sexta-feira, 9 de agosto de 2013

INTERVISTA

 
 
ENTREVISTA COM LYSLEI NASCIMENTO REALIZADA POR ELIANE FERNANDA CUNHA FERREIRA
 
A InterLetras, nas comemorações dos 20 anos da morte de Jorge Luis Borges, entrevista LYSLEI NASCIMENTO para contar um pouco da sua pesquisa de doutorado sobre a obra do escritor argentino. Professora Adjunta de Literatura Brasileira na UFMG, atua na Graduação e na Pós-Graduação. Coordena, desde sua fundação, em 2004, o Núcleo de Estudos Judaicos da UFMG (NEJ). Em 2003, co-organizou o livro de ensaios O corpo em performance; em 2004, Os fazedores de golems e em 2005, Estudos Judaicos: ensaios de literatura e cinema.
 
E.F. Está no prelo o seu livro Borges e outros rabinos, cuja temática aproxima a tradição judaica e a literatura, valendo-se das palavras-chave leitura, decifração, traço, memória e vestígio para interpretar a obra de Jorge Luis Borges. Em que o seu trabalho diferencia-se dos estudos de Saúl Sosnowski, Borges e a Cabala, e de Emir Rodríguez Monegal, Borges: uma poética da leitura?
 
L.N. Certamente que os estudos de Saul Sosnowski e Emir Rodriguez Monegal, além dos de Edna Aizenberg, foram fundamentais para minha pesquisa. Busquei, além da comprovação e da descrição da presença judaica na obra de Borges – o que foi, num primeiro momento, necessário – analisar uma estratégia de construção textual, própria da tradição judaica. Ou seja, é certo que Borges utiliza temas judaicos em seus textos, mas o que busquei foi detectar uma certa dicção judaica, melhor dizendo, uma poética judaica, que irá se fundamentar, em Borges, na tradição rabínica dos comentários, da interpretação, do culto aos livros. Para isso, escolhi quatro marcos importantes da obra borgiana: a letra, a palavra, a inscrição e o enigma. Em “Letra”, analisei o célebre conto “O Aleph” que, faz migrar, da tradição judaica, com sua concepção de objeto mágico, a primeira letra do alfabeto e suas múltiplas concepções simbólicas. Dessa tradição cabalista até Dante, na Divina Comédia, passando por trabalhos do artista plástico norte-americano, Joseph Kosut, o simbolismo da letra e a proliferação de narrativas sobre sua configuração cabalista são, na tese, confrontados com o uso ficcional que Borges lhe atribui. Na segunda parte, “Palavra”, analiso o poema “O Golem” – considerado por Borges como o mais perfeito de toda sua obra – parti da idéia da palavra criadora, cara à concepção judaica de criação do mundo, do homem, da linguagem. Nas exposições sobre a criatura, criada por um rabino para proteger a comunidade judaica, aparece um princípio de emulação com a criação divina que, a todo momento, nos alerta do perigo de se perder o controle sobre as criaturas. A terceira parte da tese, “Inscrição”, trata de dois contos importantes de Borges sobre o Nazismo. “Deutches requiem” e “O milagre secreto” possibilitaram uma reflexão sobre memoriais e museus sobre a Shoah. A partir dessa reflexão, pude empreender uma aproximação entre monumento e literatura, destacando a tensão entre lembrança e esquecimento. Dessa forma, a partir de um narrador – um escritor judeu condenado à morte com uma obra inacabada por terminar – e da memória de um carrasco nazista – que justifica todas as atrocidades cometidas em um campo de morte – reflito sobre a literatura contemporânea e a tentativa de sobrevivência da memória pela escrita, contra as estratégias de soterramento e revisionismo da Shoah. Finalmente, em “Enigma”, no conto “A morte e a bússola”, a fim de verificar uma provável conexão entre a narrativa policial, a viagem e os textos contemporâneos – a partir da tradição judaica – empreendi uma leitura comparatista da busca cabalística do Nome de Deus, a história de detetive e a construção da narrativa na contemporaneidade.
 
E.F. Você comenta que em uma entrevista publicada pela revista argentina Raíces, Borges afirma que seus estudos da Cabala se iniciaram a partir da leitura do romance Der Golem, de Gustav Meyrink, e de uma conversa com Gershom Scholem, um dos mais importantes estudiosos sobre a Cabala. A figura do Golem faz parte do imaginário cultural no Ocidente, gerando filmes e exposições em Museus. Aliás, você organizou um livro com essa temática. Fale mais um pouco dessa “deformação”, desse “monstro” presente na literatura borgiana.
 
L.N.O tema do Golem é apaixonante. Trata-se de uma lenda judaica, que aparece em meados do século XIX, sobre a criação de gigante de barro por um rabino no século XVI. Há inúmeras versões sobre essa lenda, no entanto, a mais famosa é a do Golem de Praga. Conta-se que, quando o gueto judaico estava sendo saqueado, as mulheres violadas e as crianças queimadas, o rabino Judá Leon (1525-1609), um matemático, cabalista e talmudista – conhecido como o Maharal de Praga, cujo túmulo pode ser ainda visitado no antigo cemitério da cidade, moldou um grande boneco de argila em forma humana. Ao assoprar em suas narinas, o boneco começa a se mover. Então, o rabino sussurrou no ouvido da criatura uma palavra mágica e escreveu na testa (algumas versões dizem que a escrita foi na mão ou num papel introduzido na boca ou no peito) do Golem a palavra hebraica ´emet, que significa “verdade”. Alguns relatos afirmam que a palavra escrita e assoprada pelo rabino é o Nome misterioso de deus. O Golem, então, sai do gueto e ataca os agressores, massacrando-os. Depois, no entanto, o rabino, temeroso de perder o controle sobre essa criatura monstruosa, resolve destruí-lo. O Golem se apresenta nas inúmeras versões da lenda como uma ameaça aos homens. No momento em que esse ser descomunal é desnecessário, ou intenta ascender a um lugar que não lhe pertence, ele é, estão, sob subterfúgios, eliminado. Assim, o rabino apaga da palavra ‘emet’, a letra Aleph, aqui na transliteração, representada pela apóstrofe e o som “e”. Tem-se, então, met, que quer dizer “morto”. Quando a letra é apagada da inscrição no Golem, este volta a se tornar uma massa informe de argila sem vida. O poder mágico da escrita sobre a matéria inerte corresponderia à criação que, aspirando à Verdade e, no entanto, falha e imperfeita. O jogo entre as palavras e as coisas, bem como as combinações e os remanejamentos do alfabeto identificam, portanto, essa idéia da criação e seu caráter de imperfeição. Toda criação está sujeita, então, a erros de cálculos, falhas de projetos. A monstruosidade sinistra se insinua nesse erro intrínseco à toda obra, inclusive literária. O Golem aparece em textos de escritores importantes como Bashevis Singer e Elie Wiesel; está presente em séries de TV, como o episódio “Kadisch”, da 4ª. Temporada do Arquivo X, ou mesmo no programa de um computador em O pêndulo de Foucault, de Umberto Eco; há Comics sobre o Golem, além de óperas, bales e pe~cas teatrais; mas muitos outros golems estão presentes no nosso imaginário: a criatura do Dr. Frankenstein talvez seja a mais famosa; também os robôs dos filmes Inteligência artificial, de Spielberg, e Eu robô, de Alex Proyas, baseado na obra de Asimov; ou ainda Blade Runner, de Ridley Scott. Todos tratam dessa relação quase sempre conflituosa entre criadores e criaturas, porque o que está em jogo, invariavelmente, é a relação de poder que se estabelece entre esse par antagônico e, por vezes, complementar. Enfim, essas citações são apenas alguns exemplos, das centenas que existem e povoam o nosso imaginário. Em 2003, eu e o Prof. Luiz Nazario, da Escola de Belas Artes da UFMG, financiados pela Fapemig, realizamos uma pesquisa que foi publicada em Os fazedores de Golems. Esse desdobramento do capítulo da tese demonstrou que há ainda muito para se refletir sobre o poder criador, a palavra criadora, por extensão, e sobre criadores e criaturas, tanto no que tange à literatura, quanto à arte em geral.
 
E.F. Você prefere usar a palavra “genocídio” a “holocausto” para se referir à barbárie desse fato histórico. Por quê? E como ela se apresenta ou não na narrativa borgiana?
 
L.N. Na verdade, o termo correto para se referir à barbárie nazista que se abateu sobre os judeus na Alemanha é Shoah. Não é, também, uma questão de preferência, mas de justiça e honestidade intelectual. O termo Shoah, como afirmou, Gerard Rabinovitch, é uma decisão léxica. Para ele, cada vez que abordamos os terrenos tenebrosos do nazismo, tropeçamos na questão da linguagem. As palavras são, no discurso dos pesquisadores, desafiadas a não desrespeitar as vítimas e aclarar a noite em que a pessoa está se arriscando a entrar. Algumas designações são comuns, mas precisam ser repensadas: Solução final, por exemplo, como todos sabem, a expressão é um eufemismo para a decisão nazista de exterminar os judeus, sendo assim, pertence à retórica nazista e empregá-la, é uma concessão à linguagem dos assassinos; Genocídio (do grego, genos = raça) é um termo criado por Raphaël Lembkin, em 1944, para designar o extermínio dos judeus, no entanto, ela vem carregada por uma concepção racialista do mundo anunciada pelos nazistas; Holocausto, o termo mais difundido, tem uma origem religiosa, bíblica, que designa as práticas de sacrifício na devoção antiga. Carregado de uma interpretação teológica, transforma o extermínio em um sacrifício (que se aproxima da concepção cristã do sacrifício de Cristo). Tal interpretação é uma violência feita, depois do ato, à vítima que não se apresentou, voluntariamente, como “cordeiro ao matadouro”; Judeocídio também não é um termo adequado. Forjado a partir do modelo fornecido pelo vocábulo ´genocídio´, apesar de tentar dar uma especificidade ao assassinato dos judeus, reintegra a vontade nazista de aniquilamento do povo judeu e da extinção de sua presença na história humana. Daí a decisão de se utilizar o termo hebraico Shoah, que me parece, juntamente com outros pesquisadores importantes, como o mais adequado para designar o extermínio. Rabinovich afirma que, em oposição ao falar dos assassinos, o termo Shoah dá a palavra às suas principais vítimas, extraindo, na língua original delas, o termo pelo qual se deve designar aquilo que lhes foi feito. Traduzido por “catástrofe”, Shoah exprime, ao mesmo tempo, que essa catástrofe, ao golpear suas vítimas, também atingiu a civilização na qual  ela se tornou possível. “Catástrofe” é um termo que estaria, pois, desprovido de significados inclusos.  Assim, cuidar das palavras é uma maneira de não dobrar a espinha diante da facilidade comum da imprudência discursiva.
 
E.F. Você visitou o Museu do Holocausto em Washington. Quais foram as suas impressões?
 
L.N. Os museus que têm por missão não deixar que a história da Shoah se perca no olvido, como o Yad Vashem, em Israel, e o de Washington, foram idealizados como um museu histórico. Talvez fosse mais correto chamá-los de museus narrativos, na medida em que as exibições que estão ali organizadas estão dispostas ao longo de uma linha histórica. Descrevem-se, assim, os papéis dos atores envolvidos na Shoah: os perpetradores, os expectadores, os salvadores e os libertados. Ao ingressar, nesse lugar de rememoração, o visitante é envolvido numa outra atmosfera que não a de outros museus. Ao receber um Identification Card, no Museu do Holocausto em Washington, que contém fotografia e biografia de uma vítima – conta-se com a “identificação” do visitante para com as vítimas. O visitante, assim, não pode ficar alheio ao que irá ver. Com esse passaporte, não se terá, como as vítimas, salvo conduto. As imagens, os sons, os cheiros... tudo comporá uma memória de vidas que ali estão representadas e fragmentadas no espaço do museu. O percurso é linear, mas os sentidos não. Quando se caminha pelo trajeto arquitetado pelo museu, é-se conduzido, cada vez mais, para o simulado interior de um labirinto de horror e um vasto conhecimento de dor e de morte. O que se verifica é que não são somente resíduos, amostras, artefatos que estão ali expostos. Há recriações, leituras, traduções artísticas que se inscrevem nesses espaços como instalações, esculturas, vídeos, performances. Essas recriações compartilham o espaço do museu com os documentos, as fotografias e os depoimentos que ali estão preservados e arquivados.
 
E.F. Você esteve, também, recentemente em Jerusalém. Sobre a finalidade do museu em Israel na contemporaneidade, você afirma que ele “possui uma dupla especificidade. Além de conservar, elegendo peças e obras do passado e da arte, ele representa, de uma certa maneira, também a condição de uma nação recém-fundada. O museu se presta a uma construção ideológica, preservadora, pedagógica e ideológica da nação que busca a integração do povo de Israel e de Israel no mundo. Esse empreendimento dá-se na medida em que o museu traduz plasticamente uma história de mais de 10.000 anos e torna concreto, através de formas, seu conteúdo religioso, filosófico e abstrato, suas aculturações que mostram a participação e a comunicação do Estado Judeu com o mundo a partir da diáspora”. Essa sua assertiva se confirmou em sua visita.
 
L.N. Sim, se confirmou. Estar em Israel é como andar sobre as páginas da Escritura. Tanto da Bíblia Hebraica quanto da Cristã. Nos acostumamos, principalmente a partir de uma mídia internacional quase sempre antijudaica, com a idéia de que Israel só existe a partir de 1948, no entanto, os museus, os manuscritos de Qumran no maravilho Museu do Livro, em Israel, além do testemunho do Muro das Lamentações e da Bíblia inscrevem os hebreus, e mais tarde, os judeus em Israel desde muito tempo. “Fundar” Israel em 1948 é, no mínimo, soterrar, quatro mil anos de existência de um povo.
 
E.F. Ao citar as Seis propostas para o próximo milênio, de Italo Calvino, ao longo do seu ensaio, você acrescenta a “resistência” como um outro valor que a literatura poderia salvaguardar, notadamente com relação à tradição judaica nos textos de Borges. Você poderia explicar essa nova proposta?
 
L.N. Minha pesquisa foi feita sob a inspiração de Walter Benjamin, para quem até os mortos não estão em segurança, se o inimigo vencer, e das propostas de Italo Calvino para a literatura do nosso milênio. E a pergunta que se impunha, durante a pesquisa era, como textos e memórias tão antigos permaneciam na contemporaneidade como testemunhos de um povo e de um tempo. Calvino referiu-se a leveza, exatidão, visibilidade, multiplicidade, velocidade e a imaginada, consistência para se referir à literatura. Com relação à tradição judaica, esses valores se tornam mais contundentes, porque irão sobreviver através de um povo que foi especialmente perseguido na história da humanidade. Excluídos, deportados, escravizados e expulsos, os judeus e os textos em que a tradição judaica emerge têm sido, para mim, literalmente, um testemunho da resistência. Expulsos, na época dos romanos, perseguidos após o primeiro século depois de Cristo os judeus têm sido amaldiçoados, denunciados, esmagados, espoliados, queimados e convertidos à força. Começaram, culturalmente, a proibir a fé judaica, depois, proibiram a leitura da Bíblia – uma das mais, senão a mais importante herança judaica para o mundo –; construíram-se mentiras contra os judeus que iam desde envenenamento de poços e propagadores da peste até a criação da AIDs. As calúnias históricas contra os judeus são inúmeras e parecem não ter fim. Criaram-se, então, os guetos para isolá-los. Depois veio a inquisição, as piras e mais tarde Auschwitz, o maior exemplo de genocídio industrial da história. Esse povo – com sua cultura, religião e literatura – que se recusa a ser vencido, me fez pensar que um outro valor que deveria ser agregado aos de Calvino seria, então, a resistência, que tem no povo judeu e em sua história, um paradigma, um exemplo, uma metáfora.
 
E.F. Você analisa contos mais conhecidos de Borges como “O Aleph”, “A biblioteca de Babel” e “A morte e a bússola” e, também, o poema, menos conhecido, “O Golem” e os contos “O milagre secreto” e “Deutsches Requiem”, demonstrando a contemporaneidade da narrativa borgiana e sua inserção em outras linguagens como a cinematográfica e a televisiva. Há assim, a presença da tradição literária, canonizada, bem como da popular, a detetivesca. Porém, a obra de Borges requer um leitor, digamos, “enciclopédico”, o que não é fácil de encontrar, notadamente, entre os graduandos de Letras. Como você avalia a recepção da obra de Borges no ensino de Graduação em Letras? Em Borges é difícil separar a ficção da realidade e isso pode ser um empecilho à sua leitura?
 
L.N. Ler Borges hoje é, sobretudo, reconhecer nesse escritor uma súmula de tradições. Das mais populares, como o mundo marginal das milongas e dos compadritos da velha Buenos Aires, passando pelas narrativas policiais, pela mitologia grega, pela literatura inglesa e pela tradição judaica. Alguns críticos chegam a afirmar que Borges é sinônimo de literatura. Essa afirmativa revela a íntima relação do escritor com seu ofício. Penso que os estudantes de Letras – independente do seu repertório de leituras – sempre se beneficiarão com a leitura de Borges. Em primeiro lugar porque o texto borgiano não é linear. Pode-se entrar em sua obra, de várias formas e por vários caminhos. A leitura de Borges pode, então, despertar a busca (a leitura e a investigação) de outros textos. Não acredito em textos fechados e herméticos, nem em empecilhos absolutos à leitura. Não há impedimentos intransponíveis para o leitor que queira aprender e, de certa forma, pagar o preço da leitura. Penso que a obra se torna aberta ao leitor que assim o desejar. Por isso, ler Borges é sempre um convite a outras leituras.
 
E.F. A INTERLetras agradece sua contribuição neste número que homenageia o escritor latino-americano, Jorge Luis Borges.

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