sexta-feira, 1 de março de 2013

O paradigma oriental da escritura

O grande islamólogo francês Henry Corbin nos atira á mesa o padrão de um dualismo ontognoseológico que nos remete á visão platônica do mundo; a diferença entre o verdadeiro (haqîqat) e o aparente (majâz):

“Vir a este mundo’’ é passar do mundo da Realidade no verdadeiro sentido do termo (haqîqat), ao mundo que é sem dúvida real para a consciência cotidiana mas que, em essência, não é mais que representação e metáfora (majâz); esta ‘’vinda ao mundo’’ quer dizer q a Realidade em sentido verdadeiro (profundo) se converte em duvidosa e improvável, suspeita e ambígua para efeitos de aceitação social. Por isso Jesus disse :”’Vim para trazer a espada e não a paz’’(espada simbólica, obviamente: do Logos ou Verbo). IONESCO escreveu que, com seu teatro, ele propõe antes de tudo DESSOCIALIZAR –cfr DON JUAN em suas reiteradas prédicas nesse sentido a CASTANEDA – porque é, precisamente, ‘’a representação cotidiana’’ do homem –social que o torna uma criatura psicologicamente suscetível. Ele lançou mão de mecanismos de liberação do tempo tradicionais, como koans zen e toda e qualquer UPAYA(truque, estratégia) que produzisse uma ''implosão dos hábitos mentais''.

O descrito até aqui coincide plenamente com o conceito platônico de ‘’anamnesis’’, assim como a concepção gnóstica da existência. Desde esta perspectiva, o mundo da consciência ordinária (o mundo comum da vigília) constitui na verdade um ‘’espelhismo auto-reflexivo’’; uma ilusão cujo carácter totalizante e invasivo deixa esquecido o que é autenticamente Real. Mas essa condição é reversível, tal como se propõe na continuação:

Elevar-se ao mundo verdadeiro significará que as Trevas e as dúvidas serão arrancadas da consciência. Chegar ao estado de conscientização elevado que cada um possui dentro de si em semente é, eo ipso, fazer-se estrangeiro frente ao mundo da ’representação social’’ e das ‘’descrições e interpretações cognitivas’ com que entupimos nossa mente até que não sobre nenhum espaço livre’ para o trabalho sobre si e a ‘’respiração da álma’’. É muito importante libertarmos nossa memória das falsas histórias e falseados mitos de sucesso que nos impuseram o sistema de valor social. Para desfazer isso é necessa´rio obter (ou recuperar) a fluidez perceptiva que o nó na nossa atenção trunca com pseudo-preocupações e medos produzidos pelo aumento da auto-importância e gasto de energia psíquica com a defesa social do EGO... A estratégia de borrar (apagar) a história pessoal (em muitas tradições iniciáticas) e tudo o que ela implica é bem ilustrativo desse processo de dissolução das estruturas do ego dentro dos limites do mundo... (ainda que o preço costume ser um pouco alto: calúnia, difamação, mal-entendidos (lamentáveis (!), diga-se de passagem) e, principalmente, INDIRETAS NO FACEBOOK  constituem o calvário deste tipo de prática avançada kk... mas tudo bem!)

·Ma qué tudo isso tem haver com meu texto? Para responder a essa pergunta, atentamos para o sentido em que Corbin utiliza os termos’’metáfora’’ e ‘representação’’ para descrever a natureza própria do mundo do ilusório: isso nos põe já na pista que existe uma correspondência entre a dualidade manifestada na Existencia (o verdadeiro (haqîqat) e o aparente (majâz)) e uma dualidade análoga que se manifesta no TEXTO. Cómo este concepto pretendidamente “literario” o “textual” se relaciona, indefectiblemente, con o espiritual. Por otro lado; el filósofo francés menciona aquí o Corão, devido a que a Revelação concedida por Alá ao Profeta (a Paz seja com ele!) é precisamente o modelo original y sagrado, para a gnose islámica, deste tipo de dualismo dos textos.
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Y é que um texto revelado é claramente um caso superlativo do que constitui um texto inspirado: seus autores, o profeta e o escritor vidente, coincidem com isso de exercer uma mediação entre o plano da consciência comum dos homens y um plano superior, seja de uma divindade única, seja da multiplicidade de deuses, seja dos Dáimones, dos Anjos ou dos jinn. Tanto Avicena quanto por exemplo  Julio Cortázar entram nessa mesma dinâmica, cada um a seu modo, cada um em sua própria medida, e seus textos são o resultado visível dessa mediação.

Artaud escreve: ''É preciso admitir que a linguagem se ossificou, que os vocábulos , TODOS OS VOCÁBULOS, se congelaram e se envararam dentro da própria significação, numa terminologia esquemática e estéril.
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Cada vez que Cortázar entre em contato com AXEL, vira do reflexivo ou narrativo para o propriamente poético, á linguagem que desvela, possuído por forças inquietantes e dotado de uma conformação mântica nada tranquilizadora(...) cada vez que sente a gravitação dessa força que o descentra e deporta ao INDESCRITÍVEL e INENARRÁVEL, cada vez que se evidencia esse NUMEN nebuloso de onde emerge o manifesto (...) o disparo daquilo que vem do além ou do fundo, cada vez que adverte O ANÚNCIO INTRADUZÍVEL, esse que se dá como possessão ou contágio , que reclama seu incogniscível predomínio, Cortázar só pode dar conta balbuciando com a voz quebrada, só pode recorrer à proferição pítica (p.154)


Con respecto a isto, Corbin nos ofrece na p. 34 o que podería constituir uma versião avant la lettre del capítulo 82 de Rayuela(O Jogo da Amarelinha):
·
Faz falta uma fonte de energia psíquica potente para que a atividade imaginadora (essa imaginação que ...) pode ser anjo ou demônio) crie, fora das expressões comuns e dos simbolismos superficiais que permitem a linguagem binária, um campo de liberdade interior suficiente(...) O acontecimento se produzirá numa visão mental, em um estado intermediário entre a vigília e o sonho’’

· Os antigos toltecas conheciam esta forma de conhecimento "automático", espontâneo e imediato que dispensava linhas de raciocínio, informações prévias e lógica formal. Chamavam de silencio interno.

O diálogo interno é a outra metade, um vírus que impede deter, inclusive, a fala sub-vocal: ''Tente alcançar ao menos dez segundos de silêncio interno. Você vai se debater com um vírus interno resistente que te obriga a falar compulsivamente e o que é pior: sempre as mesmas merdas auto-referentes, tipo: eu sou isso, eu sou aquilo, eu faço isso, eu penso aquilo,eu tenho isso, eu preciso ter aquilo, etc. Esse vírus é o diálogo interno e o pensamento reativo diante do comportamento dos outros.

O vírus do controle social deixa fora de ação os centros do sistema nervoso necessários ao desdobramento da consciência e cria adicção ao diálogo interno, como se tocasse um vinil arranhado que voltasse sempre para o começo da faixa ‘’EU’’.

·Assim pois, nos achamos aqui ante um paradigma de compreensão da escritura narrativa radicalmente distinto ao que se mantém vigente no contexto da modernidade ocidental.

Cortázar pôde ver neste IMAGINAL INICIÁTICO algo assim como uma justificação da realidade ontológica de seus próprios vislumbres de uma outra realidade. Deste modo ele mesmo, assim como esses outros autores visionários que ele admirava (Rimbaud, Nerval, Artaud...) não viviam em um mundo de pura fantasia, tal como poderiam julgar equivocadamente seus contemporâneos. O que sucede na realidade é que esses videntes tiveram um acesso privilegiado a uma dimensão bloqueada da realidade.
·
É um ''mundo externo'', que não é o mundo físico, um mundo que nos ensina que se pode sair do espaço sensível sem no entanto sair dos seus limites, e que é necessa´rio sair do tempo homogêneo da cronologia para entrar no tempo qualitativo que é a história da alma (íd.)

Para o leitor moderno - e sobretudo para o leitor de Cortázar -este 'caminho descendente'' realizado primeiramente pelo autor não deveria resultar de todo estranho, na medida em que todavia nos é familiar o conceito de inspiração (familiar, ainda que inoperante). O caso do leitor é diferente: não existe atualmente para nós um termo para designar o ''caminho ascendente'' que deve percorrer, em segunda instancia,o leitor. e, não obstante, essa ascensão deveria constituir precisamente a tarefa definitória do ''leitor ativo e cúmplice''. Não existe um termo moderno para isso. Mas se encontra nitidamente presente no antigo contexto espiritual islâmico analisado por Corbin: trata-se do Ta´wil (a hermenêutica espiritual islâmica).

(...)

Post Scriptum

Esta noção de Mundus Imaginalis se revelará indispensável. Ela supõe uma confluência de tradições além de outras tantas conexões esotéricas entre o Cristianismo e o Islã, assim como o reconhecimento de sua filiação oriental - no sentido tanto metafísico como geográfico dos termos. Essa filiação abre a perspectiva de umTerceiro Mundo entre o inteligível e o sensível. No Islã se denomina ÂLAM-AL-MITHAL'' , para o qual o orientalista Henry Corbin inventou o neologismo ''IMAGINAL'',  a fim de diferencia-lo do simples imaginário tal e qual o concebe a psicologia  moderna e particularmente a psicanalítica. Porque não se trata aqui, DE MODO ALGUM,  de um mero onirismo psíquico, tal como praticaram muitos surrealistas na literatura européia do inicio do século XX, e sim de um verdadeiro onirismo espiritual, da mesma espécie daquele levado á cabo por Rimbaud, Nerval e Artaud.

POST SCRIPTUM

(..).

A psicologia ocidental em quase sua totalidade só se interessa pelos estados outros de consciência que não o usual quando estes são patológicos, isto é , não integrados no indivíduo. Esquizofrenia, psicoses, neuroses, este é o campo que tais escolas lidam.

 Escolas como a junguiana e a transpessoal são exceções importantes, que embora de forma tímida, dão os primeiros passos no estudo dos níveis alterados de consciência nos quais ela não se fragmenta ou descompensa, mas se AMPLIA OU EXPANDE. De uma forma primária ainda chamam tais estados de transe, muitas vezes considerando-os ocorrência fugidias, como acessos que vem e vão.

Mas outras escolas de psicologia mais sofisticadas como a budista e a nagualista compreendem que existem outros estados de consciência e podemos não apenas incidir neles mas ampliar a tal ponto nossa percepção que um novo mundo se descortina aos nossos olhos, ampliado por podermos perceber mais, por estarmos com o nosso elo de conexão com O Atman ou Espírito limpo e fortalecido. Foi Wiliam Blake quem escreveu: ''Se as portas da percepção estivessem limpas, tudo apareceria para o homem tal como é: infinito''.




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