. Porém ainda não há uma potência criativa, nesse momento ainda não se consegue criar valores afirmativos, mas já não se mascara mais a vontade de nada (outra definição do niilismo) através de ideais. Esse niilismo pode ser passivo, quando "entendido como resignação e quietude conformista de animal de rebanho" (ARALDI, 1998, p.86), a qual remete a uma doença da vontade. Talvez os niilistas passivos fossem os frequentadores de grupos de apoio mútuo, uma vez que eles estão sempre trabalhando para aceitarem seu destino com resignação quase budista, e no caso dos que não são doentes terminais, estes buscam basicamente retornar à "vida social saudável".

Mas também pode existir o niilismo ativo, sendo este o que ocuparia a maior parte do filme. Segundo Araldi ele pode ser entendido "como inquietude e vontade de destruir" (ARALDI, 1998, p.86). O personagem de Brad Pitt criado pelo de Edward Norton é justamente aquele que o conduz do niilismo incompleto para o niilismo completo e ativo. Porém esta caminhada não é tão simples assim, como pode ser visto todo momento a partir de quando Brad Pitt surge no filme. Ele está a toda hora levando Edward Norton para os caminhos da libertação de si e da aceitação da ausência de sentido da existência através da violência, inicialmente consentida entre semelhantes, como é o projeto inicial do Clube da Luta, ou numa das cenas emblemáticas do filme, mais ao final, onde Tyler Durden (Brad Pitt) dirige numa pista em alta velocidade sem colocar as mãos na direção do carro, metáfora máxima da aceitação do acaso – até provocar um acidente.

Neste ínterim intensificam-se as desavenças entre os personagens de Pitt e Norton devido à relação de Marla Singer (Helena Bohan Carter) com Tyler (Pitt) – sendo praticamente a única mulher do filme, ela é um dos elementos principais e que mais chama atenção.

A criação do "Project Mayhem" e os rumos que este começa a tomar também podem nos dar indícios do perigo que tal forma de niilismo pode apresentar. Este sub-grupo do Clube da Luta parece

atuar de forma insurrecional, conforme a definição de insurreição, diferenciada de revolução, que é apresentada por Max Stirner em "O único e sua propriedade":

Revolução e Insurreição não devem ser consideradas sinônimos. A primeira consiste na derrubada das condições ou do status vigentes, do Estado ou da sociedade e, como tal, é um ato político ou social; a segunda traz, como conseqüência inevitável, uma transformação nas circunstâncias que entretanto não são provocadas por ela mas pela própria insatisfação dos homens. A insurreição não é um levante armado mas um levante de indivíduos, uma tomada de posição que não tem qualquer compromisso com as conseqüências que dela poderão advir. A Revolução visava obter novas condições de vida; a insurreição nos leva a não aceitar mais a idéia de que alguém pode determinar as condições sob as quais deveremos viver, mas no induz a determinar por nós mesmos essas condições, sem depositar grandes esperanças nas instituições. Ela não é uma luta contra a ordem estabelecida, já que seu sucesso determinará o fim dessa ordem; seu objetivo é fazer com que eu mesmo a abandone pois no memento em que eu o fizer, ela estará morta e já terá começado a apodrecer. Meu objetivo não é, portanto, derrubar a ordem estabelecida, erguendo-me acima dela; meus propósitos e atos não têm qualquer cunho político ou social mas, na medida em que dizem respeito apenas à minha própria pessoa, são puramente egoístas. (STIRNER, 2004, p. 123-124).

Em "Nietzsche e a Filosofia", Deleuze coloca que a dialética não lida com a diferença, apenas com a oposição entre elementos abstratos, e assim ignora aquela diferença que produz o efeito de oposição (DELEUZE, s.d., p.237). Todas as insuficiências da dialética teriam em comum o fato de ignorarem a questão "Quem?". Com o anuncio de Fuerbach do homem tomando o lugar de deus (niilismo incompleto por excelência), deixa-se de lado as questões: "Mas quem é Homem e o que é Deus? Quem é particular, o que é universal?"(DELEUZE, s.d., pp.238-239). Segundo Deleuze, com a dialética o homem que torna-se Deus é o homem reativo, movido pela vontade de nada. Para Deleuze, Stirner foi quem levou a dialética ao seu limite ousando perguntar "Quem?"; ele chega a encontrar uma referência indireta a Stirner no trecho "Do homem superior", de Zaratustra. Para Stirner "como o homem apenas representa outro ser supremo, o ser supremo apenas sofreu, em suma, uma simples metamorfose, e o temor do Homem é apenas um aspecto diferente do temor a Deus" (DELEUZE, s.d., p.240). Para Stirner, a Ideia, a consciência, a espécie e a essência humana são negadas como alienações semelhantes ao Estado e à religião. Tudo isso é negado no "EU, que não se reconcilia com nada, porque aniquila tudo, pelo seu próprio poder (...). Superar a alienação significa então puro e frio aniquilamento, retomada que não deixa subsistir nada daquilo que retoma (...) O eu que aniquila tudo é também o eu que não é nada" (DELEUZE, s.d., p.242). E justamente nesse sentido Deleuze coloca que Stirner ainda é demasiado preso à dialética, pensando apenas em termos de alienação, propriedade e reapropriação. "Stirner é o dialético que revela o niilismo como verdade da dialética" (DELEUZE, s.d., p.242). Com isso ele não percebe onde esse pensamento conduz: ao eu que é nada, ao niilismo, niilismo completo e, no caso do filme, ativo. Esse é o caminho pelo qual Brad Pitt tenta conduzir Edward Norton, guiado por uma vontade de destruição que é uma vontade de nada.

O Project Mayhem logo assume características protofascistas como a dissolução do dos indivíduos frente ao grupo2, o culto à personalidade do líder, e suas leis sagradas (1- You don´t ask questions; 2- You don´t ask questions; 3- No excuses; 4- No lies; 5- You have to trust Tyler (PALAHNIUK, 1997, p. 112). Logo também fica claro que a vida de Marla está em perigo por ela ter descoberto a organização. Com a vida de Marla em perigo e os planos de destruição de prédios de companhia de cartões de crédito, o narrador decide que a destruição proposta pelo seu outro Eu está indo longe demais e começa a agir contra seus próprios planos.

Aqui surge o questionamento final sobre o filme e que felizmente não tem respostas óbvias: o narrador consegue sair da destruição e criar algo? Ele consegue deixar de ser movido por uma vontade de nada e de destruição, deixar o niilismo completo e ativo para finalmente abraçar o "niilismo do êxtase"? Conforme explicado por Clademir Araldi "o tipo de homem afirmativo não se detém na negação (tudo é vão) e suas conseqüências : a derrocada de todo sentido e a decadência fisiológica. Desse modo, no niilismo do êxtase há na necessidade de destruir ativamente, visto que a destruição é a condição para a criação de novos valores" (ARALDI, 1998, p.88). Talvez ainda coubesse perguntar se o narrador poderia até mesmo sair do niilismo, tornando-se um "niilista consumado" conforme Nietzsche enxerga a si mesmo no prefácio de Vontade de Poder: aquele que "todavia, já viveu, ele mesmo, o niilismo em si até o fim, - que o tem atrás de si, abaixo de si, fora de si..." (NIETZSCHE, 2008, §3 p.23).

Talvez pudéssemos ver alguma reposta positiva através da reconstrução da relação entre o narrador e Marla, ou em suas últimas palavras para Pitt "meus olhos estão abertos". Certamente o narrador não será mais nem como antes e nem como durante seu contato com seu outro Eu. Da mesma forma ele deixou de ver Marla como uma semelhante (como ele a enxergava no início do filme) e passou a relacionar-se com ela entendendo-a como intrinsecamente diferente dele. Os prédios são destruídos, salvo aquele onde ele, Marla e outros membros do Project Mayhem estão. Mas ainda assim dizemos que apresentar uma resposta já é delimitar demasiadamente a obra de Nietzsche no filme, e não nos sentiríamos muito bem com isso. O filme, e certamente o livro, não são projetos de explicação das fases do niilismo segundo o que Nietzsche escreveu, ou manuais de práticas para nos tornarmos "espíritos-livres" exercitando o que há de "além-do-homem" em nós. Entendê-los dessa maneira seria agir como aqueles que simplesmente imitaram o filme e criaram outros clubes da luta3. Porém o filme instiga seus telespectadores a um profundo questionamento cultural; a própria forma de filmagem, onde por diversas vezes os atores falam olhando diretamente para a câmera, ou seja, para o público, quebrando a pretensa neutralidade que a filmagem carregaria, é um dos elementos que mais provocativos do filme. É como se o filme nos desafiasse com sua carga crítica, porém não apresentasse qualquer orientação sobre "o que fazer" – nisso acreditamos que há outra semelhança com os escritos de Nietzsche. Por tudo isso certamente podemos dizer que o filme apresenta críticas com as quais, mais de 10 anos depois, ainda nos debatemos.

Comentários finais
A atualidade do filme Clube da Luta é deveras evidente, especialmente pela problematização de tensões e crises da contemporaneidade. Os dois elementos que aqui analisamos se enquadram num contexto mais amplo e articulado que poderíamos nomear de pós-modernidade ou hiper-modernidade, onde as angustias da modernidade foram continuadas em experiências contemporâneas. Nessa compreensão, Le Rider mostra que as crises de identidades e dos valores – estudadas na Viena da virada do século XIX ao XX – têm muitos elementos em comum com questões contemporâneas da segunda metade do século XX. Ao compreender que as transformações históricas se relacionam intimamente com as subjetividades, as crises advindas da modernidade também afetam as identidades masculinas: "O mal-

estar na civilização científica e técnica se traduz pelo sentimento de uma perda do ser e a busca de uma restauração da comunidade original do eu e do mundo, do microcosmo ligado com a totalidade [...] esta crise de identidade individual se traduz por uma crise do elemento masculino [...]." (LE RIDER, 1993, p. 135). Como visto, esse "mal estar" é marcadamente presente no filme comentado. Cabe lembrar que o próprio Nietzsche é tido por Le Rider como uma das chaves principais para compreender a modernidade vienense, em suas crises de identidade e "o esgotamento e o processo quase místico de dissolução de uma cultura, o desmoronamento de seu edifício complexo de valores" (BROCH apud LE RIDER, 1993, p. 499).

A estetização e a experimentação da existência propostas por Nietzsche perpassam as experiências tanto dos vienenses do final do XIX quanto do personagem principal de Clube da Luta, e acreditamos que também perpassam as nossas próprias vivências contemporâneas. Em ambos os casos as identidades (contemporâneas e vienenses) são extremamente fluidas e dinâmicas. Da mesma forma é necessário ressaltar os perigos da busca por identidades fixas e rígidas.

O segundo terço do século XX restaurou, apaixonadamente, essas identidades perdidas; os fascismos e o nazismo reconstruíram a ‘natureza feminina’ [e, conseqüentemente a masculina] para dominá-la e ‘o judeu’ para aniquilá-lo. Depois dessas regressões e dessa barbárie, nossa cultura viveu, ainda, durante muito tempo sob o império dessas certezas reencontradas, recolocou na ordem do dia os projetos de emancipação concebidos no tempo das Luzes, e repetiu algumas figuras das ‘lutas’ do século dezenove. (LE RIDER, 1993, p. 501).

Acreditamos que a multiplicidade e a fluidez das identidades contemporâneas são antes possibilidades de criação de novas experiências e vivências desde que não sejam solapadas pela hegemonia do discurso único.

Parece que nosso fim de século, cansado de reviver os séculos dezoito e dezenove, encontra-se em uma situação próxima da que caracterizara a modernidade vienense. Novamente, as identidades sexuais se mesclam e ‘o judeu’ se torna imaginário. O exemplo vienense demonstra que essa indeterminação pode-se revelar extremamente fecunda e possibilitar combinações de variedade e riqueza jamais vistas, caso uma nova reação não chegue para interromper o jogo pós-moderno da invenção do si. (LE RIDER, 1993, p. 501).

Referências bibliográficas

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DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Porto: Ed. Rés, s.d.

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RIBEIRO, Paulo Jorge. A era da frustração: Melancolia, contra-utopia e violência em Clube da Luta.In: Revista de Antropologia, v. 45, n. 1, São Paulo: EDUSP, 2002, p. 221-241.

STIRNER, Max. O Único e sua Propriedade. Lisboa: Antígona, 2004.

WOODCOCK, George. Os grandes escritos anarquistas. São Paulo e Porto Alegre: L&PM, 1986


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