segunda-feira, 5 de agosto de 2013

PAISAGEM CYBERPUNK


Giovani Rossano Pinotti


Cada momento histórico parece traçar projeções próprias ao futuro em

correspondência com os valores de sua atualidade ou em correspondência com as

referências programáticas nas quais o pensamento do período se alicerça. Na idade

moderna a idéia de uma futura utopia tecnológica serviu como visão orientadora do

que mais tarde veio ser a sociedade industrial. Sonhadores utópicos do passado

como os escritores R. H. Benson, Aldous Huxley, George Orwell, Ray Bradbury,

Bernard Wolfe dentre outros, vislumbram um futuro onde as máquinas substituiriam

o trabalho humano, criando uma sociedade praticamente sem trabalho, de

abundância e lazer. Na utopia tecnológica tudo seria submetido à minuciosa


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inspeção da ciência. Todas as invenções significariam a liberdade de todos os

aborrecimentos que envolvem a organização doméstica e do trabalho, pois, segundo

os utopistas tecnológicos, usar cada vez mais tecnologias sofisticadas é

proporcionar conforto, economia, conveniência e liberdade, um sonho que todo ser

humano gostaria de conceber.

Para que se possa adentrar ao mundo do cyberpunk, conceitos de utopia e

distopia devem ser compreendidos. O termo utopia vem da palavra grega outopos

que significa lugar nenhum. Seu conceito se dá devido a uma obra renascentista

datada de 1512 com nome análogo, escrita por Tomás Morus, que idealiza um

mundo hipotético perfeito, a ilha de Utopia, onde a propriedade privada não existiria,

e o alcance dos interesses individuais apenas seria viável, se preenchesse as

necessidades coletivas. Nesse mundo, fechado e ordenado, sem conflito e, portanto,

sem história, tanto os costumes quanto a cultura e o governo seria diretamente

submetidos ao bem comum. A obra foi fundamentalmente inspirada em A República

de Platão, que trata o desenvolvimento de uma sociedade perfeita. Portanto a

concepção de Utopia deve-se às idéias deste pensador. O conceito de idealização

utópico é geralmente ligado a algo perfeito e inalcançável que está longe do mundo

real.

As possibilidades oferecidas pela tecnologia, onde a crença no progresso

científico atrelado a um futuro melhor foi o que caracterizou a modernidade, presente,

por exemplo, em narrativas de Júlio Verne e H. G. Wells. Porém, essa visão otimista

sobre a ciência moderna começa a ser mitigada (ou minimizada) nas obras de

Aldous Huxley e George Orwell, onde o otimismo começa a ceder lugar a uma visão

distópica, pessimista do futuro, que se torna característica da Sci-fi desde então.

Nesta perspectiva de ideal perfeito surge o termo distopia, que significa lugar

mau, anormal ou estranho. A distopia é o acordar de um sonho progressivamente

degenerado em pesadelo, que sublinha não só a insuficiência das condições para a

realização de ideais de felicidade, mas também a ameaça do coletivo sobre as

liberdades individuais, sociais e de participação política, ou seja, a distopia é o

contraponto da utopia que Pinto (2003) reflete como "a proposta de um avanço

científico-social culmina em estruturas opressoras e populações alienadas". (p.15-

16).

Em certa perspectiva, os romances distópicos têm uma função preventiva:


 

Ray Bradbury costumava dizer que a função da Sci-fi não era prever o

futuro e sim evitá-lo. E nesta perspectiva, ela foi bem-sucedida, já que

conseguimos evitar a guerra nuclear e o mundo das ditaduras monolíticas

de Orwell e Huxley. Coisas sobre as quais os autores do passado nos

advertiram". (Calife, 2001, p.7)

 

Função essa que é confirmada por Causo (2003), quando expressa a

necessidade da interferência associada ao desejo de mudança nas estruturas

sociais e culturais existentes na sociedade buscando melhorias futuras:

É necessário que o autor pressuponha a existência de falhas no sistema

social e político que ele ataca, e que essas falhas possam ser corrigidas,

que o sistema possa ser transformado. (p. 59)

Conforme o contexto exposto, não se pode deixar de citar romances distópicos

famosos como Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, 1984 e A Revolução dos

Bichos, de George Orwell, que têm um ponto em comum, a observação da

sociedade na época em que foram escritos, com intuito de ressaltar a atenção das

pessoas para que se evite um futuro calamitoso, evitando o futuro previsto nas obras.

Os romances distópicos influenciaram muitas gerações e estão presentes

ainda hoje. Pode-se tomar como exemplo a releitura que a banda de heavy metal

Iron Maiden faz de Admirável Mundo Novo ao gravar um Compact Disc (CD),

gravado no ano 2000 pela EMI e intitulado Brave New World. Uma de suas

composições mostra claramente a intenção de advertir a sociedade para um mundo

distópico, como pode ser visto na estrofe abaixo:

 

Desnorteadora casa de medo, ela não faz sentido algum, aprisione essa

mente, estupefique esse cérebro. Messias antes da sua queda, o que você

vê, não é real, aqueles que sabem não vão dizer, tudo está perdido, venda

sua alma para esse Admirável Mundo Novo.

Reis despóticos, rainhas moribundas, onde está a salvação agora? Perdi

minha vida, meus sonhos, ossos arrancados da minha carne. Gritos

silenciosos gargalhando aqui, moribundos para te dizerem a verdade. Você

é planejado e está condenado, nesse Admirável Mundo Novo. (Brave New

World, CD. 2000)13

 

A Revolução dos Bichos, publicado em 1945 deu margem para Chico Buarque

escrever, em 1974, a Fazenda Modelo, onde novamente é feita uma releitura da

obra que satirizou a revolução russa. A de Chico Buarque, por sua vez, buscou

ecoar a sociedade brasileira. A visão contrastante de ambas é uma administração

feita por animais inescrupulosos que alienavam o restante da população das

fazendas.

A alienação da população, descrita nas obras distópicas como uma cultura de

massa desprovida de reflexões e questionamentos e a repressão e manipulação

ideológica, feitas por grandes corporações, abrem a discussão para o ambiente

social que a Sci-fi cyberpunk habita. A tecnologia, ambientada em um futuro

distópico, muito próxima do tempo corrente, é desvirtuada no seu papel facilitador da

vida moderna, ampliando os problemas sociais que prometera resolver.

Neste sentido, o escritor Philip Dick, traz à tona romances com conteúdo

distópico, convicto de que o gênero Sci-fi poderia melhor abarcar as suas

especulações filosóficas 14 . Seu livro, Do Androids Dream of Electric Sheep?,

precursor da literatura cyberpunk, conta a história de Rick Deckard, um policial que

atua como caçador de recompensas e persegue andróides em San Francisco no

ano de 1992 e por ter êxito em suas missões, Rick é destacado para caçar seis

andróides específicos, uma classe denominada como Nexus 6, dotados de

capacidades físicas e mentais bastante superiores às do homem. Estas máquinas

com a matriz cerebral Nexus 6, são indistinguíveis de seres humanos - salvo apenas

que lhes falta empatia, e é nesta falha que Rick usa um método de detecção de

andróides o Voight-Kampff test, que causa horror aos mesmos, devido à sua falta de

sensibilidade ao dar respostas, pois quando detectados a sua aposentadoria – morte

da Inteligência Artificial – é iminente.

Esta narrativa de Dick inspirou o produtor e diretor de cinema Ridley Scott,

quando a adapta para o filme intitulado Blade Runner, O caçador de andróides,

considerado como cult da década de 80 e que expressa com muita propriedade o

espírito do pós-modernismo, ambientado nas distopias – tecnocracia, consumismo,

comércio, lucro e deformação sujeito enquanto indivíduo tornando-o fragmentado e

desestabilizado. O elemento marcante do desenvolvimento do filme é que as

máquinas se tornam cada vez mais humanas, enquanto os humanos que as caçam

aparentam uma frieza emocional que os deixa desumanos,

O contexto cyberpunk é amalgamado em uma história onde ciência e

tecnologia seriam os principais vetores de mudança e melhorias sociais, facilitando

as condições existenciais da humanidade. Contudo, isso não acontece e a cultura

tecnológica é manipulada ideologicamente nos seres humanos e, por conseqüência,

cria uma sociedade de indivíduos marginalizados e um ambiente caótico.

A tecnologia é estendida até os humanos através de implantes mentais,

próteses ou clonagem formando o elemento cibernético da literatura cyberpunk, em

relação ao movimento punk. O fator de desenvolvimento se dá na atitude do

movimento criado na Inglaterra na década de 70, contudo, no conceito desta

literatura protagonizam os sujeitos que viviam como marginais e criminosos. Nesse

sentido, a narrativa foca principalmente a atitude de subversão e o uso da tecnologia

para render o sistema vigente. Geralmente protagonizada por anti-heróis, com seus

corpos modificados (o que os torna ciborgues) as narrativas mostram um cenário

sócio-político em que corporações gigantescas dominam todos os campos da

sociedade e situações ligadas à contemporaneidade das grandes cidades modernas,

assoladas pelo crime, pela poluição e pela degradação das relações sociais. O

cenário futurista, contudo, não é algo absolutamente diferente da paisagem

contemporânea. Tudo o que se apresenta na narrativa cyberpunk se parece muito

com o que vivemos no início do século XXI, cumprindo a intencionalidade da Sci-fi

distópica. Pela familiaridade com o presente e estranhamento com relação ao porvir,

cumpre-se uma espécie de alerta aos leitores.

Caidin (1972) tem uma definição que representa a modificação corporal dos

ciborgues das narrativas de Sci-fi:

Para transformar a carcaça de um humano mutilado não apenas em um

novo homem, mas em um tipo totalmente novo de homem. Uma nova raça.

Um casamento da biônica (biologia aplicada à engenharia de sistemas

eletrônicos) e cibernética. Um organismo cibernético. Chame-o de ciborgue.

(p. 55-56)15

 

O final da década de 70, "foi marcado pela insatisfação do conservadorismo

social e não se identificava com a contracultura hippie dos anos 60", conforme

explica Fernandes (2003. p. 51), "pois esta era rural, romantizada, anti ciência e

tecnologia" (ibid. p. 51), já os cyberpunks eram contra o sistema e jamais seriam

contra a tecnologia.

O termo cyberpunk tem origem em um conto de Bruce Bethke de título análogo,

escrito em 1980. Segundo Fernandes (2006):

Depois de sofrer um ataque de hackers, Bethke decidiu escrever essa

história, e criou esse título numa tentativa consciente de inventar um

neologismo que exprimisse a justaposição de atitudes punk e alta

tecnologia. (p. 52-53)

 

Desse modo, com a ajuda de Gardner Dozois, que nos anos 80 era o editor da

revista americana de contos de Sci-fi Isaac Asimov Magazine, e do conto intitulado

Cyberpunk de Bethke, o termo cyberpunk entrou no imaginário coletivo. Com o

intuito de combater a estagnação e a não repercussão da Sci-fi, um grupo de cinco

autores – Bruce Sterling, Rudy Rucker, Lewis Shiner, John Shirley e William Gibson

– se reuniram no final da década de 70 para criar o movimento cyberpunk.

2 comentários:

  1. Que legal que meu texto, mesmo tendo sido escrito em 2010 foi bem aproveitado em seu blog. Parabéns pela difusão do conhecimento. Grande abraço.

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