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Nada se edifica sobre pedra, tudo sobre areia, mas o nosso dever é edificar como se fora pedra a areia…
Jorge Luis Borges
Em Outubro de 1977 eu morava em Buenos Aires. Um jornalista peruano que visitava a cidade conseguiu, com a minha ajuda indirecta, uma entrevista com o famoso escritor Jorge Luis Borges. A amiga que obteve a conversa privada insistiu em convidar-me: eu deveria ir junto. “Será um prazer”, respondi.
ÃL;�s 8 da noite, entardecia quando nós os três batemos à porta do
apartamento na rua Maipu, no centro da cidade. A porta abriu-se e a
governanta disse-nos:
“O senhor saiu, mas mandou dizer que não tarda. Não podem voltar dentro de 15 minutos?”
A nossa profunda decepção não durou muito. Dez minutos mais tarde um
Galaxie estacionou, e o motorista ajudou o escritor de 78 anos, cego e
trôpego, que começou a atravessar a rua movimentada e em obras. O
trânsito deteve-se reverentemente. Borges era um símbolo nacional, um
sábio, quase um santo. Todos queriam escutá-lo, e na rua não havia quem
não o reconhecesse. Embora as suas opiniões políticas paradoxais
desagradassem a muitos, ele brilhava como um raio de sol em meio à noite
negra da ditadura militar e da violência.
O escritor avançou passo a passo, experimentando o terreno incerto
com o olhar sempre fixo no alto. Depois de completar a travessia,
caminhou uns 20 metros pela calçada, parou frente à sua porta e tirou,
trémulo, uma chave do bolso. Procurou com os dedos o buraco da
fechadura, sustentado pelo motorista, e finalmente abriu a porta do
edifício.
Estava ali a personalidade mais polémica da Argentina. (...) Mas
por detrás das aparências, como eu saberia mais tarde, o velho e sábio
escritor estava, misteriosamente, emitindo novos sinais para uma
reprogramação saudável da sociedade. Trazia à tona energia positiva do
inconsciente colectivo e plantava sementes para uma cultura baseada na
ética.
Através de incontáveis palestras e entrevistas, Borges recriava a sua
própria pessoa. Construía-se a si mesmo em público como um grande
personagem saído das páginas de algum livro mágico, que fascinava com os
seus paradoxos, as suas tiradas de humor e ironia profunda em relação
aos diversos aspectos da vida: política, literatura, turfe ou futebol.
Na sua atitude, colocava sempre em primeiro lugar o assombro diante da
vida e, em distante segundo plano, os factos, opiniões e circunstâncias
que rodeiam cada ser humano.
Falava longamente da sua árvore genealógica, da sua sensação de que o
tempo é cíclico e a realidade labirín-tica. No seu talentoso monólogo, a
intervenção deste ou daquele jornalista era frequentemente dispensável,
embora na verdade tão-pouco chegasse a prejudicar. A fala de Borges era
entremeada por longos silêncios em que ele fitava o vazio com uma
expressão de esforço estampada no rosto, enquanto parecia buscar a
melhor palavra ou modo de dizer. Mas era uma fala tão abundante e
encantadora que aceitava facilmente as interrupções e até algumas
mudanças aparentes de tema. No fundo, porém, Borges estava sempre a
falar de si mesmo, isto é, do seu mundo, do universo segundo a sua
sensibilidade.
Durante a nossa conversa, chocou-me a inutilidade das palavras. O
silêncio parecia mais eloquente. A minha ignorância dificultava o
diálogo e a presença de Borges, tão humilde e tão poderosa, era
esmagadora. Eu estava impressionado pela sensação de que as palavras
faziam mais ruído do que comunicavam e de que Borges dominava a arte de
conversar em silêncio.
“Quais foram as suas primeiras leituras?”
“Não me lembro de uma época em que não soubesse ler e escrever. Se me
dissessem que estas são condições inatas, inerentes ao homem desde o seu
nascimento, eu acreditaria, baseado na minha experiência pessoal.
Criei-me na biblioteca do meu pai, composta em grande parte por livros
ingleses. Li os contos dos irmãos Grimm, li Kipling e mais tarde os
contos de Andersen. Criei-me lendo.”
Borges elogiou o poeta americano Walt Whitman. Disse que George
Orwell (autor de 1984 e O Triunfo dos Porcos) havia sido um pouco
pretensioso, e acusou-o de ter pouca imaginação. E lamentou: desde os
anos 50 já não podia ler, devido à gradual cegueira que lhe havia
trazido para os olhos as sombras da noite. Não conhecia Krishnamurti.
“O homem vê-se frequentemente indefeso diante de uma realidade externa
que é tremendamente complexa. Arma, então, esquemas e racionalizações
para interpretar essa realidade. A história humana é a história dessas
tentativas racionalizantes que tantas vezes fracassam. Pensa que tais
tentativas têm algo de ilusório na sua origem, que a sua validade é só
parcial?”
Eu estava aqui a querer fazer uma crítica krishnamurtiana, ou zen,
das ideologias políticas. Mas a resposta foi curta: “Não”, disse Borges.
“O que acontece é que essas racionalizações são parte da realidade que
querem explicar. Nós vivemos dos sonhos dos mortos, dos esquemas dos
mortos. O mundo pode parecer um caos, mas nós tratamos de que seja um
cosmos, uma ordem.”
A conversa duraria uma hora, mas, por coincidência, um compromisso do
escritor foi desmarcado e ele convidou-nos a jantar num restaurante
simples, a um quarteirão de distância. O seu jantar consistiu em arroz
puro com queijo ralado e uma banana como sobremesa. Foi interrompido
várias vezes por pessoas pedindo autógrafos. Escrevia o seu nome por
extenso, a mão trémula fazendo uma letra de pessoa semi-alfabetizada.
Borges escreveu um livro sobre Buda, em co-autoria com Alicia Jurado.(1)
Entre seus autores preferidos estava William James, respeitado pelos
estudiosos de ocultismo. Pesquisou e escreveu sobre a Cabala. Foi
admirador de Emanuel Swedenborg, o grande místico sueco do século XVIII.
A dimensão transcendente de Borges ficou mais clara nos últimos anos de
sua vida.
“Perguntaram um dia a Bernard Shaw se ele acreditava que o Espírito
Santo havia escrito a Bíblia”, contou Borges em uma palestra pública um
dia. “E Bernard Shaw respondeu: ‘Todo o livro que valha a pena ser lido
foi escrito pelo Espírito’.” Borges percebia o livro como algo quase
mágico. Mesmo cego - podia apenas perceber o vulto de alguém à sua
frente -, ele seguia comprando livros.
“Eu tenho este culto ao livro. Posso dizê-lo de um modo que pode
parecer patético e não quero que seja patético; quero que seja como uma
confidência que faço a cada um de vocês; não a todos, mas a cada um de
vocês, porque todos é uma abstracção e cada um é verdadeiro. Eu sigo
brincando de não ser cego, sigo comprando livros, sigo enchendo a minha
casa de livros. Outro dia deram-me uma edição de 1966 da Enciclopédia de
Brokhause. Senti a presença desse livro em casa, senti-a como uma
espécie de felicidade. Aí estavam vinte e tantos volumes com uma letra
gótica que não posso ler, com os mapas e gravuras que não posso ver e,
no entanto, o livro estava ali. Sentia como que uma gravitação amistosa
do livro. Penso que o livro é uma das possibilidades de felicidade que
temos, os homens.”
Numa palestra sobre a imortalidade, Borges citou repetidamente
Pitágoras, fazendo um elogio da sua doutrina sobre a transmigração da
alma (reencarnação), e investigando a sabedoria de Platão e Sócrates.
Na sua entrevista connosco em 1977, disse que no fundo se considerava um
anarquista. Ele via o mundo todo como uma única comunidade. “O
nacionalismo é o maior problema do nosso tempo. Infelizmente para os
homens, o mundo foi parcelado em países, cada um provido de lealdades,
de memórias queridas, uma mitologia particular, direitos, fronteiras,
bandeiras, escudos e mapas. Enquanto durar este estado arbitrário de
coisas, as guerras serão inevitáveis”, disse mais tarde noutra
entrevista.(2)
E afirmou a outro jornalista: “Quero insistir no facto de que sou
pacifista. Neste país havia 82 generais, que depois da derrota na guerra
das Malvinas foram reduzidos a 40: agora há, pois, um excesso de 40
generais.”
O cineasta Ruy Guerra contou que Borges, já quase com 80 anos, passou
certa vez três dias intensos dando palestras, participando de almoços e
recebendo homenagens na capital do México. Depois disso tudo, havia
apenas um dia livre antes de voltar a Buenos Aires. Borges pediu a um
amigo argentino que morava na capital do México que o levasse às
pirâmides aztecas no Yucatán. O amigo explicou ao velho escritor cego
que se tratava de uma viagem extremamente cansativa, entre táxis e
aviões. Teriam de viajar o dia inteiro, e só poderiam ficar uma hora no
local das pirâmides. Mas Borges não mudou de ideias. E foram até Uxmal.
Frente à pirâmide azteca do século X, o escritor sentou-se sobre uma
pedra, com o queixo apoiado sobre a bengala, os olhos fixos em algum
lugar desconhecido. Levantou-se exactamente uma hora mais tarde,
qualificando a sua visita à pirâmide como “inesquecível”.(3) Os seus
olhos brilhavam, mas ninguém sabe o que ele viu ou percebeu por lá.
“O que é o tempo?”, perguntou Borges durante uma palestra pública em
Buenos Aires. “Não sei se, mesmo depois de 20 ou 30 séculos de
meditação, já avançámos muito na questão do tempo. Eu diria que sempre
sentimos esta antiga perplexidade, esta que Heráclito sentiu,
mortalmente, naquele exemplo a que eu volto sempre: ninguém se banha
duas vezes no mesmo rio. Porque é que ninguém se banha duas vezes no
mesmo rio? Em primeiro lugar, porque as águas do rio fluem. Em segundo
lugar - e isto é algo que nos toca metafisicamente, que nos dá uma
espécie de horror sagrado -, porque nós mesmos somos também um rio, nós
também somos flutuantes. O problema do tempo é este. É o problema da
fugacidade: o tempo passa.”
Pouco depois, nesta palestra, Borges retomou o tema da transmigração
ou reencarnação. “Talvez sejamos ao mesmo tempo, como querem os
panteístas, todos os minerais, todas as plantas, todos os animais, todos
os homens. Mas felizmente não o sabemos. Felizmente acreditamos na
existência de indivíduos. Porque senão estaríamos esmagados, aniquilados
por esta plenitude.”
Para Borges, o tempo é a imagem móvel da eternidade. “O tempo é
sucessivo, porque, tendo saído do eterno, quer voltar ao eterno. Quer
dizer, a ideia de futuro corresponde ao nosso desejo de voltar ao
princípio. Deus criou o mundo. E todo o mundo, todo o universo das
criaturas, quer voltar a este manancial eterno que é intemporal, não
anterior nem posterior ao tempo, mas que está fora do tempo.”
No final da sua vida, de certo modo, Borges tinha a sensação de que o
tempo não havia transcorrido. Dois anos antes de morrer, ele, que havia
nascido entre os livros, visi-tou São Paulo e, entre uma palestra e
outra, confessou:
“Apesar de ter percorrido o mundo todo, tenho a impressão de nunca haver
saído da biblioteca do meu pai.” A figura de pai, para ele, tinha algo
de arquetípico. O seu pai era também seu mestre.
Uma vez perguntaram-lhe se acreditava em Deus. “Não acredito em Deus,
não consigo”, respondeu. “Mas um dia o meu pai disse-me que este
universo é tão estranho que pode ser, subitamente, que a Santíssima
Trindade exista. Não posso acreditar na pessoa de Deus, mas consigo
acreditar em um Deus que está em transformação, como Bernard Shaw disse,
um Deus que trabalha através de nós, através das plantas e dos
animais.”
Texto Introdutório e Entrevista de Carlos Cardoso Aveline
(...)
1 Buda, Jorge Luis Borges e Alicia Jurado, Tradução de Cláudio Fornari, Ed. Difel, 1977, 103 páginas
2 Diálogos, de Jorge L. Borges com Néstor J. Montenegro, Nemont Ediciones, Buenos Aires, 1983, 93 páginas
3 O Estado de S. Paulo, 22 de Maio de 1994, artigo de Ruy Guerra intitulado “O Velho Escritor Cego e a Pirâmide Asteca”
Palavras de Borges
De “Fragmentos de um Evangelho Apócrifo”:
Bem-aventurados os misericordiosos, porque sua felicidade está no exercício da misericórdia e não na esperança de um prémio.
Que a luz de uma lâmpada se acenda, embora nenhum homem a veja. Deus a verá.
Não odeies o teu inimigo, porque se o fazes, és de algum modo seu escravo. O teu ódio nunca será melhor que a tua paz.
Nada se edifica sobre pedra, tudo sobre areia, mas o nosso dever é edificar como se fora pedra a areia…
Feliz o pobre sem amargura ou o rico sem orgulho.
Da Autobiografia:
De algum modo, a juventude parece mais próxima de mim hoje do que quando
era moço.
(Do Volume “Jorge Luis Borges; ‘Elogio da Sombra’ e ‘Um Ensaio
Autobiográfico’, Ed. Globo, S. Paulo, Brasil, ver pp. 59-60 e 122)
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