domingo, 31 de março de 2013

OBRA ABERTA



Obra aberta é um livro escrito por Umberto Eco, que reúne uma coletânea de ensaios a respeito das formas de indeterminação das poéticas contemporâneas, tanto em literatura, como em artes plásticas e música. Sua primeira edição data de 1962, momento em que a arte europeia assistia à proliferação de obras de arte indeterminadas com relação à forma, convidando o intérprete a participar ativamente na construção final do objeto artístico.


O Conceito



Na sua introdução à segunda edição, Umberto Eco é bastante sugestivo. Dela decorrem três conclusões fundamentais:



    toda obra de arte é aberta porque não comporta apenas uma interpretação;

    a "obra aberta" não é uma categoria crítica, mas um modelo teórico para tentar explicar a arte contemporânea;

    qualquer referencial teórico usado para analisar a arte contemporânea não revela suas características estéticas, mas apenas um modo de ser dela segundo seus próprios pressupostos.



Em "A poética da obra aberta", a intencionalidade é considerada um pressuposto da obra aberta. Além de toda obra possibilitar várias interpretações, a obra aberta apresenta-se de várias formas e cada uma delas se submete ao julgamento do público. À medida que o autor cria várias obras, deixando ao executante escolher uma das seqüências possíveis e definir, por exemplo, a duração dos sons, a própria execução da obra torna-se um ato de criação. Nesse sentido, autoria e co-autoria acabam se confundindo de tal maneira que já não se pode falar de uma obra de arte, mas de várias "obras". Cumpre lembrar que, apesar de seu caráter indeterminado, que pode culminar num sem-número de configurações formais, ainda assim, segundo a visão de Eco, se pode falar de "obra", única e individual, na medida em que as várias possibilidades combinatórias estão de antemão previstas pela estrutura mesma da obra que se propõe aberta. Em todo caso, a antinomia é bastante clara, servindo de ponto de discórdia entre os leitores e comentadores do livro.



Na avaliação de Umberto Eco, as motivações para a poética da obra aberta podem ser encontradas nas teorias da relatividade, na física quântica, na fenomenologia, no desconstrucionismo, entre outras. De acordo com o semioticista italiano, essas teorias científicas e essas correntes filosóficas modernas promovem uma espécie de "descentralização", de ampliação dos horizontes imagináveis para a concepção da realidade. Nesse sentido, diante do reconhecimento de que as poéticas clássicas (identificadas, aqui, com as poéticas anteriores à poética da abertura) não são mais capazes de lidar com a pluralidade de sentidos do mundo, nem tampouco com o seu caráter multifacetado, os artistas da obra aberta se lançam na busca de uma linguagem artística capaz de promover no intérprete justamente esse sentimento de descentralização e pluralidade.



Além desse primeiro sentido do conceito de obra aberta, há, porém, segundo Eco, uma segunda categoria de obras que podem ser denominadas "abertas": aquelas que são determinadas quanto à forma, mas indeterminadas quanto ao conteúdo. Nesse caso, poder-se-ia dizer que a abertura é efeito da combinatória de signos que formam a estrutura da obra, que, evocando os mais diversos sentidos, permitem ao intérprete fazer, durante a fruição, as mais diversas conjecturas interpretativas. Dito de outro modo, a forma, acabada em si, é dotada de uma estrutura que desafia constantemente o intérprete a construir sentido, mediante inferências a respeito de como a obra foi criada e como ela pode ser interpretada dentro de um determinado contexto. De certo modo, portanto, a reflexão da relação entre a indeterminação de sentidos e a participação ativa na construção dos mesmos por parte do intérprete, ponto crucial da teoria semiótica de Eco nas suas obras sobre os limites da interpretação, estão, de alguma forma, presentes em Obra aberta.



Cumpre lembrar que, de algum modo, toda e qualquer obra de arte tem em si a abertura como característica fundamental. Isso se deve ao fato de que Eco reconhece na linguagem da arte a pluralidade de sentidos como traço definidor, em contraposição à linguagem cotidiana. Sendo assim, devemos distinguir, portanto, duas categorias de abertura: 1) a abertura como definição da arte; e 2) a abertura como intenção da obra (decorrente da intenção do autor, mas não necessariamente dependente dela), que caracteriza o surplus de abertura que define o conceito de obra aberta.

A Estrutura



Umberto Eco descreve o procedimento de abertura da obra aberta a partir de dois horizontes teóricos distintos: a teoria da informação e a semiótica. Com relação à teoria da informação, Eco sustenta que a obra aberta é aquela que aumenta a entropia da mensagem, fazendo com que o receptor da mensagem disponha de inúmeras possibilidades inferenciais a partir de um universo de escolhas. Com efeito, de acordo com a teoria da informação, uma mensagem é mais redundante quanto menores forem os percursos possíveis que levam desde a infinita possibilidade de escolha para formar uma mensagem na fonte até a redução considerável dessas possibilidades inferenciais quando da composição da mensagem. Em contraposição, portanto, a obra aberta conserva, na sua forma final enquanto mensagem, uma entropia básica que indetermina os caminhos possíveis.



No que tange à semiótica, Eco observa a criação da abertura na escolha deliberada do autor por aquilo que ele denomina mensagens estéticas (em oposição às mensagens referenciais): partindo de um horizonte de expectativas mais ou menos claro, em que se domina não só os aspectos semânticos de um signo, mas também a sua inserção dentro dos contextos possíveis (o que se poderia entender por uma pragmática codificada), a autor busca romper com os paradigmas, criando e combinando mensagens que contradizem o hábito dos usuários de um código. Isso cria, no entender de Eco, um efeito de constrangimento por parte do intérprete, que se vê obrigado a decodificar a mensagem segundo princípios semióticos inéditos. Nesse sentido, a obra aberta se configura, do ponto de vista da semiótica, como aquela mensagem que contraria os hábitos interpretativos dos usuários de um código, fazendo com que eles se lancem, para fruir a obra, numa descoberta ativa de significados possíveis, respeitando sempre uma dialética constante entre o código compartilhado, a estrutura da obra e a intenção do intérprete...

Repercussões



Naturalmente, Obra aberta gerou inúmeras interpretações e apreciações equivocadas ou levianas: alguns viram nesse livro uma defesa do pragmatismo e do relativismo absolutos, na medida em que, erroneamente, segundo Eco, identificaram no texto uma postura de acordo com a qual não há limites para a interpretação de um texto ou obra, ou que uma obra pode, em princípio, levar a quaisquer interpretações. Mais tarde, Eco tratou de corrigir o equívoco, dedicando-se ao tema da cooperação interpretativa e os limites da interpretação, durante as décadas de 1980 e 1990. Outros, ainda, destacaram o conceito de obra aberta de seu pano de fundo filosófico-estético e o aplicaram a outras disciplinas alheias à reflexão de Eco. De qualquer forma, o livro teve (e tem) uma grande aceitação no universo acadêmico mundial e serviu a artistas de todo o mundo como uma espécie de "manifesto teórico" de um tipo de arte que primava pelo experimentalismo como valor. É o caso do Grupo 63, um grupo de artistas formado na Itália na década de 1960, e dos poetas, ensaístas e críticos brasileiros ligados ao Concretismo, a saber, Haroldo de Campos, Décio Pignatari e Ferreira Gullar (que mais tarde abandonou o grupo), de cujo interesse decorreu vários livros e ensaios, entre os quais A Arte no horizonte do provável, de Haroldo de Campos, e Informação, linguagem, comunicação, de Décio Pignatari.






(...)







No âmbito das pesquisas levadas a efeito pelo Movimento Modernista de São Paulo, e a fim de definir a problemática fundamental de um trabalho poético em curso ,Haroldo de Campos publicava em 1955 o artigo intitulado ‘’A    OBRA DE ARTE ABERTA’’: Neste texto, o poeta paulista procura delinear ‘’o campo vetorial da arte de nosso tempo’’, com base na conjunção de obras como ‘’um Coup de Dés de Mallarmé, o Finnegans Wake de Joyce, os Cantos de Enzra Pound, os poemas espaciais de e.e. cummings, a m´usica de Webern entre outras...



(...)





Trata-se portanto da tentativa de estatuir uma nova ordem de valores que extraia seus próprios elementos de juízo e os seus próprios parâmetros da análise do contexto no qual a obra de arte se coloca, movendo-se em suas indagações para antes e depois dela, a fim de individuar aquilo que na verdade interessa:não a obra-definição, mas o mundo de relações de que essa se origina; não a obra-resultado, mas o processo que preside a sua formação; não a obra-evento, mas as características do campo de probabilidades que a compreende. Este, segundo ECO, é um dos aspectos fundamentais do DISCURSO ABERTO,que é típico da arte, e da ARTE DE VANGUARDA em particular.



(...)



sábado, 30 de março de 2013

Mito e arquétipo

No ensaio «La pampa y el suburbio son dioses», publicado no livro El
Tamaño de Mi Esperanza, de 1926, Borges fala do caráter arquetípico do
pampa e dos arrabaldes e os elege como as únicas contribuições genuinamente
argentinas à literatura mundial. Ou seja, se havia algo peculiar à
cultura argentina, deveria ser procurado na vastidão do pampa ou na desordem
dos subúrbios:
De la riqueza infatigable del mundo, solo nos pertenecen el arrabal y la
pampa (Borges 2000:30).
Nesse texto, Borges define o caráter arquetípico como relativo a «coisas
não sujeitas às contingências do tempo». Anos depois, no conto de mesmo
nome, classificaria el Sur como «un mundo más antiguo y más firme»
(Borges 1995:271), ou seja: um território fora do tempo como o conhecemos,
talvez atemporal e ancestral. Borges também escreve que o pampa e
os subúrbios são como «totens, coisas que são substanciais a uma raça ou
indivíduo». Observe-se aí o caráter mítico que Borges começa a imprimir a
esses dois cenários argentinos na medida em que os qualifica como arquétipos.
Para Carl Gustav Jung, de quem Borges era leitor1, arquétipos são
parte do conteúdo imagístico e simbólico do inconsciente coletivo, eviden

ciado nos mitos e lendas de um povo. «O conceito de arquétipo, que constitui
um correlato indispensável da idéia de inconsciente coletivo, indica a existência
de determinadas formas da psique, que estão presentes em todo tempo e
em todo lugar» (Jung 2002:53). Borges também pode ter se inspirado nos
conceitos gregos para falar de arquétipos. A doutrina fundamental de Platão
prega a existência de formas arquetípicas ou idéias. O discurso de Borges
coincide com o conceito platônico, para quem os arquétipos manifestam-se no
tempo e são atemporais, constituindo a essência intrínseca das coisas.
No mesmo ensaio, Borges elege Martín Fierro, de José Hernández,
as dois Santos Vega* e Facundo, de Domingo Faustino Sarmiento, como
pontos cardeais literários da Argentina. E enumera as crenças fundamentais
da cultura argentina:
Somos unos dejados de la mano de Dios, nuestro corazón no confirma ninguna
fe, pero en cuatro cosas sí creemos: en que la pampa es un sagrario, en que
el primer paisano es muy hombre, en la reciedumbre de los malevos, en la
dulzura generosa del arrabal (Borges 2000:30).
Esses elementos começam, pouco a pouco, a ser elaborados pelo
escritor para assumir um papel definitivo em seu universo ficcional e poético.
Borges inicia a concepção do que chamaremos de «Sur mítico», um
espaço imaginário que abarca pampa e subúrbio, gaúchos e personagens
suburbanos e, mais do que tudo, traduz sentimentos partilhados pelos habitantes
da região do Prata.

Marlova Gonsales Aseff, Borges e o Sur mítico

    (...)

    Borges dibujó uno de los paradigmas de la literatura argentina: una literatura
    construida (como la nación misma) en el cruce de la cultura europea con la
    inflexión rioplatense del castellano en el escenario de un país marginal (Sarlo
    1995:51).
    Como bem observa Sarlo, o autor também utilizou em vários momentos
    de sua obra a concepção de fronteiras (orillas) para demarcar a separação
    entre civilização (as coisas da cidade) e o «Sur». Essa concepção começou
    a formar-se nos anos 20 e se fez presente na produção literária de
    Borges até o fim.
    Borges trabajó con todos los sentidos de la palabra «orillas» (margen, filo,
    límite, costa, playa) para construir un ideologema que definió en la década
    del veinte y reapareció, hasta el final, en muchos de sus relatos (Sarlo 1995:
    52).
    Um exemplo desse transpor de fronteiras é o personagem Juan
    Dahlmann, que sai da zona civilizada da biblioteca e acaba num território
    regido por outras leis:
    Nadie ignora que el Sur empieza del otro lado de Rivadavia. Dahlmann solía
    decir que ello no es una convención y que quien atraviesa esa calle entra en
    un mundo más antiguo y más firme (Borges 1995:271).
    Com essas frases, Borges delimitou o primeiro marco desse espaço
    mítico-imaginário que chamamos de Sur.

    Marlova Gonsales Aseff, Borges e o Sur mítico
    .

    Mas como alguns textos de Borges chegaram a tomar força de mito?
    O Dicionário de Mitos Literários propõe que na literatura seja considerado
    mito um relato (ou uma personagem implicada num relato) simbólico que
    passa a ter valor fascinante (ideal ou repulsivo) e mais ou menos totalizante
    para uma comunidade humana mais ou menos extensa, à qual ele propõe a
    explicação de uma situação ou forma de agir (Dabezies 1997:731). Note-se
    aí que o conceito de mito literário é bastante semelhante às considerações
    de Jung e de Freud. A palavra «fascinante» tenta descrever os efeitos classicamente
    atribuídos ao «sagrado» num mundo dessacralizado. Assim, numa
    sociedade dessacralizada, a produção literária representaria ainda um dos
    campos privilegiados onde o mito pode exprimir-se (Dabezies 1997: 735). É
    interessante perceber como Borges buscou exprimir o mito desde o início
    de sua produção literária. Vale também sublinhar que Borges não criou o
    mito Sur, mas sim o reinscreveu no imaginário coletivo:
    Na criação literária, o mito intervém na relação do escritor com sua época e
    seu público: um escritor exprime sua experiência ou suas convicções através

    Marlova Gonsales Aseff, Borges e o Sur mítico
    .

    das imagens simbólicas que repercutem um mito já ambientado e/ou são
    reconhecidas pelo público como exprimindo uma imagem fascinante (Dabezies
    1997:732).
    O conflito Civilização versus Barbárie já havia sido elaborado literariamente
    por Sarmiento pelo menos 70 anos antes de Borges lançar seu
    primeiro livro. Certamente, já era latente desde o começo da formação da
    sociedade argentina. Também o mito do Sur, enquanto narrativa, não está
    contido apenas no conto «El Sur», pois um mito não é identificável com um
    único texto. O texto literário não é em si um mito: ele retoma e reedita
    imagens míticas:
    O mito não se reduz a um tema simbólico simples, ele possui uma estrutura
    dinâmica que combina episódios, personagens e situações de acordo com
    uma dialética sempre original (Dabezies 1997:733).

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sexta-feira, 29 de março de 2013

“LA PASCUA, MISTERIUM FIDEI.”




 Em Efésios 2,20 temos "... com o próprio Cristo por pedra angular" (ontos akrogoniaiou autou krisou Iesou ou ipso summo angulari lapide Christo Jesu); o texto continua e diz: "n'Ele qualquer construção bem ajustada (synarmodogomene), constructa = sam-skrta em sânscrito) cresce para formar um templo santo (eis naon agion) no Senhor, em união com o Qual também vós estais integrados na construção (coedificamini) para vos tornardes, no Espírito, a morada de Deus" (en Pneumati = atmani em sânscrito. Esta figura tem paralelo na figura da participação do Corpo Místico de Cristo:

(...)

Ante estos acontecimientos trascendentales de nuestra fe, quisiera compartir
con vosotros, una reflexión que nos ayude a todos a vivir
conscientemente este misterio; año tras año, se nos invita a descorrer el velo del
mismo y entrar en el Cenáculo místico junto a Cristo, para ser comensales suyos,
escuchando su Palabra y gustando el verdadero maná que ha descendido del cielo. Es
decir, a vivir desde el corazón la Pascua de Cristo, con Cristo y junto a Cristo. Misterio
de fe que sólo aquellos que han recibido la luz del Espíritu Santo, pueden llegar a
comprender y vivir, aunque siempre, eso sí, pobre y limitadamente, porque pobres y
limitados somos los seres humanos ante la grandeza de los misterios de Dios, pues lo
íntimo de Dios, solo lo conoce el Espíritu de Dios.
(...)
 “Celebrando la fiesta del tránsito, nos esforzamos por pasar a las cosas de Dios,
como un día los hebreos pasaron de Egipto al desierto… Realicemos con ahínco el
tránsito que lleva al cielo, apresurándonos a pasar de las cosas de acá abajo a las cosas
celestes y de la vida mortal a la vida inmortal.” (De sollemnitate paschali)
Para terminar esta breve reflexión sobre el sentido profundo del misterio
pascual como misterio de nuestra fe, querría señalaros que
participando en el Santo Triduo Pascual, os fijarais en el desarrollo del rito cristiano y
en el profundo simbolismo que encierra, lección magistral de Teología y vivencia
radical del misterio que contiene. Especialmente os señalo el “Lavatorio de los pies” y
5
la “liturgia eucarística” del Jueves Santo; la “Adoración de la cruz” el Viernes Santo, y el
“Lucernario”, el canto del “Pregón pascual” y la “Bendición del Agua” en la Vigilia del
Domingo de Resurrección.

Con mi bendición y afecto, recibid un fraternal abrazo en Cristo. ¡Feliz Pascua!
Juan A., presbítero católico romano y masón rectificado.


(...)



quarta-feira, 27 de março de 2013

Conversando com Jorge Luis Borges

http://biosofia.net/2001/06/22/conversando-com-jorge-luis-borges/

Nada se edifica sobre pedra, tudo sobre areia, mas o nosso dever é edificar como se fora pedra a areia…

Jorge Luis Borges

Em Outubro de 1977 eu morava em Buenos Aires. Um jornalista peruano que visitava a cidade conseguiu, com a minha ajuda indirecta, uma entrevista com o famoso escritor Jorge Luis Borges. A amiga que obteve a conversa privada insistiu em convidar-me: eu deveria ir junto. “Será um prazer”, respondi.
ÃL;�s 8 da noite, entardecia quando nós os três batemos à porta do apartamento na rua Maipu, no centro da cidade. A porta abriu-se e a governanta disse-nos:
“O senhor saiu, mas mandou dizer que não tarda. Não podem voltar dentro de 15 minutos?”
A nossa profunda decepção não durou muito. Dez minutos mais tarde um Galaxie estacionou, e o motorista ajudou o escritor de 78 anos, cego e trôpego, que começou a atravessar a rua movimentada e em obras. O trânsito deteve-se reverentemente. Borges era um símbolo nacional, um sábio, quase um santo. Todos queriam escutá-lo, e na rua não havia quem não o reconhecesse. Embora as suas opiniões políticas paradoxais desagradassem a muitos, ele brilhava como um raio de sol em meio à noite negra da ditadura militar e da violência.
O escritor avançou passo a passo, experimentando o terreno incerto com o olhar sempre fixo no alto. Depois de completar a travessia, caminhou uns 20 metros pela calçada, parou frente à sua porta e tirou, trémulo, uma chave do bolso. Procurou com os dedos o buraco da fechadura, sustentado pelo motorista, e finalmente abriu a porta do edifício.
Estava ali a personalidade mais polémica da Argentina. (...) Mas por detrás das aparências, como eu saberia mais tarde, o velho e sábio escritor estava, misteriosamente, emitindo novos sinais para uma reprogramação saudável da sociedade. Trazia à tona energia positiva do inconsciente colectivo e plantava sementes para uma cultura baseada na ética.
Através de incontáveis palestras e entrevistas, Borges recriava a sua própria pessoa. Construía-se a si mesmo em público como um grande personagem saído das páginas de algum livro mágico, que fascinava com os seus paradoxos, as suas tiradas de humor e ironia profunda em relação aos diversos aspectos da vida: política, literatura, turfe ou futebol. Na sua atitude, colocava sempre em primeiro lugar o assombro diante da vida e, em distante segundo plano, os factos, opiniões e circunstâncias que rodeiam cada ser humano.
Falava longamente da sua árvore genealógica, da sua sensação de que o tempo é cíclico e a realidade labirín-tica. No seu talentoso monólogo, a intervenção deste ou daquele jornalista era frequentemente dispensável, embora na verdade tão-pouco chegasse a prejudicar. A fala de Borges era entremeada por longos silêncios em que ele fitava o vazio com uma expressão de esforço estampada no rosto, enquanto parecia buscar a melhor palavra ou modo de dizer. Mas era uma fala tão abundante e encantadora que aceitava facilmente as interrupções e até algumas mudanças aparentes de tema. No fundo, porém, Borges estava sempre a falar de si mesmo, isto é, do seu mundo, do universo segundo a sua sensibilidade.
Durante a nossa conversa, chocou-me a inutilidade das palavras. O silêncio parecia mais eloquente. A minha ignorância dificultava o diálogo e a presença de Borges, tão humilde e tão poderosa, era esmagadora. Eu estava impressionado pela sensação de que as palavras faziam mais ruído do que comunicavam e de que Borges dominava a arte de conversar em silêncio.
“Quais foram as suas primeiras leituras?”
“Não me lembro de uma época em que não soubesse ler e escrever. Se me dissessem que estas são condições inatas, inerentes ao homem desde o seu nascimento, eu acreditaria, baseado na minha experiência pessoal. Criei-me na biblioteca do meu pai, composta em grande parte por livros ingleses. Li os contos dos irmãos Grimm, li Kipling e mais tarde os contos de Andersen. Criei-me lendo.”
Borges elogiou o poeta americano Walt Whitman. Disse que George Orwell (autor de 1984 e O Triunfo dos Porcos) havia sido um pouco pretensioso, e acusou-o de ter pouca imaginação. E lamentou: desde os anos 50 já não podia ler, devido à gradual cegueira que lhe havia trazido para os olhos as sombras da noite. Não conhecia Krishnamurti.
“O homem vê-se frequentemente indefeso diante de uma realidade externa que é tremendamente complexa. Arma, então, esquemas e racionalizações para interpretar essa realidade. A história humana é a história dessas tentativas racionalizantes que tantas vezes fracassam. Pensa que tais tentativas têm algo de ilusório na sua origem, que a sua validade é só parcial?”
Eu estava aqui a querer fazer uma crítica krishnamurtiana, ou zen, das ideologias políticas. Mas a resposta foi curta: “Não”, disse Borges. “O que acontece é que essas racionalizações são parte da realidade que querem explicar. Nós vivemos dos sonhos dos mortos, dos esquemas dos mortos. O mundo pode parecer um caos, mas nós tratamos de que seja um cosmos, uma ordem.”
A conversa duraria uma hora, mas, por coincidência, um compromisso do escritor foi desmarcado e ele convidou-nos a jantar num restaurante simples, a um quarteirão de distância. O seu jantar consistiu em arroz puro com queijo ralado e uma banana como sobremesa. Foi interrompido várias vezes por pessoas pedindo autógrafos. Escrevia o seu nome por extenso, a mão trémula fazendo uma letra de pessoa semi-alfabetizada.
Borges escreveu um livro sobre Buda, em co-autoria com Alicia Jurado.(1) Entre seus autores preferidos estava William James, respeitado pelos estudiosos de ocultismo. Pesquisou e escreveu sobre a Cabala. Foi admirador de Emanuel Swedenborg, o grande místico sueco do século XVIII. A dimensão transcendente de Borges ficou mais clara nos últimos anos de sua vida.
“Perguntaram um dia a Bernard Shaw se ele acreditava que o Espírito Santo havia escrito a Bíblia”, contou Borges em uma palestra pública um dia. “E Bernard Shaw respondeu: ‘Todo o livro que valha a pena ser lido foi escrito pelo Espírito’.” Borges percebia o livro como algo quase mágico. Mesmo cego - podia apenas perceber o vulto de alguém à sua frente -, ele seguia comprando livros.
“Eu tenho este culto ao livro. Posso dizê-lo de um modo que pode parecer patético e não quero que seja patético; quero que seja como uma confidência que faço a cada um de vocês; não a todos, mas a cada um de vocês, porque todos é uma abstracção e cada um é verdadeiro. Eu sigo brincando de não ser cego, sigo comprando livros, sigo enchendo a minha casa de livros. Outro dia deram-me uma edição de 1966 da Enciclopédia de Brokhause. Senti a presença desse livro em casa, senti-a como uma espécie de felicidade. Aí estavam vinte e tantos volumes com uma letra gótica que não posso ler, com os mapas e gravuras que não posso ver e, no entanto, o livro estava ali. Sentia como que uma gravitação amistosa do livro. Penso que o livro é uma das possibilidades de felicidade que temos, os homens.”
Numa palestra sobre a imortalidade, Borges citou repetidamente Pitágoras, fazendo um elogio da sua doutrina sobre a transmigração da alma (reencarnação), e investigando a sabedoria de Platão e Sócrates.
Na sua entrevista connosco em 1977, disse que no fundo se considerava um anarquista. Ele via o mundo todo como uma única comunidade. “O nacionalismo é o maior problema do nosso tempo. Infelizmente para os homens, o mundo foi parcelado em países, cada um provido de lealdades, de memórias queridas, uma mitologia particular, direitos, fronteiras, bandeiras, escudos e mapas. Enquanto durar este estado arbitrário de coisas, as guerras serão inevitáveis”, disse mais tarde noutra entrevista.(2)
E afirmou a outro jornalista: “Quero insistir no facto de que sou pacifista. Neste país havia 82 generais, que depois da derrota na guerra das Malvinas foram reduzidos a 40: agora há, pois, um excesso de 40 generais.”
O cineasta Ruy Guerra contou que Borges, já quase com 80 anos, passou certa vez três dias intensos dando palestras, participando de almoços e recebendo homenagens na capital do México. Depois disso tudo, havia apenas um dia livre antes de voltar a Buenos Aires. Borges pediu a um amigo argentino que morava na capital do México que o levasse às pirâmides aztecas no Yucatán. O amigo explicou ao velho escritor cego que se tratava de uma viagem extremamente cansativa, entre táxis e aviões. Teriam de viajar o dia inteiro, e só poderiam ficar uma hora no local das pirâmides. Mas Borges não mudou de ideias. E foram até Uxmal. Frente à pirâmide azteca do século X, o escritor sentou-se sobre uma pedra, com o queixo apoiado sobre a bengala, os olhos fixos em algum lugar desconhecido. Levantou-se exactamente uma hora mais tarde, qualificando a sua visita à pirâmide como “inesquecível”.(3) Os seus olhos brilhavam, mas ninguém sabe o que ele viu ou percebeu por lá.
“O que é o tempo?”, perguntou Borges durante uma palestra pública em Buenos Aires. “Não sei se, mesmo depois de 20 ou 30 séculos de meditação, já avançámos muito na questão do tempo. Eu diria que sempre sentimos esta antiga perplexidade, esta que Heráclito sentiu, mortalmente, naquele exemplo a que eu volto sempre: ninguém se banha duas vezes no mesmo rio. Porque é que ninguém se banha duas vezes no mesmo rio? Em primeiro lugar, porque as águas do rio fluem. Em segundo lugar - e isto é algo que nos toca metafisicamente, que nos dá uma espécie de horror sagrado -, porque nós mesmos somos também um rio, nós também somos flutuantes. O problema do tempo é este. É o problema da fugacidade: o tempo passa.”
Pouco depois, nesta palestra, Borges retomou o tema da transmigração ou reencarnação. “Talvez sejamos ao mesmo tempo, como querem os panteístas, todos os minerais, todas as plantas, todos os animais, todos os homens. Mas felizmente não o sabemos. Felizmente acreditamos na existência de indivíduos. Porque senão estaríamos esmagados, aniquilados por esta plenitude.”
Para Borges, o tempo é a imagem móvel da eternidade. “O tempo é sucessivo, porque, tendo saído do eterno, quer voltar ao eterno. Quer dizer, a ideia de futuro corresponde ao nosso desejo de voltar ao princípio. Deus criou o mundo. E todo o mundo, todo o universo das criaturas, quer voltar a este manancial eterno que é intemporal, não anterior nem posterior ao tempo, mas que está fora do tempo.”
No final da sua vida, de certo modo, Borges tinha a sensação de que o tempo não havia transcorrido. Dois anos antes de morrer, ele, que havia nascido entre os livros, visi-tou São Paulo e, entre uma palestra e outra, confessou:
“Apesar de ter percorrido o mundo todo, tenho a impressão de nunca haver saído da biblioteca do meu pai.” A figura de pai, para ele, tinha algo de arquetípico. O seu pai era também seu mestre.
Uma vez perguntaram-lhe se acreditava em Deus. “Não acredito em Deus, não consigo”, respondeu. “Mas um dia o meu pai disse-me que este universo é tão estranho que pode ser, subitamente, que a Santíssima Trindade exista. Não posso acreditar na pessoa de Deus, mas consigo acreditar em um Deus que está em transformação, como Bernard Shaw disse, um Deus que trabalha através de nós, através das plantas e dos animais.”


Texto Introdutório e Entrevista de Carlos Cardoso Aveline

(...)

1 Buda, Jorge Luis Borges e Alicia Jurado, Tradução de Cláudio Fornari, Ed. Difel, 1977, 103 páginas
2 Diálogos, de Jorge L. Borges com Néstor J. Montenegro, Nemont Ediciones, Buenos Aires, 1983, 93 páginas
3 O Estado de S. Paulo, 22 de Maio de 1994, artigo de Ruy Guerra intitulado “O Velho Escritor Cego e a Pirâmide Asteca”
Palavras de Borges
De “Fragmentos de um Evangelho Apócrifo”:
Bem-aventurados os misericordiosos, porque sua felicidade está no exercício da misericórdia e não na esperança de um prémio.
Que a luz de uma lâmpada se acenda, embora nenhum homem a veja. Deus a verá.
Não odeies o teu inimigo, porque se o fazes, és de algum modo seu escravo. O teu ódio nunca será melhor que a tua paz.
Nada se edifica sobre pedra, tudo sobre areia, mas o nosso dever é edificar como se fora pedra a areia…
Feliz o pobre sem amargura ou o rico sem orgulho.
Da Autobiografia:
De algum modo, a juventude parece mais próxima de mim hoje do que quando era moço.
(Do Volume “Jorge Luis Borges; ‘Elogio da Sombra’ e ‘Um Ensaio Autobiográfico’, Ed. Globo, S. Paulo, Brasil, ver pp. 59-60 e 122)