quinta-feira, 19 de setembro de 2013

VARRER A ILHA

 
Ana Maria Ramo y Affonso
 
A descrição dicotômica do mundo realizada pela razão e a linguagem é um modo de ação, de atualização, de diferenciação. Mas há outros modos possíveis, além dos que conhecemos. Outros possíveis accessíveis: reais .sob condição. (Tarde 2007a: 167). A condição dos bruxos da linhagem de don Juan é .parar o mundo. de modo a variar com as descrições. Silenciando, parando de falar consigo mesmo, o guerreiro detém a descrição, o fluxo das interpretações perceptuais que outros impuseram a ele como únicas válidas. A realidade, que, como vimos, se baseia em .compartilhar. certo conhecimento sobre o mundo que se habita (Castaneda VI: 192), em significar as percepções (as relações) de acordo com o compromisso com uma perspectiva determinada e comum, deve ser questionada, relativizada. .Há mundos sob mundos. (VI: 190) . .multiplicidade inarmônica de mundos. (Tarde 2007a:162). Mundos de experimentação do Tonal, o guardião das fissuras, das brechas, das margens. E o guerreiro as perpassa com a velocidade perfeita: a fluidez.
Todas as técnicas que Castaneda deve aprender no intuito de tornar-se guerreiro podem ser compreendidas como modos em que a pessoa (ou ator) adquire fluidez ao flexibilizar os limites que a definem, as máscaras que a constituem, ao agir de acordo com a sua vontade mais íntima, ou seja, ao se libertar dos grilhões de uma convenção que a desapropriou de sua motivação. O guerreiro foge da prisão do homem comum, do compromisso inviolável com um roteiro de vida traçado por outros, com uma cultura que é uma .rede de movimentos concertados. (Duvignaud 1977: 116) com um ponto de vista que faz de seu corpo um objeto durável, permanente na sua finitude. Os homens comuns somos atores cuja escolha, ou compromisso, com um único .modo de estar no mundo. não é feita por nós mesmos a cada volta do caminho. A motivação, a .inércia ou a necessidade sentida de ter de resolver as coisas de um certo modo., não nos pertence (Wagner 1981: 54); não temos escolha e, portanto, não há possibilidade de mudança de compromisso com a realidade. Somos um conjunto de pensamentos e ações delimitados culturalmente pelo compromisso com determinado estilo de criatividade. Não só as .personalidades., como também as .almas humanas. estão comprometidas com o estabelecimento de um intervalo, de uma distinção entre o inato e o artificial, entre o que se é e o que se faz (Wagner 1981: 95). O Tonal do ator está fadado ao desequilíbrio, à falta de balance, pois não há concordância constante entre as decisões e os atos. E assim a neurose (dentre inúmeras possibilidades) é o sintoma. Modo de ser no espaço e estar no tempo dobrado, como já falamos. Modo de ação que convenciona o evento em contexto, que detém o movimento, que imobiliza a duração. Modo de ação de pessoas inventando personalidades que nem de longe abarcam todas as possibilidades do ser e do estar. Mas preferimos nos limitar a um roteiro pré-definido, pois assim temos a certeza de ocupar algum lugar no palco da vida. E ainda, achamos que somos as estrelas do espetáculo, esquecendo o pouco tempo que temos para aproveitar as infinitas possibilidades do improviso. .¿Cómo puede uno darse tanta importancia sabiendo que la muerte nos está acechando?., pergunta don Juan (Castaneda VI: 62). Pedir conselho à morte muda o nosso sentido da duração, e, portanto, do tempo.

Saber que não tem tempo a perder faz com que o guerreiro atue sempre como se o seu ato presente fosse o último e, portanto, dá sempre o melhor de si (VI: 127-128). Os atos de um guerreiro têm poder (VI: 125) porque ele convida a morte para ser testemunha de suas ações, de seu estado passageiro, de sua diferença mutante. O guerreiro não atua, ele age. Ele .atua só por atuar., de forma descompromissada com toda descrição, inclusive com a dos homens e a dos bruxos. Ele flui por entre as descrições. O mundo é um .mistério sem fim. e o guerreiro da variação deve buscar a fissura entre as várias descrições. Mas o guerreiro sabe que o seu espírito não está suficientemente balanceado para suportar tal desafio e procura minuciosamente este balanço através de seus atos, pois a falta de balanço se deve à .soma total de todas as ações. (Castaneda VI: 42). A persistência na ação é a chave-mestra de inúmeras portas: agir como um guerreiro é apaziguar a mente e pular os muros, em lugar de derrubá-los (VI: 74); agir como se nada tivesse acontecido, atuar por atuar, pois um guerreiro .aceita sem aceitar e descarta sem descartar. (VI: 75), realizando atos sem esperar recompensa.

É preciso atuar sem buscar explicações, pois só como guerreiro é possível
sobreviver ao caminho do conhecimento e do poder, à experimentação da .totalidade de si mesmo., às investidas do Nagual. Um guerreiro que vai o mais longe possível na caça ao poder se transforma em .homem de conhecimento., como don Juan. Um .homem de conhecimento. é um ator que sabe que seus atos são somente atos, mas que atua .como se. eles tivessem alguma importância. Aqui também há controle, controle do .desatino. de querer estar constantemente fazendo sentido (Castaneda RA: 92-94). O .homem de conhecimento. é um ator que desmascarou a peça e vaga pelos palcos da vida, livre e automotivado.

.Ya deberías saber a estas alturas que un hombre de conocimiento vive
de actuar, no de pensar en actuar, ni de pensar qué pensará cuando
termine de actuar. Por eso un hombre de conocimiento elige un camino
con corazón y lo sigue: y luego mira y se regocija y ríe; y luego ve y
sabe. Sabe que su vida se acabará en un abrir y cerrar de ojos; sabe que
él, así como todos los demás, no va a ninguna parte; sabe, porque ve, que
nada es más importante que lo demás. En otras palabras, un hombre de
conocimiento no tiene honor, ni dignidad, ni familia, ni nombre, ni tierra,
sólo tiene vida que vivir, y en tal condición su única liga con sus
semejantes es su desatino controlado. Así, un hombre de conocimiento se
esfuerza, y suda, y resuella, y si uno lo mira es como cualquier hombre
común, excepto que el desatino de su vida está bajo control. Como nada
le importa más que nada, un hombre de conocimiento escoge cualquier
acto, y lo actúa como si le importara. Su desatino controlado lo lleva a
decir que lo que él hace importa y lo lleva a actuar como si importara, y
sin embargo él sabe que no importa; de modo que, cuando completa sus
actos se retira en paz, sin pena ni cuidado de que sus actos fueran buenos
o malos, o tuvieran efecto o no. Por otro lado, un hombre de
conocimiento puede preferir quedarse totalmente impasible y no actuar
jamás, y comportarse como si el ser impasible le importara de verdad;
también en eso será genuino y justo, porque eso es también su desatino
controlado". (Castaneda RA: 100).

Há uma imensa diferença, e não podemos deixar de notá-la, entre os filósofos-sábios que inventam um durável mundo comum, e um .homem de conhecimento. que só tem vida para viver, até que acabe.
 
Variar com as descrições (Castaneda RP: 145), admitir tudo sem admitir nada, cortar o .desconcerto. do Tonal, esta é a grande tarefa de um guerreiro, o seu compromisso com o poder (RP: 238). A maior lição de don Juan a Castaneda não é ter-lhe ensinado o mundo dos bruxos...

"Yo te di lo suficiente de la visión de los brujos sin permitir que te
enganchara. Te dije que si uno hace encarar a dos visiones, la una contra
la otra, puede escurrirse entre ambas para llegar al mundo real. Me refería
a que sólo puede llegarse a la totalidad de uno mismo cuando uno tiene
bien entendido que el mundo es simplemente una visión, sin importar que
esa visión pertenezca a un hombre común o a un brujo. (Castaneda RP:
320).
Para testemunhar o Nagual, o guerreiro precisa primeiro .encolher. o seu Tonal (Castaneda RP: 208). Um guerreiro é um caçador de poder, e o poder pessoal de um guerreiro é o que permite que o Tonal ceda espaço à manifestação do Nagual, pois é a força que desloca o Tonal, que lhe retira o lugar e o sentido, que o desordena . um puxão (RP: 214). A arte do guerreiro consiste então em encolher o Tonal até o ponto em que o Nagual tome as rédeas, e então parar por aí e impedir que o Tonal encolha demais, pois caso contrário o Nagual pode causar um grande dano ao Tonal (RP: 214). O guerreiro deve crer que o poder pessoal é algo que pode ser usado e guardado, um sentimento que determina o modo de agir da pessoa, o seu modo de estar no mundo e de ser mundo. Estar convencido disto significa que o guerreiro pode atuar por si mesmo, que ele percebe o estado de ânimo em que consiste o seu poder pessoal (Castaneda VI: 221).

Se o poder é um estado de ânimo, então o guerreiro deve caçá-lo através de seu sentir, atualizando seu ser em um estado animado pelo poder, e não pelo fazer convencional. Um guerreiro é aquele que .cria seu próprio ânimo., seu próprio modo de estar no mundo através de cada um dos seus atos realizados impecavelmente (VI: 171).

Mudando o seus atos, os seus hábitos, o guerreiro consegue, pouco a pouco, tampar os buracos, os .pontos de desague. por onde o poder se esvai (VI: 247). Ele deve treinar seu espírito para ser impassível, se controlando e se abandonando ao mesmo tempo (VI: 160).

Difícil técnica esta que dá ao guerreiro a fluência necessária para se alinhar com o poder e segui-lo até que o .mundo deixe de existir. (VI: 151). Sem contexto de controle estabelecido o guerreiro libera a sua visão, e o seu corpo, e marcha com o poder, fluindo por entre as descrições do mundo. Don Juan explica: .[...] el poder es algo dentro de uno mismo, algo que controla nuestros actos y a la vez obedece nuestro mandato. (Castaneda
VI: 143).
 
Ter poder: poder de puxar o Tonal, de se descomprometer com o lugar ocupado, com a forma, com o limite, com o ponto de vista, com o seu corpo, e não sucumbir. O que don Juan ensina a Castaneda se resume às técnicas para .parar o mundo. e adquirir poder, pois o poder pessoal é o que permite ao guerreiro não se comprometer com qualquer descrição dada, ou seja, .derrubar o mundo. (Castaneda VI: 193). A chave para o poder não é só o conhecimento, apesar do conhecimento ser uma forma de poder. A chave para o poder é se apropriar da própria percepção através dos atos: eis porque os atos de um guerreiro têm poder. O poder pessoal, o estado de ânimo impecavelmente afinado segundo os acordes da vontade mais íntima do guerreiro, é o único que ele possui neste mundo que é um mistério sem-fim (VI: 233). O agir é essa afinação do ânimo do guerreiro com o ânimo do poder. Agir é fluir, estar presente no momento (Castaneda RP: 19), perseguir o poder até que o mundo tal como o conhecemos tenha deixado de existir (RP: 151) ..derrubar o mundo., como dizíamos acima. Com confiança e abandono o guerreiro sente o poder em si, e este poder permite a ele desfazer o mundo, para depois refazê-lo e continuar vivendo (RP: 193).

Don Juan enfatiza: .A experiência das experiências é ser um guerreiro. (Castaneda RP: 76). Ser guerreiro é ser fluido, imprevisível, de modo a poder acompanhar as variações nas descrições. Enquanto o ator pertence a um mundo definido de pensamentos e ações, (máscaras com as quais ele se faz pessoa), o guerreiro é aquele que vai além das próprias fronteiras e flexibiliza os limites que o definem, os escudos que o mantêm vivo, as positividades que o finitam. O guerreiro busca a .totalidade de si mesmo. e para isto ele procura que o Tonal ceda as rédeas, o controle. Como o Tonal é a sua própria vida, o guerreiro deve convencê-lo a fazer isso, e não forçá-lo. Assim, o guerreiro .varre a ilha. do Tonal de forma cuidadosa e prepara o Tonal para ser capaz de .entrar em relações com outras alternativas. (RP: 235).

.Nadie es capaz de sobrevivir un encuentro voluntario con el nagual, sin
una larga preparación. Lleva años preparar al tonal para tal encuentro. Por
regla general, si un hombre común y corriente se encuentra un día cara a
cara con el nagual, la impresión es tan grande que lo mata. La meta de la
preparación del guerrero no es entonces enseñarle conjuros ni embrujos,
sino preparar a su tonal para que no se caiga de narices. Una empresa de
lo más difícil. Al guerrero se le debe enseñar a ser impecable y a estar
totalmente vacío antes de que pueda aún siquiera concebir el ser testigo
del nagual. (Castaneda RP: 231).
 
Castaneda aprende o modo do guerreiro com don Juan. Don Juan o ensina falando, principalmente, já que a sua tarefa é ajudá-lo com o seu Tonal. Mas esclarece que na aprendizagem da bruxaria ou se fala ou se atua; não se podem fazer ambas as coisas com a mesma pessoa (Castaneda RP 233), pois enquanto o Tonal se convence com razões, o Nagual se convence com ações (RP: 213). Don Genaro é o .benfeitor. de Castaneda; se ocupa de seu Nagual. Don Juan é o seu mestre, se ocupa do seu Tonal (RP: 232-233).

O mestre deve ensinar o antropólogo a .varrer a ilha., a organizar os elementos do Tonal de modo que o aprendiz logre uma transformação da ilha. Esta tarefa requer do aprendiz que escolha o caminho do guerreiro, marcado pela .sobriedade. e pela .força. (Castaneda RP: 313). A tarefa de Don Juan de .limpar e reordenar. a ilha do Tonal do antropólogo é o modo de ensiná-lo a ser um guerreiro (RP: 302). O Tonal individual de um guerreiro é cada vez mais fluido, pois aceita a sua limitação em relação ao Nagual. Oselementos da ilha nos quais a pessoa centrava sua atenção, as suas fachadas erigidas como fronteiras infranqueáveis, as máscaras que o definiam enquanto pessoa, os limites que o conformavam, são substituídos por outros elementos que sempre estiveram presentes na ilha, mas que não eram conhecidos porque tal pessoa não prestava atenção neles. A mudança drástica requerida pelo mundo da bruxaria consiste, então, em .alterar o uso dado. aos elementos da ilha, modificando assim a sua importância e proeminência, pois na ilha nada pode ser acrescentado ou eliminado (RP: 316). .Varrer a ilha. é uma escolha de perspectiva, uma escolha de outro corpo.

Tornar-se guerreiro, fluido, imprevisível, desapegado e, sobretudo, impecável, essa é a meta do aprendiz. Uma das principais técnicas que permitem ao aprendiz tornar-se guerreiro e ao guerreiro parar o diálogo interno é o que don Juan chama .apagar a história pessoal. (Castaneda RP: 311). A história pessoal é uma das amarras que escravizam um Tonal individual ao Tonal dos Tempos, pois a história pessoal é o roteiro dado ao ator, já nos primeiros momentos da sua vida, por aqueles que o cercam. A história pessoal é o que nos torna previsíveis aos olhos alheios e o que permite que os outros nos .segurem com seus pensamentos. (Castaneda RP: 34), criando a ilusão de que já estamos prontos, ou seja, mascarando o caráter fluido da auto-invenção e, em conseqüência, da invenção do mundo.

Ao nos acharmos prontos, dados, acabados e definidos, pensamos que tudo no mundo compartilha conosco estas características. .Apagar a história pessoal., assim como as três técnicas usadas para este fim, .perder a importância., .assumir a responsabilidade., e .usar a morte como conselheira., são .os meios que usa o bruxo para mudar a fachada dos
elementos da ilha. (Castaneda RP: 314).

A outra técnica que faz cessar o diálogo interno é o sonhar (Castaneda RP: 311). Para se fazer acessível ao poder, um guerreiro, além de afinar o seu ânimo com o fluir do poder, deve aprender a .arrumar seus sonhos., pois o sonhar é uma das principais avenidas para se atingir o poder (Castaneda VI: 135). Primeiro, ele aprende a focalizar sua atenção de maneira deliberada nos elementos que escolhe dentre aqueles que formam o sonho; depois, aprende a se movimentar de acordo com a sua vontade ou intenção e a viajar para o lugar que escolher. Arrumar os sonhos é um modo de controlar a própria percepção e os próprios atos. O guerreiro pode atuar neles com deliberação, por isso, para ele, os sonhos são realidades20 (VI: 135).
 

.Soñar es una ayuda práctica que los brujos inventaron. . dijo -. .No
eran tontos; sabían lo que estaban haciendo y buscaron la utilidad del
nagual entrenando a su tonal para que se dejara ir por un momento, por
así decirlo, y luego volviera a agarrarse. Esta frase no tiene sentido para
ti. Pero eso es lo que has estado haciendo hasta ahora: entrenándote para
dejarte ir sin perder la chaveta. Soñar es, por supuesto, la corona del
esfuerzo de los brujos, el uso máximo del nagual. (Castaneda RP: 327).

Para aprender a sonhar o guerreiro deve realizar outras três técnicas: a .marcha de poder., o .não-fazer. e o .romper as rotinas da vida.. Tais técnicas são .avenidas para aprender novos modos de perceber o mundo., dando ao guerreiro .uma antecipação de possibilidades incríveis de ação. (Castaneda RP: 327). A .marcha de poder., por exemplo, é um modo pelo qual o corpo conhece as coisas sem pensar nelas (Castaneda VI: 239). Ela serve para correr de noite. Permitindo a fluência do poder pessoal, este se mistura com o poder da noite que guia o corpo na escuridão (VI: 237).

.Romper as rotinas da vida. é rasgar o roteiro que define os nossos papéis no
mundo, ou seja, a nossa atuação; é variar os .estilos de criatividade, os modos de conhecimento. Um guerreiro é um caçador de poder, e um caçador digno é aquele que não tem rotinas, pois o seu propósito é .deixar de ser ele mesmo uma presa. (Castaneda VI: 115). Rompendo as rotinas da vida ele é livre, fluido, imprevisível. As rotinas são modos de atuação, porque é a ação pré-definida, pré-determinada, mecânica e monótona que nos torna previsíveis. Em outras palavras, as rotinas resultam da convenção de determinados modos de ação que metaforizam o sujeito, o referente, o significante, o ser estando em objeto, referido, significado, o estado do ser.

As rotinas são as cristalizações do fazer com que inventamos a familiaridade do mundo, e acabamos confundindo o mundo com o que fazemos dele. .Realidades [...] são o que fazemos delas, não o que elas fazem de nós, ou o que elas nos fazem fazer. (Wagner 1981: xix). Realidades são fazeres, não feitores ou feitos . ou fatos e valores, diferenciados pelas suas qualidades primeiras ou segundas. Fazer é atuar, construir, convencionar. .Fazer é o que te faz ser você e a mim ser eu. (Castaneda VI: 262). Ser membro comprometido de uma convenção é conhecer o seu fazer mundo, o que às vezes requer compactuar com o mascaramento e só enxergar o mundo como feitor ou feito.


[...] uma Cultura "naturalizada" e particularizada, e uma natureza
organizada e sistematizada, fazem parte de um mundo altamente
relativizado, no qual distinções cruciais entre "o que nós fazemos" e "o
que nós somos" sofreram uma erosão e um desmantelamento
substanciais, em conseqüência da troca de características. [...]
Sistematizamos sistemas e particularizamos particulares. (Wagner 1981:
67).

O acordo do fazer determina o mundo que habitamos. Tal acordo é muito poderoso. Porém, don Juan lembra que .o não-fazer é igualmente milagroso e poderoso. (Castaneda VI: 293). Não fazer o que se sabe fazer é a .clave do poder., o .primeiro passo deliberado para juntar poder. (VI: 251). Parar o mundo é, então, .parar de fazer. (VI: 263).

Não é fácil falar do .não-fazer., pois falar é .fazer.. O não-fazer é um sentir que .o corpo executa. e é ele que deve descobrir o poder e o sentir de .não-fazer. (Castaneda VI: 261). Na sua caça ao poder .o primeiro passo deliberado. de um guerreiro é .permitir ao corpo .não-fazer.. (VI: 251). O guerreiro é um ator que tirou a máscara vesga, a prótese.

Este ato é o .não-fazer. e está reservado a guerreiros muito fortes, ou seja, muito fluidos, que percebem que .o mundo é um sentir. (VI: 268). .Cuando uno no hace está sintiendo el mundo, y se siente a través de sus líneas (Castaneda VI: 268).

O guerreiro procura o balanço do Tonal no seu desejo de chegar à .totalidade de si mesmo.21. A excelência da tarefa requer um espírito impecável e humilde. Trata-se de uma luta, de um desafio, cuja base é aceitar-se como é e procurar nos próprios olhos a humildade, sendo impecável nos próprios atos e sentimentos (Castaneda RP: 17). A impecabilidade do guerreiro consiste em fazer as coisas o melhor que se pode, e mais (Castaneda EDJ: 39). O guerreiro é o dono (o proprietário) das suas escolhas; ele é um homem disposto a morrer por suas decisões, pois este é o modo máximo que encontra de se responsabilizar por elas (Castaneda VI: 74). As possibilidades de ser se atualizam no presente do estar: eis o modo de conhecimento que don Juan descreve como .caçar poder., sendo que o poder se dá de acordo com a impecabilidade do aprendiz (Castaneda RP: 318), ou seja, na medida em que ele age dando o melhor de si, como se cada ato fosse o último, compreendendo humildemente que o modo da ação (o ser estando) possui para ele mais valor que o seu produto (o estado do ser). Atuar só por atuar, responsabilizar-se por suas ações e assentir com a morte são os compromissos do guerreiro com o poder, do qual ele se torna escravo consciente, desmascarado. A impecabilidade é o único ato verdadeiramente livre, .a verdadeira medida do espírito de um guerreiro. (RP: 326). Um guerreiro inventa para si uma personalidade impecável, e não neurótica, histérica, culpada ou resolvida. A impecabilidade do guerreiro é o poder de variar o modo de atualização, a perspectiva, o corpo. O guerreiro é um homem que é impecável na sua intenção.


.Todo lo que tienes que hacer es instalar tu intención como aduana.
Cuando estés en el mundo del tonal, deberías de ser un tonal impecable;
ahí no hay tiempo para porquerías irracionales. Pero cuando estés en el
mundo del nagual, también deberías ser impecable; ahí no hay tiempo
para porquerías racionales. Para el guerrero, la intención es la puerta de
en medio. Se cierra por completo detrás de él cuando va o cuando viene.
(Castaneda RP: 230).

.Ter que crer que o mundo é misterioso e insondável é a expressão da predileção íntima de um guerreiro. (Castaneda RP: 156) e, portanto, este é o único compromisso definitivo com um modo de ação, aquele que o mantém em um .caminho com coração., que é uma viagem que basta por si mesma, sem esperança de lograr uma posição permanente (Castaneda EDJ: 252). Um guerreiro escolhe um .caminho com coração., um caminho de prazer, e o segue até o fim. Nisto o guerreiro se diferencia do homem comum, pois o guerreiro escolhe os elementos que formam seu caminho (Castaneda RA: 250), que fazem os mundos nos quais ele habita, que o habituam aos mundos; que o atualizam e lhe permitem ter um .ponto de vista., um corpo, uma individuação. Tais elementos são os fazeres, as positividades, as fachadas, os escudos chamados por Don Juan .resguardos., que protegem o guerreiro das .forças inexplicáveis. que anda intencionalmente buscando (RA: 250), da multiplicidade de agências que povoam os mundos (Tarde 2007b: 121), dos pontos de vista outrens que é perigoso atualizar (Viveiros de Castro 2001: 24). O .ponto de vista. do guerreiro é o .ponto de mutação., da .transmutação de perspectivas. (Viveiros de Castro 2002: 467). Para manter sua vida, o guerreiro joga o jogo do diferir; diferir das .forças. que o cercam no mistério pavoroso e sem-fim. O modo de ação impecável do guerreiro é o possível da variação. Parafraseando Tarde (2007b: 67), pelas suas.faculdades de crer e desejar., o guerreiro acessa os .modos da crença. e os .modos do desejo. das múltiplas agências que atuam sobre ele.

Quando o poder não tem um nome, um sentido que o traduza ao nosso próprio olhar, que o atualize para nós, como é o .poder polissêmico. de que nos fala Duvignaud (1979: 65), o poder que o guerreiro caça, os significados são substituídos por estratégias (Castaneda RA: 209). É por isso que um .Tonal em bom estado. é prerrogativa na vida de um guerreiro, o compromisso que ele possui consigo mesmo. Já não se trata de ser um homem comum, um ator que .atua seus pensamentos., uma pessoa inventando personalidade (vestindo máscaras) e fazendo mundo, mas de se fazer guerreiro ao sustentar-se em um estado de animo autonomo dentro do qual se navega sem dependencia de nenhuma condição externa.

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