sexta-feira, 9 de agosto de 2013

BORGES E A CABALA

 
Revista Magistro - ISSN: 2178-7956 www.unigranrio.br Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras e Ciências Humanas – UNIGRANRIO
 
Daniele Ribeiro Fortuna
 
A Cabala
 
Neste início de milênio, proliferam as publicações sobre o chamado esoterismo. Em função dessa preocupação mística, ressurge também o interesse pela Cabala. Muito se fala a respeito deste tema, mas poucos conseguem explicar realmente o que é e qual sua importância para o judaísmo.
A Cabala, como salienta SCHOLEM (1995, p. 20), "não é o nome de um certo dogma ou sistema, mas antes o termo geral atribuído a todo um movimento religioso em si". Tal movimento vem se desenvolvendo desde os tempos talmúdicos até hoje e consiste nas interpretações das Antigas Escrituras ou Torá, as quais surgiram a partir do momento em que o Talmude – livro que se constitui numa complementação à Torá e que contém a lei e as tradições judaicas – foi compilado pelos doutores hebreus, no período que vai do século III aC. ao fim do século V d.C.
Concentrados não somente no conteúdo, mas também no formato da Torá, os cabalistas buscavam, através de métodos criptográficos, combinar as letras, formando novas palavras e, portanto, novos sentidos. Valiam-se também de um corpus symbolicum (o qual, na sua opinião, estava disponível na Torá), que, segundo AIZENBERG (1986, p. 96), era composto por "uma série de imagens irracionais que, a seu modo de ver, permitia compreender as obras de Deus, a humanidade e o cosmos com mais êxito que as formulações dos filósofos".
Aliás, embora não tenha surgido como uma forma de reação ao racionalismo excessivo dos filósofos judeus, a Cabala acabou se opondo a ele. Influenciada pelo gnosticismo e pelo pensamento mitológico primitivo, os cabalistas buscavam descobrir um novo estrato da consciência religiosa.
Dessa forma, a Cabala implicou um retorno à velha tradição bíblico-hebraica de sugerir problemas mediante metáforas. Cada símbolo cabalístico, cada imagem individual, que faz parte de um sistema maior, é sempre uma chave para o todo. E essa estratégia de sugestão incita a busca da verdade, o questionamento e a interpretação investigativa do Texto Sagrado.
Considerada como o Livro Absoluto, cujo autor é o próprio Espírito Santo, a Torá é o coração de todo significado. Nela, estão impressas a essência e a lei cósmica do universo, concebidas por Deus – que se constitui no Ponto primordial em que se apoiam todos os pontos da criação. Nela, não há lugar para acasos ou contingências. Nela, não há imprevistos, tudo faz sentido e obedece a uma ordem e significado perfeitos e infinitos. Nela, não se admitem correções, variações ou mudanças. As Sagradas
Escrituras são o Verbo, são a palavra e o atributo de Deus e nelas estão ocultos todos os segredos do universo.
Cabe ao cabalista esmiuçar a Torá e descobrir estes segredos, retornando ao momento primeiro da criação. Comentando o texto de Jorge Luis Borges, "O idioma analítico de John Wilkins", AIZEMBERG (1986, p. 102) afirma que "foram os cabalistas (...) quem propuseram a Escritura como espelho do esquema universal de Deus, como a soma das palavras, definições, etimologias e sinônimos celestiais que criam um cosmos dentro do caos".
Scholem vai mais além e explica que:
a Torá é para eles [os cabalistas] um organismo vivo, animado de uma vida secreta que corre e pulsa sob a crosta de seu significado literal; cada um dos inumeráveis estratos desta região oculta corresponde a um novo e profundo significado da Torá. A Torá, em outras palavras, não consiste apenas em capítulos, versículos e palavras; deve ser encarada antes como a encarnação viva da sabedoria divina que eternamente emite novos raios de luz. SCHOLEM (1995, pp. 15-16)

Mas não somente a Torá tem um significado especial para os cabalistas, como também a linguagem. Na sua visão, o hebraico tem um valor místico, que reflete a linguagem criadora de Deus. Utilizando a linguagem, os cabalistas apresentavam sua busca religiosa em forma de textos apócrifos e glosas revisionistas a textos sagrados, que acabavam multiplicando seu sentido original.
Na realidade, muitas vezes, alguns cabalistas se valiam da Cabala para comunicar suas próprias idéias, como se elas proviessem naturalmente das Sagradas Escrituras. Eles faziam uso também do recurso da pseudoepigrafia, segundo o qual o autor de uma obra evita assumir-se como autor, para atribuir a autoria a um sábio, que, geralmente, era de grande importância para a tradição judaica.
Segundo SCHOLEM (1995, p. 135), que a utilização deste método tinha basicamente dois motivos: o sentimento de modéstia do cabalista e o desejo de influenciar os futuros leitores – "Daí a busca de continuidade histórica e a santificação da autoridade, e daí a tendência a emprestar à literatura cabalista o brilho de grandes nomes dos templos bíblicos ou talmúdicos".
O método pseudoepigráfico era tão importante para os cabalistas que até hoje não se sabe ao certo se sua obra fundamental, o Zohar – ou "Livro do Esplendor" –, foi realmente escrita por Moses de León, como não duvida BLOOM (1996, p. 16), ou por um escritor desconhecido, ou ainda por outro cabalista cuja identidade perdeu-se no passado, como questiona SCHOLEM (1995, p. 212).
Todos esses elementos cabalísticos foram fundamentais para Borges, que acreditava que a Cabala foi responsável não somente pela sacralização do Livro dos livros, mas de todos os livros e seus autores.

Borges e a Cabala

O interesse de Jorge Luis Borges pela Cabala não era metafísico, e sim estético. Em "Uma vindicação da Cabala", BORGES (1998, p. 222) afirma que não quer "vindicar a doutrina, mas os procedimentos hermenêuticos ou criptográficos que a ela conduzem". Ele não acreditava sequer no Deus dos cabalistas nem na possibilidade de se encontrar uma chave que pudesse levar o homem a compreender o cosmos
Mas talvez a maior diferença entre a literatura borgeana e a Cabala esteja na visão cabalística segundo a qual os significados contidos nas Sagradas Escrituras jamais poderiam ser atrozes ou triviais. Para Borges, a realidade implícita em um texto poderia ser banal, desde que a economia narrativa assim o exigisse. Entretanto, o escritor argentino admitia que a sacralização que os cabalistas fizeram da letra e da linguagem foi essencial para que o papel do escritor na ordem da criação humana fosse reconhecido. Segundo Borges, o centro de seu mundo era o livro e suas palavras, sagradas.
Ao elevar o livro à condição de Absoluto, realçando a escritura e a linguagem como elementos criativos próprios de Deus – que, por sinal, falava com os homens através das páginas desse Livro –, os cabalistas também tornaram possível a defesa da literatura. O livro deixou de ser apenas meio para se atingir um fim, para se transformar no fim em si.
De acordo com Borges, foi essa valorização da palavra escrita, transferida para a literatura secular, que abriu caminho para o surgimento de escritores como Gustave Flaubert, Stéphane Mallarmé, Henry James e James Joyce, que consideravam o seu ofício sagrado. Ao contrário do que pensavam os antigos, para os quais, segundo o escritor argentino, a palavra escrita era apenas sucessora da palavra oral, esses autores viam a literatura como "artefatos independentes, tão sólidos, recomendáveis e importantes como outras maravilhas criadas por obra do homem, até por obra da Natureza" (AIZEMBERG, 1986, p. 101).
Entretanto, a sacralização do livro e a veneração pelas Sagradas Escrituras não estavam intimamente ligadas somente à valorização da linguagem e do escritor, como também à importância que os cabalistas conferiam à tradição.
Cabala em hebraico quer dizer tradição e os cabalistas a encaravam como continuidade com o passado, que deve ser constantemente renovada. E Borges também reconhecia a influência conformadora da tradição (que precisa, segundo ele, ser preservada) e a necessidade de reescrevê-la, de revisá-la. A exemplo de Moses de León e o seu (?) Zohar, Borges buscava a síntese entre rebelião e continuidade.
AIZENBERG (1986, p. 109) sustenta que, para Borges, "aceitar a tradição e trabalhar sobre ela não implica a repetição esclerótica; a „irreverência‟, a liberdade audaz de interpretação é a atitude que se deve adotar ante as eternas metáforas do Ocidente". Na verdade, a literatura de Jorge Luis Borges se constitui num comentário revisionista das tradições, as quais, no seu modo de ver, deviam ser relidas, reinterpretadas e reinventadas. Nesse sentido, seus escritos eram uma consequência dessa forma de pensar: "Tudo sucede pela primeira vez, mas de um modo eterno. Aquele que lê minhas palavras está inventando-as" (BORGES apud SOSNOWSKI, 1991, p. 12).
Outro aspecto que atraía Borges com relação à Cabala era a linguagem metafórica. Assim como os cabalistas, o escritor argentino pensava que as verdades e o sentido não deveriam ser oferecidos prontos: o leitor deveria buscá-las, investigá-las, preencher os espaços vazios do texto. Para tanto, Borges fazia uso constante de metáforas e adotava a fórmula do enigma apresentado através de símbolos, muito empregada pelos cabalistas em seus textos. Para expressar suas idéias, criou também seu próprio corpus symbolicum, que incluía espelhos, tigres, labirintos etc. Dessa forma, o leitor de Borges é instigado a desvendar mistérios. Ele é incorporado ao processo artístico, já que precisa decifrar o texto para encontrar suas próprias soluções.
Para montar essa literatura de "quebra-cabeças", Borges elaborava uma estrutura calculada, complexa e plena de significado e de revelações, que, à semelhança da Torá, não podia incluir nenhum tipo de acaso ou contingência. Nesse sentido, aliás, é que ele acreditava que a sua literatura – ou os textos do escritor intelectual em geral – eram os que mais se aproximavam do modelo celestial das Sagradas Escrituras.
Mas não somente a ficção de Borges era imbricada de metáforas, como também a própria autoria de seus textos. O autor de O Aleph não raramente se inspirava na atribuição errônea de alguns escritos cabalísticos – cujos autores, como já foi dito, se valiam também da pseudoepigrafia – para induzir o sentimento de irrealidade no leitor. Em muitos de seus contos, o escritor Borges desaparecia e o substituía outro autor apócrifo. Tal fato se dava também em função da influência da idéia bíblica de uma literatura impessoal e ditada. AIZENBERG (1986, p. 107) completa, lembrando que "junto com essas mistificações, encontram-se as referências a livros inventados e os comentários a obras fictícias que adornam os textos de Borges".
De acordo com Aizenberg, a visão de Borges da literatura como glosa revisionista dos textos tradicionais se assemelha muito à atual noção de intertextualidade. Borges – como os mais pós-modernos escritores – cita, transforma e renova em seus escritos não somente obras canônicas, como também textos mais recentes. É a confirmação de uma postura irreverente frente à tradição. Não raro também seus personagens são escritores e seus textos giram ao redor de outros textos.
Mas de que forma a Cabala aparece nos escritos de Borges? Como se dá realmente essa influência na sua literatura? É o que se pretende analisar brevemente a seguir.
 

A influência cabalística nos contos de Borges: "Exame da obra de Herbert Quain", "Tlön, Uqbar, Orbis Tertius" e "A biblioteca de Babel"

Na literatura de Borges, a Cabala se manifesta de duas formas: como conteúdo – citação e/ou alusão – ou como estrutura. Ou seja, a Cabala pode aparecer como tema ou como formato, de forma que o leitor necessite interpretar, investigar, esmiuçar o texto para dele extrair algum sentido – que nunca é único. Assim como as Sagradas Escrituras, os textos de Borges podem apresentar vários outros sentidos além do literal.
Os contos e poemas de Jorge Luis Borges também incluem vários símbolos cabalísticos, como o gólem, o labirinto, os tigres, os círculos, o espelho e o aleph. Aliás, o aleph e o labirinto – primeira letra do alfabeto hebraico – são temas de dois dos mais famosos contos de Borges. Em "O Aleph", o elemento aleph se transforma num Ponto em que a toda a multiplicidade caótica se converte em unidade. E em "O jardim das veredas que se bifurcam", o protagonista descobre que seu antepassado havia escrito um livro que se constituía em um labirinto de símbolos, no qual os leitores deparavam com várias alternativas: diversos futuros, diversos tempos que proliferavam e se bifurcavam em vários desenlaces possíveis.
Mas o objetivo é discutir de que forma os símbolos cabalísticos, além da própria Cabala, atuam em três contos de Borges: "Exame da obra de Herbert Quain", "Tlön, Uqbar, Orbis Tertius" e "A biblioteca de Babel".
Em "Exame da obra de Herbert Quain", Borges – na verdade, como na maioria de seus contos, não se sabe ao certo se é mesmo Borges ou qualquer outro escritor apócrifo – relata a história de um escritor obscuro, cujos livros têm como característica principal o enigma. Em suas leituras de Quain, o leitor deve se comportar como um cabalista: interpretar e decifrar os mistérios que o livro apresenta. A solução não é única e cada um pode tirar suas próprias conclusões – "O leitor, inquieto, revê os capítulos pertinentes e descobre outra solução, que é a verdadeira. O leitor desse livro singular é mais perspicaz que o detetive" (BORGES, 1998, p. 512).
Herbert Quain escreve um romance (April March), no qual há infinitas histórias, infinitamente ramificadas e, portanto, infinitos sentidos. De fato, são livros dentro de livros, histórias dentro de histórias, que dão margem a inúmeros comentários, ampliando seus sentidos e suas verdades.
Borges utiliza também diversos símbolos: um rouxinol, uma noite, um duelo, mas, ao contrário das Sagradas Escrituras, não é possível saber se seu significado é atroz ou trivial, isto é, se há realmente um significado ou se são somente pistas que o escritor argentino dá para confundir seus leitores.
Borges inicia o conto "Tlön, Uqbar, Orbis Tertius" com um de seus símbolos mais usados: o espelho. Através da conjunção de um espelho – que implica sempre a possibilidade de uma outra e diversa realidade – e de uma enciclopédia, ele descobre Uqbar. O escritor argentino e seu amigo Bioy Casares, ao observarem um espelho, percebem sua monstruosidade, o que leva Casares a se lembrar do que declaravam os heresiarcas de Uqbar: "os espelhos são abomináveis, porque multiplicam o número dos homens" (BORGES, 1998, p. 475).
Mas eles descobrem também que o verbete "Uqbar", que fora encontrado por Casares na The Anglo-American Cyclopaedia, só constava de determinadas e especiais edições desta coleção. Uqbar era uma região imprecisamente localizada pela enciclopédia no Iraque ou na Ásia Menor. Segundo o livro, as lendas de Uqbar não se referiam nunca à realidade, mas às duas regiões imaginárias de Mlejnas e Tlön.
Um tempo depois, Borges encontra um livro – que fora misteriosamente remetido do Brasil para seu falecido amigo Herbert Ashe –, o qual relata a história de Uqbar, Tlön e Orbis Tertius. O escritor argentino descreve o livro como:
"um vasto fragmento metódico da história total de um planeta desconhecido, com suas arquiteturas e seus naipes, com o pavor de suas mitologias e o rumor de suas línguas, com seus imperadores e seus mares, com seus minerais e seus pássaros e seus peixes, com sua álgebra e seu fogo, com sua controvérsia teológica e metafísica. Tudo isso articulado, coerente, sem visível propósito doutrinal ou tom paródico." (BORGES, 1998, p. 479)
Neste livro – que era o décimo primeiro tomo –, havia alusões a tomos posteriores e precedentes, mas não ficava claro quem eram os inventores de Tlön. Conjecturava-se que este mundo imaginário era formado por uma sociedade seleta (tal como o foram os cabalistas) e secreta.
Na verdade, o décimo primeiro tomo era como o Livro Absoluto. Nele, estavam contidos todos Tlön e todos os seus segredos e, para descobri-los, era preciso fazer como os cabalistas: esmiuçá-lo e esgotá-lo, na tentativa de obter seu sentido. Para tanto, era importante compreender a linguagem de Tlön, na qual não existem substantivos, e sim "verbos impessoais, qualificados por sufixos (ou prefixos) monossilábicos e valor adverbial" (BORGES, 1998, p. 480). Para os tlönistas, o mundo "não é um concurso de objetos no espaço; é uma série heterogênea de atos independentes. É sucessivo, temporal, não espacial" (BORGES, 1998, p. 480).
Assim como os cabalistas, os tlönistas acreditavam que o mundo se fazia a partir da linguagem e que metáforas e símbolos eram imprescindíveis para representá-lo. Aliás, não há somente alusões à Cabala, como o próprio conto é escrito sob a forma de símbolos, metáforas e enigmas, que cabe ao leitor desvendar. Dois exemplos interessantes se encontram no final do conto. O primeiro é a assombrosa reprodução dos objetos imaginários de Tlön no mundo real – tais objetos secundários tinham o nome de hrönir. E o segundo é a existência de um cone de metal reluzente, do diâmetro de um dado, que tinha um peso intolerável. Tais símbolos, da mesma forma que a Cabala, podem ter significados ocultos e importantíssimos, mas essa descoberta depende de cada leitor.
Outro ponto de contato entre Tlön e a Cabala é que, a exemplo dos cabalistas, os tlönistas também não assinavam suas obras. A própria Cabala era objeto de estudo dos tlönistas, que realizaram em quarenta volumes uma revisão escrita de Tlön, o Orbis Tertius.
Por fim, Borges esclarece que Tlön seria "um labirinto, mas um labirinto urdido pelos homens, um labirinto destinado a ser decifrado pelos homens" (BORGES, 1998, p. 488). E essa decifração deve ser feita por homens que agem como cabalistas
esmuiçando exaustivamente o texto – e que realmente acreditam que um livro pode ser Absoluto e conter todos os segredos do mundo e dos homens e suas obras.
"A biblioteca de Babel" tem como fio condutor o bibliocentrismo, ou seja, a crença de que os livros estão no centro do mundo. Tal idéia parece ter sido fortemente influenciada pela Cabala, já que, para os cabalistas, todos os segredos do mundo e dos homens estão nas Sagradas Escrituras.
Borges inicia o conto explicando que "O universo (que outros chamam a Biblioteca) compõe-se de um número indefinido, e talvez infinito, de galerias hexagonais, com vastos poços de ventilação no centro, cercados por balaustradas baixíssimas" (BORGES, 1998, p. 516). E, no vestíbulo da Biblioteca – que é o mundo –, há um espelho duplicando as aparências e tornando mais forte a impressão de que ela é infinita.
Muitos habitantes da Biblioteca têm um objetivo: encontrar o catálogo dos catálogos. O livro que explique o mundo e que, na visão dos Cabalistas, é a Torá. A Biblioteca, assim como os livros, é obra de um Deus. Ele ditou todos os títulos que ali existem, da mesma forma que a Bíblia foi ditada pelo Espírito Santo.
Na Biblioteca, há obras que se constituem em verdadeiros labirintos de letras. Os homens, à semelhança dos cabalistas, devem tentar decifrá-los, procurando exaustivamente seu sentido. Apenas valendo-se de métodos criptográficos é que talvez seja possível compreender o significado de um livro do qual constava as letras M C V, repetidas da primeira letra até a última, ou ainda, de um outro que é "um simples labirinto de letras, mas a página penúltima diz Oh, tempo tuas pirâmides" (BORGES, 1998, p. 518).
O narrador sustenta a noção cabalística de que todas as sílabas podem conter um significado secreto e especial – e até mesmo o nome de Deus – e que nenhuma fala pode superar a escrita: "Ninguém pode articular uma sílaba que não esteja cheia de ternuras e de temores; que não seja em alguma dessas linguagens o nome poderoso de um deus. Falar é recorrer em tautologias" (BORGES, 1998, p. 522).
De fato, "A biblioteca de Babel" parece ser uma metáfora das Sagradas Escrituras. Isto é, a Biblioteca seria um mundo de livros – que explicam o universo e os homens –, nos quais está escrito o nome de Deus e que jamais serão superados por qualquer tipo de fala.

Borges, o cabalista

Talvez Jorge Luis Borges tenha sido mais que um escritor. Talvez ele tenha sido um demiurgo, que transportava para seus livros metáforas que continham o sentido do mundo. Talvez ele soubesse dos segredos do universos e das angústias dos homens. Talvez ele acreditasse – e pudesse provar – na existência de um universo paralelo, que reproduz infinitamente a realidade do chamado mundo real.
Talvez Borges fosse um deus que escrevia de próprio punho suas sagradas (ou profanas) escrituras. Mas Borges pode ter sido apenas mais um cabalista, que interpretava a Torá e redigia sua obra inspirado – ainda que de forma aparentemente desconexa – nas suas palavras.



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