segunda-feira, 11 de março de 2013

Jung e a psicologia do espírito



A primeiro grande trabalho de Jung, “Símbolos da transformação” (1913), consistia numa longa interpretação dos sonhos e fantasias de uma mulher. Esse material apresentava evidentes aspectos simbólicos que Jung demonstrou estarem relacionados à simbologia universal humana. Ao publicar o livro, ele recebeu em cheio a reprovação de Freud e o inevitável rompimento da relação. Por causa da análise simbólica e da vasta bagagem erudita de conhecimentos de mitologia, cultura e literatura que Jung usou ao longo das centenas de páginas de seu trabalho, Freud sentiu-se confrontado e ameaçado. Acima de tudo, Jung negava que o impulso sexual do qual Freud falava fosse um concreto. Para ele, se tratava de uma energia psíquica de proporções maiores que podia se manifestar como impulso sexual mas que era muito mais do que isso, apresentando aspectos simbólicos relacionados a etapas mais profundas e importantes do desenvolvimento humano.

Com efeito, se considera o Doutor Jung como um profeta dos tempos modernos. Pois se Freud teve o grande mérito de ''sublinhar'' a existencia do inconsciente pessoal, Jung teve o mérito ainda maior de ''descobrir'' o inconsciente coletivo e suas estruturas: os arquétipos. E com sua descoberta nos trouxe uma luz nova sobre a interpretação dos mitos, das visões e dos sonhos. Mais ainda: muito rapidamente Jung conseguiu se libertar dos prejuízos cientificistas y materialistas da psicanálise freudiana que reduz a vida espiritual e cultural de todo ser humano á epifenômenos de complexos sexuais da infância. Finalmente Jung tem em conta a História: olha a Psique como naturalista e historiador; segundo ele, a vida das profundidades psíquicas é que é a História. Dizem os junguianos que seus descobrimentos mudaram completamente o universo mental do homem moderno, no que estamos de acordo. Sentia que tinha que seguir ampliando cada vez mais o horizonte de suas descobertas e traçar um caminho para que o homem moderno saísse de sua crise espiritual y cultural. Pois para Jung, como para muitos outros, o mundo atual está em crise. E esta crise está provocada por um conflito ainda não resolvido nas profundidades da psique. Para Jung, o grande problema da psicologia era a ''individuação'' ou a reintegração dos contrários: isso se encontra por toda parte em todos os níveis, referindo-se a todo e qualquer ser humano. É famosa a suprpresa de Jung diante da semelhança encontrada por este entre os processos alquímicos pelos quais se pensava obter a ''pedra filosofal'' e as imagens nos sonhos de alguns de seus pacientes que, sem se darem conta, estavam trabalhando na reintegração de sua personalidade. Em estudos acerca da alqu8imia asiática realizados entre 1935 e 1938, Mircea Eliada nos mostra que as operações dos alquimistas chineses e indianos perseguiam igualmente a liberação da alma e a perfeição da matéria, ou seja, a colaboração do homem na obra da natureza. Esta convergencia de resultados adquiridos em âmbitos diferentes e por métodos diferentes nos parece uma confirmação manifesta da hipótese de Jung. ''Estudei alquimia durante quinze anos, mas nunca comentei com ninguém. Não queria sugestionar meus pacientes nem a meus colaboradores, Mas depois de quinze anos de investigações e observações, as conclusões se impuseram com uma força inquestionável: as operações alquímicas eram reais, só que essa realidade dessas operações não era física ou química como se pensava, e sim psicológica e espiritual. A alquimia representava a projeção de um drama em termos de laboratório que é a um só tempo cósmico e espiritual. O mistério da conjunção, mistério central da alquimia, persegue justamente a individuação ou síntese dos opostos. Na linguagem alquímica a matéria sofre até a desaparição do elemento ''Nigredo: aspecto obscuro da Psique'', depois do que a ''Aurora'' é anunciada pela cauda dos pavões reais (ave relacionada á divindade no Egito Antigo) e aparece um ''Dia Novo'', a LEUKOSIS, elemento ''Albedo'' da alquimia. Mas nesse estado de ''Brancura'' não se vive no sentido próprio do termo. De algum modo, é uma espécie de estado ideal, abstrato (de muito poder espiritual, é verdade), mas para viver-se é necessa´rio ''sangue'' e isso se obtém com o que os textos alquímicos chamam de ''Larubedo'', o vermelho da Vida; apenas a consumação da experiência do ser pode transformar esse estado ''ideal e abstrato'' numa existência humana integral. Só o sangue pode reanimar uma consciência glorificada da qual haja desaparecido o último vestígio de ''negrura ou obscuridade: Nigredo''. Então, pode-se dizer que a OPUS MAGNUM  dos alquimistas está pronta e acabada: a alma humana foi perfeitamente reintegrada... 

Mas Jung não pretende fazer com tudo isso nem teologia nem filosofia da religião. ''Eu sou um psicólogo.  Agora bem, no plano psicológico, me deparo com experiências religiosas que possuem uma estrutura e um simbolismo suscetíveis de serem interpretados. Eu considero que a experiência religiosa é real, é verdadeira. Comprovo que semelhantes experiências podem salvar a alma, podem acelerar sua integração e instaurar o equilíbrio espiritual. Como psicólogo comprovo que o estado de graça existe: é a perfeita serenidade da alma, o equilíbrio  criador, conhecimento sem forma, fonte de energia espiritual.  Sem deixar de falar como psicólogo, comprovo que a presença de Deus se manifesta na estrutura profunda da psique como uma ''coincidentia opositorum''. E toda a história das religiões, todas as teologias estão aí para confirmar que a coincidentia opositorum é uma das fórmulas mais utilizadas e mais arcaicas para expressar a realidade de Deus. Como dizia Rudolf Otto, a experiência religiosa é ''numinosa'', e eu como psicólogo distingo essa experiência das outras pelo fato de que elas transcendem as categorias ordinárias de tempo, espaço y casualidade. Ultimamente tenho estudado muito a sincronicidade (brevemente expressada como a 'ruptura do tempo') y comprovei que ela está muito próxima á experiência numinosa de Otto: pois nela também espaço, tempo e causalidade ficam abolidos'' --- Recordemos que Kierkegaard disse que ‘’o Tempo é o Pecado’’. Deter o TEMPO –a imagem móvel da Eternidade, segundo Platão – é parar o diálogo interno, ‘’parar o mundo’’(Juan Mattus).


''No modo de ver de Jung, o homem não pode alcançar a unidade a não ser na medida em que pacifica sua mente (o que nos remeteá famosa definição de Patanjali do que é a yoga: ''yoga é a parada das modificações mentais). A reintegração da energia psíquica hipotecada y presa nos conflitos internos, a coincidentia opositorum, é a pedra angular do sistema de Jung. E justamente por isso ele se viu tão interessado nas doutrinas e técnicas orientais. O taoísmo e a yoga revelaram os meios utilizados pelos asiáticos para transcender as múltiplas polaridades y alcançar a unidade espiritual. Por esse esforço orientado á unidade pela reintegração dos conflitos se encontra tbm em Hegel, ainda que num plano bem distinto. Pergunto-me se não deveria levar ainda mais longe a comparação entre Hegel e Jung. Hegel descobre a História e seu grande esforço tem como finalidade a reconciliação do homem com seu próprio destino histórico. Jung descobre o inconsciente coletivo, ou seja, tudo o que PRECEDE  a história pessoal do ser humano, e se dedica a decifrar as estruturas e a ''dialética'' com intenção de facilitar a reconciliação do homem com a parte inconsciente de sua vida psíquica e conduzi-o á reintegração da sua energia psíquica hipotecada nos conflitos interiores. Á diferença de Freud, Jung tem em conta a História: os arquétipos, estruturas do inconsciente coletivo, estão carregados de história. Já não se trata, como em Freud, de uma espontaneidade ''natural'' do inconsciente de cada indivíduo, e sim de um imenso canteiro de ''recordações históricas'': a memória coletiva onde em essencia sobrevive a História de toda a humanidade. Jung acredita que o homem deveria aproveitar mais esse ''canteiro'': seus métodos analíticos estão justamente orientados a elaborar os meios para utilizá-los.  O inconsciente coletivo é mais perigoso que dinamite, mas existem meios para manejá-lo sem demasiados riscos. Quando se desencadeia uma crise psíquica, entre as idéias de Jung se está melhor situado do que em qualquer outro sistema de idéias para resolver a questão. Se há sonhos y principalmente ''sonhos de vigília'': é necessario esforçar-se por observá-los. Se poderia dizer que cada sonho traz á sua maneira uma mensagem: os sonhos muitas vezes não só te dizem que há algo funcionando errado no seu ser profundo, mas te proporcionam também a solução para sair deste tipo de crise. Pois o inconsciente coletivo, que te envia estes sonhos, possui já a solução. Com efeito, nada se perde de toda a experiencia imemorial da humanidade. Todas as situações imagináveis e todas as soluções possíveis parecem estar previstas pelo inconsciente coletivo. Não tem nada mais a fazer que observar a ''mensagem'' ou ''conteúdo'' transmitido pelo inconsciente e ''decifra-lo''. A analise de Jung ajuda a ler ''corretamente'' essas mensagens... Jung concede uma importancia capital á interpretação dos sonhos, essa mitologia camuflada no homem moderno. Não deixa de interessante que o surrealismo, que representa o esforço mais consistente e sistemático de renovação da experiência poética ''contemporânea'', tenha ACEITADO INTEGRALMENTE  a realidade onírica. Ou melhor ainda: ''o surrealismo perseguiu, entre outras coisas, a integração dos estados de sonho para alcançar a ''situação total'' do ser humano, mais além da dualidade ''consciencia-inconsciencia''.(MIRCEA ELIADE)

Post Scriptum

Até recentemente, considerava-se a alquimia ou como uma protoquímica — isto é,uma disciplina embrionária, ingênua ou pré-científica— ou como um acervo de asneiras culturalmente irrelevantes. As pesquisas de Joseph Needham e Nathan Sivin comprovaram a estrutura global da alquimia chinesa, isto é, o fato de ser ela uma ciência tradicional sui generis, incompreensível quando abstraída desuas cosmologias e pressuposições éticas e, por assim dizer, "existenciais", e suas implicações soteriológicas.16 Meu estudo da alquimia hindu fez-me descobrir suas relações orgânicas com técnicas especificamente psicomentais.17 Além disso, é significativo o fato de que, na China, a alquimia estava intimamente relacionada com práticas secretas taotístas; na Índia, fazia parte do que podemos chamar de ''ocultismo yogui''; e, no ocidente, a alquimia greco-egípcia e renascentista foi usualmente associada ao gnosticismo e ao hermetismo, ou seja, tbm a uma tradição secreta "ocultista".

(MIRCEA ELIADE)

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