sexta-feira, 15 de março de 2013

O poema como via de acesso ao sagrado (1)




Por Graciela Maturo 
Azul@Rte (Argentina) 

1.- O poeta.......................................

A atividade poética é própria e constitutiva do homem. Se apoia na faculdade intuitiva, desperta naturalmente na criança e nos primitivos, submersa sob capas de racionalismo e empirismo no homem urbano moderno. É experiência, conhecimento e via de auto-superação antes de ser expressão, canto ou arte da linguagem.


Culturalmente, desde logo, achamos grandes diferenças entre o poeta moderno e o sacerdote tribal, o xamã, o pajé, homem-de-conheicmento, sábio da comunidade, curador e advinho. Sem embargo, desde o ponto de vista da estrutura antropológica e metafísica de sua atividade, podemos parangonarlos. Bem disse Claudel falando de outro poeta francês, Arthur Rimbaud: ''O poeta é o selvagem da sociedade civilizada''.

Uma antiga tradição, vertebrante na cultura ocidental, afirma o valor INICIÁTICO  da poesia e das artes em geral, que os gregos agruparam no âmbito sagrado da ''MOUSIKÉ''. Simbolizada na legendária figura de Orfeu, a tradição órfica foi - mais que uma filosofia - o fruto de uma religião mistérica ligada ao cultivo da terra e á iniciação espiritual (Eliade, 1960; Álvarez de Miranda, 1961). 

Sob a forma de relatos, hinos y apotegmas, o orfismo transmitiu uma concepção sagrada da arte que foi assumida e reelaborada por poetas de distintas épocas, desde Píndaro y Virgílio até Jáuregui, Góngora, Cocteau, Rosamel del Valle ou Molinari, sem mencionar os integrantes de uma vasta corrente musical, plástica y operística que acompanhou esse devir. Adotada pelos pitagóricos, difundida por platônicos e neoplatônicos, rubricada pela primitiva Igreja Cristã, a filosofia órfica compartilhou seu campo com o da arte e da religião, apoiada em uma concepção teândrica, que sustenta o caráter incoativo (autônomo) do homem. O ser do homem é para esta corrente um estar sendo através da aprendizagem e a auto-compreensão guiado pelo contato psico-físico com a natureza e pelo exercício do potencial intuitivo, racional e técnico.

Existe também outro aspecto mais oculto desta tradição filosófica e estética. A transmigração das almas, comum á distintas  concepções culturais, ou a viagem da alma transmitida por Platão no livro X da República (Rohde: 1973, cap. I a VII) são noções inerentes á esta corrente, expandida pelos poetas. É este um aspecto do poetizar que excede o estético para avizinhar-se ao que Dodds (1960) denomina cultura xamanísta. O êxtasis e a homóiosis ou saída da alma do corpo, experiências descritas e promovidas pelos textos órficos e sua descendência (Lacarrière, 1989; Herrán, 1967) se acham no germen da exaltação do poeta como ser que tem parte na Divindade, consignação que reformularam os poetas românticos.

Enquanto á concepção da linguagem mesma, tanto os primitivos como os clássicos e alguns modernos o consideraram como dom sobrenatural y elemento de poder. A título de exemplo, entre as culturas autóctones americanas destaco a cultura guarani, com sua concepção da palavra-alma, recobrada entre nós pelo poeta correntino Jorge Sanchez Aguilar.

Largamente discutimos as teorias da linguagem poética apoiadas no conceito signo, sema, ou as concepções de novidade expressiva como torção intencional de uma suposta normativa linguística (Jakobson). 

Não se pode ignorar que desde antigamente prosperou, não apenas no discurso filosófico mas em alguns poetas, certa vertente que enfatizou a criação como produção de artefatos, e ao criador como artífice. Alguns grupos da ''vanguarda artísitca'', nos começos do século XX, levaram á sua máxima expressão essa idéia, atribuindo ao poeta estados de hiperlucidez criativa, além do surrealismo, que pretendeu fazer do poeta um médium, um intérprete privilegiado do sonho e da vida inconsciente. Em uns e outros casos se manteve, com distintas marcas, a imagem arquetípica do poeta-vate, já na condição de eleito pelos deuses, oráculo, advinho, artífice. Em todos se foi impondo a noção clássica do poetizar como ritual do qual se obtém uma compensação revelatória. 

Mencionarei também o encantamento exercido pela palavra poética, distante em alto grau do signo, convencional e arbitrário. Ainda quando a poesia moderna renuncia á menudo aos atributos sonoros do verso, ainda sim manteve os atributos sonoros do verso, manteve certa fidelidade ao ritmo musical. E se continuou assim uma noção encantatória da linguagem poética que é afirmada desde o Livro dos Mortos egípicio até certas obras de estudiosos modernos da poesia (Ghyka, 1938, 1949; L. S. Z. Galtier, 1965; Azcuy, 1966). 

O norte americano Ralph Waldo Emerson, leitor do místico sueco Samuel Swendenborg, pronunciou esta frase, de dilatada projeção entre escritores europeus y americanos:The poet is the true and only doctor, he knows and tells, he is the only teller of news, for he was present and privy to the appearance which he describes........................íntimas de las cosas que describe. En 1914, el promotor del creacionismo poético, afirmó: El poeta es un pequeño dios. Había escuchado de un poeta indígena la siguiente frase: Poeta, no cantes a la lluvia. Debes hacer llover. En alguna medida, la osada vanguardia del siglo XX había cerrado el círculo de la cultura occidental, volviendo al origen. 

(...)

A água é pesada à distância de um dia da nascente.
A parcela vermelha trespassa os seus lentos ramos na tua
fronte, dimensão tranquilizada.
E eu semelhante a ti,
Com a palha florida à beira do céu gritando o teu nome,
Abato os vestígios,
Alvejado, salubre de claridade.

Cintura de vapor, multidão alijada, vós, que repartis o receio,
tocai o meu renascimento.
Paredes da minha duração, renuncio ao auxílio da minha
venial amplitude;
Assoalho o expediente de um domicílio, entravo as primícias
das sobrevivências.
Incendiado de itinerante solidão,
Evoco o acto de nadar sob a sombra da sua Presença.

O corpo deserto, que não admite misturas, regressou ontem
falando sombriamente.
Declínio, não sejas volúvel, deixa cair o teu maço de transes,
acre sonho.
O decote diminui as ossadas do teu exílio, da tua esgrima;
Refrescas a servidão que se devora a si própria pelas costas;
Baforada da noite, detém essa carroça lúgubre
De vozes vidradas, de partidas lapidadas.

Cedo subtraído ao fluxo das lesões fantasiosas
(A enxada da águia lança bem alto o sangue dilatado)
Sobre um destino presente eu conduzi minhas liberdades
Em direcção ao azul multiave, à granítica dissidência.

Ó abóbada efusiva sobre a coroa do seu ventre,
Murmúrio de dote negro!
Ó movimento esgotado na sua dicção!
Guiai os insubmissos, Natividade, para que eles descubram as
suas fundações,
A amêndoa crente no novo amanhã.
A noite suturou a sua chaga de corsário onde viajavam os
foguetes vagos por entre o medo sentido pelos cães.
Pertencem ao passado as micas do luto sobre o teu rosto.

Vidraça inextinguível: o meu sopro aflorava já a amizade da
tua ferida,
armava a tua oculta realeza.
E dos lábios do nevoeiro desceu o nosso prazer com a sua
soleira de duna, o seu tecto de aço.
A consciência dilatou o fremente aparato da tua permanência;
A fiel simplicidade espraiou-se por toda a parte.
Timbre da divisa matinal, época morta da estrela precoce,
Corro na orla do meu arco, coliseu enterrado.
Farto de beijar a crina núbil dos cereais:

..... a opiniosa, submetida aos nossos confins.

René Char

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