No ensaio «La pampa y el suburbio son dioses», publicado no livro El
Tamaño de Mi Esperanza, de 1926, Borges fala do caráter arquetípico do
pampa e dos arrabaldes e os elege como as únicas contribuições genuinamente
argentinas à literatura mundial. Ou seja, se havia algo peculiar à
cultura argentina, deveria ser procurado na vastidão do pampa ou na desordem
dos subúrbios:
De la riqueza infatigable del mundo, solo nos pertenecen el arrabal y la
pampa (Borges 2000:30).
Nesse texto, Borges define o caráter arquetípico como relativo a «coisas
não sujeitas às contingências do tempo». Anos depois, no conto de mesmo
nome, classificaria el Sur como «un mundo más antiguo y más firme»
(Borges 1995:271), ou seja: um território fora do tempo como o conhecemos,
talvez atemporal e ancestral. Borges também escreve que o pampa e
os subúrbios são como «totens, coisas que são substanciais a uma raça ou
indivíduo». Observe-se aí o caráter mítico que Borges começa a imprimir a
esses dois cenários argentinos na medida em que os qualifica como arquétipos.
Para Carl Gustav Jung, de quem Borges era leitor1, arquétipos são
parte do conteúdo imagístico e simbólico do inconsciente coletivo, eviden
ciado nos mitos e lendas de um povo. «O conceito de arquétipo, que constitui
um correlato indispensável da idéia de inconsciente coletivo, indica a existência
de determinadas formas da psique, que estão presentes em todo tempo e
em todo lugar» (Jung 2002:53). Borges também pode ter se inspirado nos
conceitos gregos para falar de arquétipos. A doutrina fundamental de Platão
prega a existência de formas arquetípicas ou idéias. O discurso de Borges
coincide com o conceito platônico, para quem os arquétipos manifestam-se no
tempo e são atemporais, constituindo a essência intrínseca das coisas.
No mesmo ensaio, Borges elege Martín Fierro, de José Hernández,
as dois Santos Vega* e Facundo, de Domingo Faustino Sarmiento, como
pontos cardeais literários da Argentina. E enumera as crenças fundamentais
da cultura argentina:
Somos unos dejados de la mano de Dios, nuestro corazón no confirma ninguna
fe, pero en cuatro cosas sí creemos: en que la pampa es un sagrario, en que
el primer paisano es muy hombre, en la reciedumbre de los malevos, en la
dulzura generosa del arrabal (Borges 2000:30).
Esses elementos começam, pouco a pouco, a ser elaborados pelo
escritor para assumir um papel definitivo em seu universo ficcional e poético.
Borges inicia a concepção do que chamaremos de «Sur mítico», um
espaço imaginário que abarca pampa e subúrbio, gaúchos e personagens
suburbanos e, mais do que tudo, traduz sentimentos partilhados pelos habitantes
da região do Prata.
Marlova Gonsales Aseff, Borges e o Sur mítico
(...)
Borges dibujó uno de los paradigmas de la literatura argentina: una literatura
construida (como la nación misma) en el cruce de la cultura europea con la
inflexión rioplatense del castellano en el escenario de un país marginal (Sarlo
1995:51).
Como bem observa Sarlo, o autor também utilizou em vários momentos
de sua obra a concepção de fronteiras (orillas) para demarcar a separação
entre civilização (as coisas da cidade) e o «Sur». Essa concepção começou
a formar-se nos anos 20 e se fez presente na produção literária de
Borges até o fim.
Borges trabajó con todos los sentidos de la palabra «orillas» (margen, filo,
límite, costa, playa) para construir un ideologema que definió en la década
del veinte y reapareció, hasta el final, en muchos de sus relatos (Sarlo 1995:
52).
Um exemplo desse transpor de fronteiras é o personagem Juan
Dahlmann, que sai da zona civilizada da biblioteca e acaba num território
regido por outras leis:
Nadie ignora que el Sur empieza del otro lado de Rivadavia. Dahlmann solía
decir que ello no es una convención y que quien atraviesa esa calle entra en
un mundo más antiguo y más firme (Borges 1995:271).
Com essas frases, Borges delimitou o primeiro marco desse espaço
mítico-imaginário que chamamos de Sur.
Marlova Gonsales Aseff, Borges e o Sur mítico
.
Mas como alguns textos de Borges chegaram a tomar força de mito?
O Dicionário de Mitos Literários propõe que na literatura seja considerado
mito um relato (ou uma personagem implicada num relato) simbólico que
passa a ter valor fascinante (ideal ou repulsivo) e mais ou menos totalizante
para uma comunidade humana mais ou menos extensa, à qual ele propõe a
explicação de uma situação ou forma de agir (Dabezies 1997:731). Note-se
aí que o conceito de mito literário é bastante semelhante às considerações
de Jung e de Freud. A palavra «fascinante» tenta descrever os efeitos classicamente
atribuídos ao «sagrado» num mundo dessacralizado. Assim, numa
sociedade dessacralizada, a produção literária representaria ainda um dos
campos privilegiados onde o mito pode exprimir-se (Dabezies 1997: 735). É
interessante perceber como Borges buscou exprimir o mito desde o início
de sua produção literária. Vale também sublinhar que Borges não criou o
mito Sur, mas sim o reinscreveu no imaginário coletivo:
Na criação literária, o mito intervém na relação do escritor com sua época e
seu público: um escritor exprime sua experiência ou suas convicções através
Marlova Gonsales Aseff, Borges e o Sur mítico
.
das imagens simbólicas que repercutem um mito já ambientado e/ou são
reconhecidas pelo público como exprimindo uma imagem fascinante (Dabezies
1997:732).
O conflito Civilização versus Barbárie já havia sido elaborado literariamente
por Sarmiento pelo menos 70 anos antes de Borges lançar seu
primeiro livro. Certamente, já era latente desde o começo da formação da
sociedade argentina. Também o mito do Sur, enquanto narrativa, não está
contido apenas no conto «El Sur», pois um mito não é identificável com um
único texto. O texto literário não é em si um mito: ele retoma e reedita
imagens míticas:
O mito não se reduz a um tema simbólico simples, ele possui uma estrutura
dinâmica que combina episódios, personagens e situações de acordo com
uma dialética sempre original (Dabezies 1997:733).
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Tamaño de Mi Esperanza, de 1926, Borges fala do caráter arquetípico do
pampa e dos arrabaldes e os elege como as únicas contribuições genuinamente
argentinas à literatura mundial. Ou seja, se havia algo peculiar à
cultura argentina, deveria ser procurado na vastidão do pampa ou na desordem
dos subúrbios:
De la riqueza infatigable del mundo, solo nos pertenecen el arrabal y la
pampa (Borges 2000:30).
Nesse texto, Borges define o caráter arquetípico como relativo a «coisas
não sujeitas às contingências do tempo». Anos depois, no conto de mesmo
nome, classificaria el Sur como «un mundo más antiguo y más firme»
(Borges 1995:271), ou seja: um território fora do tempo como o conhecemos,
talvez atemporal e ancestral. Borges também escreve que o pampa e
os subúrbios são como «totens, coisas que são substanciais a uma raça ou
indivíduo». Observe-se aí o caráter mítico que Borges começa a imprimir a
esses dois cenários argentinos na medida em que os qualifica como arquétipos.
Para Carl Gustav Jung, de quem Borges era leitor1, arquétipos são
parte do conteúdo imagístico e simbólico do inconsciente coletivo, eviden
ciado nos mitos e lendas de um povo. «O conceito de arquétipo, que constitui
um correlato indispensável da idéia de inconsciente coletivo, indica a existência
de determinadas formas da psique, que estão presentes em todo tempo e
em todo lugar» (Jung 2002:53). Borges também pode ter se inspirado nos
conceitos gregos para falar de arquétipos. A doutrina fundamental de Platão
prega a existência de formas arquetípicas ou idéias. O discurso de Borges
coincide com o conceito platônico, para quem os arquétipos manifestam-se no
tempo e são atemporais, constituindo a essência intrínseca das coisas.
No mesmo ensaio, Borges elege Martín Fierro, de José Hernández,
as dois Santos Vega* e Facundo, de Domingo Faustino Sarmiento, como
pontos cardeais literários da Argentina. E enumera as crenças fundamentais
da cultura argentina:
Somos unos dejados de la mano de Dios, nuestro corazón no confirma ninguna
fe, pero en cuatro cosas sí creemos: en que la pampa es un sagrario, en que
el primer paisano es muy hombre, en la reciedumbre de los malevos, en la
dulzura generosa del arrabal (Borges 2000:30).
Esses elementos começam, pouco a pouco, a ser elaborados pelo
escritor para assumir um papel definitivo em seu universo ficcional e poético.
Borges inicia a concepção do que chamaremos de «Sur mítico», um
espaço imaginário que abarca pampa e subúrbio, gaúchos e personagens
suburbanos e, mais do que tudo, traduz sentimentos partilhados pelos habitantes
da região do Prata.
Marlova Gonsales Aseff, Borges e o Sur mítico
(...)
Borges dibujó uno de los paradigmas de la literatura argentina: una literatura
construida (como la nación misma) en el cruce de la cultura europea con la
inflexión rioplatense del castellano en el escenario de un país marginal (Sarlo
1995:51).
Como bem observa Sarlo, o autor também utilizou em vários momentos
de sua obra a concepção de fronteiras (orillas) para demarcar a separação
entre civilização (as coisas da cidade) e o «Sur». Essa concepção começou
a formar-se nos anos 20 e se fez presente na produção literária de
Borges até o fim.
Borges trabajó con todos los sentidos de la palabra «orillas» (margen, filo,
límite, costa, playa) para construir un ideologema que definió en la década
del veinte y reapareció, hasta el final, en muchos de sus relatos (Sarlo 1995:
52).
Um exemplo desse transpor de fronteiras é o personagem Juan
Dahlmann, que sai da zona civilizada da biblioteca e acaba num território
regido por outras leis:
Nadie ignora que el Sur empieza del otro lado de Rivadavia. Dahlmann solía
decir que ello no es una convención y que quien atraviesa esa calle entra en
un mundo más antiguo y más firme (Borges 1995:271).
Com essas frases, Borges delimitou o primeiro marco desse espaço
mítico-imaginário que chamamos de Sur.
Marlova Gonsales Aseff, Borges e o Sur mítico
.
Mas como alguns textos de Borges chegaram a tomar força de mito?
O Dicionário de Mitos Literários propõe que na literatura seja considerado
mito um relato (ou uma personagem implicada num relato) simbólico que
passa a ter valor fascinante (ideal ou repulsivo) e mais ou menos totalizante
para uma comunidade humana mais ou menos extensa, à qual ele propõe a
explicação de uma situação ou forma de agir (Dabezies 1997:731). Note-se
aí que o conceito de mito literário é bastante semelhante às considerações
de Jung e de Freud. A palavra «fascinante» tenta descrever os efeitos classicamente
atribuídos ao «sagrado» num mundo dessacralizado. Assim, numa
sociedade dessacralizada, a produção literária representaria ainda um dos
campos privilegiados onde o mito pode exprimir-se (Dabezies 1997: 735). É
interessante perceber como Borges buscou exprimir o mito desde o início
de sua produção literária. Vale também sublinhar que Borges não criou o
mito Sur, mas sim o reinscreveu no imaginário coletivo:
Na criação literária, o mito intervém na relação do escritor com sua época e
seu público: um escritor exprime sua experiência ou suas convicções através
Marlova Gonsales Aseff, Borges e o Sur mítico
.
das imagens simbólicas que repercutem um mito já ambientado e/ou são
reconhecidas pelo público como exprimindo uma imagem fascinante (Dabezies
1997:732).
O conflito Civilização versus Barbárie já havia sido elaborado literariamente
por Sarmiento pelo menos 70 anos antes de Borges lançar seu
primeiro livro. Certamente, já era latente desde o começo da formação da
sociedade argentina. Também o mito do Sur, enquanto narrativa, não está
contido apenas no conto «El Sur», pois um mito não é identificável com um
único texto. O texto literário não é em si um mito: ele retoma e reedita
imagens míticas:
O mito não se reduz a um tema simbólico simples, ele possui uma estrutura
dinâmica que combina episódios, personagens e situações de acordo com
uma dialética sempre original (Dabezies 1997:733).
IDEM
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SOBREVIVÊNCIAS DE
ResponderExcluirBORGES
Jorge Luis Borges faleceu em 1986 e nesses vinte anos sua figura
literária só fez crescer e sua obra é lida e estudada como nunca. Nesse
período foram se esmaecendo os pontos polêmicos em torno do cidadão
Borges e foram se cristalizando os contornos de um riquíssimo universo de
imaginação e invenção verbal, construído em espanhol mas patrimônio da
humanindade. Não por acaso se sucederam nesse período as traduções a
um grande número de línguas.
Este número de Fragmentos teve início no já longínquo ano de 1999,
quando foi realizado um encontro sobre Borges na Universidade Federal de
Santa Catarina. Foram apresentados nesse evento, em versões preliminares,
«Borges cuentista, las reglas del arte», de Isabel Stratta e «Borges e o
uso da história». A esses textos se soma aqui uma variedade de estudos, de
diversa origem. O primeiro deles, de Júlio Pimentel Pinto, revisa a rica
bibliografia recente sobre Borges, com ênfase na relação entre literatura e
história. Segue-se o confronto, feito por Rafael Camorlinga, entre o fantástico
borgiano e o chamado realismo mágico hispano-americano. Carlos
García, por sua vez, apresenta uma investigação sobre Borges e Kafka,
uma relação que já mereceu muitos estudos e que é aqui vista de modo
rigoroso e perspicaz.
Pablo Rocca analisa um capítulo pouco conhecido: a complexa
relação de Borges com o Uruguai, aqui especificamente com os Onetti,
um dos quais, Juan Carlos, teve sua importância ofuscada pela fama
avassaloradora de Borges. Entre os países em que essa fama tem sido
grande e duradoura está, sem dúvida, a Itália, como demonstra Andréia
Guerini em «Borges na Itália».
Um dos muitos mitos tecidos ao redor de Borges é que suas
referências são sistematicamente apócrifas. Ana Cláudia Röcker Trierweiller
e Andréa Cesco mostram, em «Intertexto real e inventado em Borges», que
Fragmentos, números 28/29, p. 011/012 Florianópolis/ jan - dez/ 2005
ResponderExcluirWalter Carlos Costa, Sobrevivências de Borges
Excluiro mundo real tem um peso maior no vasto corpus do autor de Ficciones do
ResponderExcluirque normalmente se pensa.
Um conjunto de três artigos enfoca aspectos específicos do texto
borgiano: Cláudio Cruz segue os meandros de um conto especialmente perturbador
em «Nas pegadas de Marcos: notas a um conto de Borges»; Fernando
Sorrentino (escritor argentino, autor de um dos melhores livros de
entrevista com Borges) traz em «Borges e Arlt: paralelas que se tocam»,
evidências textuais de uma curiosa apropriação borgiana, e Fabiano
Fernandes, em «Duas onisciências: ‘La escritura del Dios’ e ‘El aleph’»,
traça um paralelo entre dois relatos de Borges.
O ensaio, a entrevista e a tradução, merecem estudos
específicos. Leonil Martínez examina os controvertidos primeiros ensaios
borgianos em «O ensaísmo inicial de Jorge Luis Borges: apagamento e
reescritura»; Daisi Irmgard Vogel, em «Borges e a entrevista», visita a ainda
pouco pesquisada obra oral de Borges e Eleonora Castelli, em «Benjamin e
Borges: por uma história da tradução», aborda um dos assuntos que
preocupou Borges ao longo da vida e ao qual dedicou alguns de seus mais
agudos ensaios.
Borges, segundo parecer unânime da crítica, excele tanto na técnica
como no tratamento temático. Dois textos deste número comprovam a destreza
de Borges nos dois terrenos: «As ruínas circulares e os recuos do
narrador», de Karla Mascarenhas, e «Borges e o Sur mítico», de Marlova
Gonsales Aseff.
Este número da Fragmentos oferece uma ampla «Bibliografia de e
sobre Jorge Luis Borges», compilada por Fabiano Fernandes e Andréa Cesco,
algumas resenhas da vasta produção internacional sobre Borges e duas
entrevistas. A primeira delas, como o escritor Flávio José Cardozo, um dos
primeiros tradutores de Borges ao português, e a segunda com Javier Torres,
cineasta argentino.
Como apêndice, Fragmentos apresenta dois documentos de especial
importância: «Borges: ‘Examen de metáforas’: edición crítica y anotada», de
Carlos García, e «El Uruguay de Borges: otros documentos», de Pablo Rocca.
Registramos, por último, o ensaio «Mário/Borges: diálogos entre dois
poetas vizinhos», em que se analisa o contato entre as poéticas do modernista
brasileiro e daquele que foi, no seu momento, o chefe do ultraísmo argentino.
Seu autor, Ronaldo Assunção, faleceu prematuramente no ano passado,
enlutando o hispanismo brasileiro. À memória de Ronaldo, que deixa, entre
outras contribuições, um livro sobre César Vallejo e outro sobre a poesia de
Borges, é dedicado este volume.
Walter Carlos Costa
Walter Carlos Costa, Sobrevivências de Borges
ResponderExcluirBorges dibujó uno de los paradigmas de la literatura argentina: una literatura
ResponderExcluirconstruida (como la nación misma) en el cruce de la cultura europea con la
inflexión rioplatense del castellano en el escenario de un país marginal (Sarlo
1995:51).
Como bem observa Sarlo, o autor também utilizou em vários momentos
de sua obra a concepção de fronteiras (orillas) para demarcar a separação
entre civilização (as coisas da cidade) e o «Sur». Essa concepção começou
a formar-se nos anos 20 e se fez presente na produção literária de
Borges até o fim.
Borges trabajó con todos los sentidos de la palabra «orillas» (margen, filo,
límite, costa, playa) para construir un ideologema que definió en la década
del veinte y reapareció, hasta el final, en muchos de sus relatos (Sarlo 1995:
52).
Um exemplo desse transpor de fronteiras é o personagem Juan
Dahlmann, que sai da zona civilizada da biblioteca e acaba num território
regido por outras leis:
Nadie ignora que el Sur empieza del otro lado de Rivadavia. Dahlmann solía
decir que ello no es una convención y que quien atraviesa esa calle entra en
un mundo más antiguo y más firme (Borges 1995:271).
Com essas frases, Borges delimitou o primeiro marco desse espaço
mítico-imaginário que chamamos de Sur.
Marlova Gonsales Aseff, Borges e o Sur mítico
Mas como alguns textos de Borges chegaram a tomar força de mito?
ResponderExcluirO Dicionário de Mitos Literários propõe que na literatura seja considerado
mito um relato (ou uma personagem implicada num relato) simbólico que
passa a ter valor fascinante (ideal ou repulsivo) e mais ou menos totalizante
para uma comunidade humana mais ou menos extensa, à qual ele propõe a
explicação de uma situação ou forma de agir (Dabezies 1997:731). Note-se
aí que o conceito de mito literário é bastante semelhante às considerações
de Jung e de Freud. A palavra «fascinante» tenta descrever os efeitos classicamente
atribuídos ao «sagrado» num mundo dessacralizado. Assim, numa
sociedade dessacralizada, a produção literária representaria ainda um dos
campos privilegiados onde o mito pode exprimir-se (Dabezies 1997: 735). É
interessante perceber como Borges buscou exprimir o mito desde o início
de sua produção literária. Vale também sublinhar que Borges não criou o
mito Sur, mas sim o reinscreveu no imaginário coletivo:
Na criação literária, o mito intervém na relação do escritor com sua época e
seu público: um escritor exprime sua experiência ou suas convicções através
Marlova Gonsales Aseff, Borges e o Sur mítico
das imagens simbólicas que repercutem um mito já ambientado e/ou são
ResponderExcluirreconhecidas pelo público como exprimindo uma imagem fascinante (Dabezies
1997:732).
O conflito Civilização versus Barbárie já havia sido elaborado literariamente
por Sarmiento pelo menos 70 anos antes de Borges lançar seu
primeiro livro. Certamente, já era latente desde o começo da formação da
sociedade argentina. Também o mito do Sur, enquanto narrativa, não está
contido apenas no conto «El Sur», pois um mito não é identificável com um
único texto. O texto literário não é em si um mito: ele retoma e reedita
imagens míticas:
O mito não se reduz a um tema simbólico simples, ele possui uma estrutura
dinâmica que combina episódios, personagens e situações de acordo com
uma dialética sempre original (Dabezies 1997:733).
IDEM