domingo, 15 de setembro de 2013

Ordem e realidade

 
Ana Maria Ramo y Affonso
A ordem é para nós uma questão de olhar, de perspectiva, que se atualiza em cada um de nós (ou que nos atualiza!) através dos códigos culturais que regem os nossos esquemas perceptivos, e determinam o nosso modo de estar no mundo; códigos que se exprimem na linguagem (Foucault 1999: XVI). As .casas brancas. onde a ordem se mascara, onde quem olha e o que é olhado (o sujeito e o objeto) brincam incansavelmente de esconde-esconde, invertendo seu papel ao infinito (Foucault 1999), são o espaço epistêmico que o conhecimento ocidental percorre com afinco. Trata-se de um jogo do saber específico, mas há outros jogos possíveis (como atesta a etnologia), outros modos de conhecimento que parecem ter desvendado o enigma que nos consome, mesmo quando parte da antropologia, influenciada demais pela sua irmã mais velha, teima em permanecer cega ao fato que acabaria com a brincadeira: os xamãs (ocultistas, yogues, etc) nos dizem que é possível liberar a percepção dos grilhões do sujeito e do objeto, dos termos e das descrições. Como dizíamos, muitos jogos podem ser jogados nos tabuleiros textuais da antropologia; e assim, não tememos nos expressar nos seguintes termos (que nos parecem
mais esclarecedores): a ordem é o Tonal...

E o Tonal é o .organizador do mundo. (Castaneda RP: 163), o responsável pelo ordenamento do caos, pela criação de sentido que permite a comunicação; é tudo aquilo de que podemos falar, o obreiro de tudo o que conhecemos e fazemos como homens (RP:163). O Tonal é a pessoa social (RP: 162); somos nós mesmos. Foi ele que inventou a própria noção de eu, de modo a poder falar de si (RP: 176). Tudo cai sob seu domínio, pois ele .é feito de seus próprios fatos. (RP: 164), e força a si mesmo a seguir seus próprios julgamentos (RP:176), assumindo os papéis de criador e criatura. Porém,


.El tonal construye el mundo sólo en un sentido figurado. No puede crear
ni cambiar nada, y sin embargo construye el mundo porque su función es
juzgar, y evaluar, y atestiguar. Digo que el tonal construye el mundo
porque atestigua y evalúa al mundo de acuerdo con las reglas del tonal.
En una manera extrañísima, el tonal es un creador que no crea nada. O
sea que, el tonal inventa las reglas por medio de las cuales capta el
mundo. Así que, en un sentido figurado, el tonal construye el mundo.
(Castaneda RP: 166-167).

O mundo tal como o conhecemos é um produto do Tonal. Conhecer, ou seja, .julgar.,.avaliar., .testemunhar. o mundo de uma determinada forma é uma tarefa do Tonal. Podemos inclusive dizer, dentro do contexto da presente análise, que ele é a própria forma ou a sua determinação. .O Tonal é uma ilha. (RP: 167), um espaço delimitado pela imensidão do oceano. E o Tonal é também o protetor, o guardião dessa ilha. .Astuto e zeloso., protege o .nosso próprio ser., a possibilidade de estarmos de uma determinada forma neste, também determinado, mundo (RP: 163), as nossas fronteiras ou .fachadas. .as nossas máscaras. Ele protege a nossa vida, pois .o Tonal começa no nascimento e acaba na morte. (RP: 165). Nossa vida é, então, a atuação do Tonal Individual. Digamos, e assim facilitamos as coisas, que a nossa Cultura e a nossa sociedade (pelo menos enquanto conhecidas pela nossa episteme) são o Tonal de nosso Tempo, modos determinados de ser no tempo e estar no espaço. Duração e memória, que proclamam a História, ou o .modo de ser fundamental das empiricidades., como o .incontornável. do pensamento moderno. Tão incontornável que acaba se tornando .estanque., duração imóvel (Foucault 1999: 300, 356).

O Tonal de nosso Tempo possibilita o aparecimento do saber antropológico e a academização da antropologia: modo de experimentar nossa Cultura ao inventar outras como alegorias de nosso próprio modo de durar. Colonialismo conceitual? Não o deixa de ser; faz parte de sua filiação, pois bem antes do aparecimento deste campo do saber, o Tonal do homem de razão (o branco) arrasou os outros tonais que encontrou no seu caminhar. Estranho modo de relação, que para os bruxos do México antigo teve a sua contrapartida (ironia do destino):


.Digamos que arrasaron con todo lo que estaba dentro de los límites de su
propio tonal. Pero en la vida que vivían los indios había cosas
incomprensibles para el blanco; esas cosas ni siquiera las notaron. Capaz
fue la pura suerte de los brujos, o capaz fue su conocimiento lo que los
salvó. Después que el tonal del tiempo, y el tonal personal de cada indio,
fueron aniquilados, los brujos se encontraron agarrados de lo único que
seguía en pie: el nagual. En otras palabras, el tonal del brujo buscó
refugio en su nagual. Esto no habría podido pasar de no ser por las
penurias del pueblo vencido. Los hombres de conocimiento de hoy, son el
producto de esas condiciones y los únicos catadores del nagual, puesto
que los dejaron allí, totalmente solos. En esos matorrales, el blanco nunca
se ha aventurado. Es más aún, ni siquiera tiene la idea de que existen.
(Castaneda RP: 186).

Preocupado em espalhar a sua própria imagem, o Tonal Ocidental fechou-se em si mesmo, instaurando nos portões a .polícia epistemológica. de que nos fala Latour (2004).

Do outro lado dos muros, o Nagual estremece os homens nas guaritas. O Nagual, a outra parte, a outra face, de cada ser humano (Castaneda RP: 161) é aquilo que não conhecemos, para o qual .não há descrição, nem palavras, nem nomes nem sensações. (RP: 168). O Nagual não tem limites; ele nunca acaba, nem mesmo após a morte. O Nagual é .puro efeito.; ele é acessível a nós unicamente através do .efeito que ele causa., o que faz com que o entendamos melhor em termos de .poder. (RP: 187). Se no contexto do presente trabalho chamamos o Tonal de forma, podemos nos aventurar também a chamar o Nagual de força, mas, por muito tentadora que seja esta tradução, devemos segurar o nosso impulso comparativo e aceitar as premissas colocadas pelo mestre, já que a única coisa que podemos fazer em relação ao Nagual é .ser testemunhas de seus efeitos. (RP: 188).

A .totalidade de nós mesmos. é a soma do Tonal e do Nagual. A partir do nascimento, o Tonal vai pouco a pouco tomando as rédeas e .apagando o brilho do Nagual.. Um sentimento de incompletude se inscreve no nosso ser e nos acompanha ao longo de toda a nossa vida. Percebemos a falta, mas, na sua arrogância, o Tonal nega o Nagual e começa a fazer pares com o que há dentro de sua própria ilha, de modo a explicar a si mesmo essa sua condição, essa sua percepção. O Tonal se transforma de .guardião magnânimo. em .guarda intolerante. (RP: 163) e, pela proliferação das dicotomias que inventa, instaura a sua ditadura baseada na repressão da percepção de um par verdadeiro.

.El gran arte del tonal es reprimir toda manifestación del nagual, de tal modo que, aunque su presencia sea lo más obvio del mundo, pasa por alto. (RP: 176). Mas o Tonal é limitado: ele acaba com a morte. O sentimento experimentado pelo Tonal nos momentos da vida em que o Nagual escapa ao seu controle, a sua interdição, é chamado por don Juan .darse cuenta de la totalidade del ser que va a morir. (RP: 177).

Morrer é experimentar a .totalidade de nós mesmos. (RP: 177). Os bruxos da linhagem de don Juan se propõem não só a morrer com essa totalidade, mas também viver com ela (RP: 177). Para isso é necessário ser livre, não abdicar de nossas possibilidades como homens frente ao despotismo exagerado do Tonal. O caminho é árduo e requer a impecabilidade do guerreiro. A liberdade é pavorosa, e por vezes Castaneda prefere a escravidão de uma única descrição, aquela mantida com unhas e dentes pelos bruxos malignos e suas verdades inquebrantáveis e dicotômicas (os funcionários do Tonal tirano), à maravilhosa e misteriosa diversidade que o cerca.

 
Falemos de realidades; melhor, comecemos dizendo que a realidade é um modo de falar das coisas (afirmação na qual o caráter singular dos conceitos faz toda a diferença). Tal é a premissa básica da bruxaria nos termos colocados por don Juan: a realidade é unicamente .uma descrição.: um .fluir interminable de interpretaciones perceptuales que nosotros, como individuos que comparten una membrecía13 específica, hemos aprendido a realizar en común. (Castaneda VI: 09). Desde que a realidade enquanto descrição é algo que se apreende, podemos vir a ser membros de grupos definidos por outras descrições, como por exemplo, o dos bruxos do México antigo a cuja linhagem don Juan pertence. Eis no que consiste a aprendizagem de Castaneda: adquirir .membrecía. no conhecimento de don Juan; apreender uma .nova descrição do mundo. (VI: 15). Essa nova descrição, nova realidade ou novo mundo são inapreensíveis a partir destas páginas, desta escrita e desta fala comprometidas por demais com um determinado modo de estar no mundo. O próprio Castaneda realizou o seu longo percurso de aprendiz agarrado ao seu caderno como instrumento de proteção (mesmo sem sabê-lo), mas este lhe servia quando estava de volta, ou estava evitando experimentar a nova descrição. Para chegar lá, Castaneda deixava lápis e palavras, pois tal passagem requer que o antropólogo pare com a descrição que constitui a nossa realidade, .pare o mundo. que habita, adquira um novo ponto de vista, outro modo de perceber. Nos momentos em que Castaneda escreve é a nossa própria descrição que podemos experimentar, o modo de atuação do nosso Tonal. Don Juan, pacientemente, desmonta o caráter irreversível e absoluto deste modo e descreve o processo de sua relativização à incrédula antropologia que Castaneda traz de casa.

A mudança de atitude epistêmica que Castaneda experimentou durou muitos anos e foi resultado de um penoso trabalho por parte do antropólogo. As unidades da descrição de Castaneda pareciam em princípio incompatíveis com as de don Juan, pois para ele a realidade da vida cotidiana era algo que podemos assumir como dado (.dar por sentado.) (Castaneda RA: 14). Provavelmente Don Juan tinha razão ao dizer que o problema do antropólogo era que ele só conseguia compreender as coisas de um modo (EDJ: 175). A principal tarefa do mestre foi, então, ajudá-lo a desfazer essa certeza, esse .senso comum.,ou melhor, o seu caráter definitivo, pois não é do alcance da interpretação ser definitiva (RA: 17-18). Trata-se, simplesmente, de um acordo sobre a realidade das coisas (RP: 33), um acordo que permite a comunicação entre as pessoas. Criamos um .mundo comum. e .o
mantemos com nossa conversação interna. (RA: 251).

Mas convenhamos: que o mundo é assim como é só porque dizemos a nós mesmos que ele é assim como é (RA: 252) não quer dizer que a realidade que conhecemos é uma ilusão, na linha da afirmativa platônica do Mito da Caverna. Diferença radical entre o sentido do conceito que Castaneda se esforça por proteger e aquele que Don Juan tenta fazê-lo experimentar. O sentido do conceito de realidade que nós temos está ligado aos mitos de origem que nos explicam.

Assim, ainda que não seja nova .a idéia de que o homem inventa suas próprias realidades. (Wagner 1981: ix), como também não o é a de que o acordo é a matriz da comunicação e, portanto, a possibilidade do significado, a dificuldade de aceitação deCastaneda provém do fato dele pertencer a uma Cultura, e representar uma antropologia (pelo menos até o momento em que é banido dela), .que desejam intensamente controlar suas próprias realidades. (Wagner 1981: ix).

Mas quais são .as realidades. de tal Cultura? Quais são os conceitos que sedimentam a sua invenção? Responder a questões desse alcance nos leva, inevitavelmente, a bater nas portas da filosofia. Como herdeiros de uma alegoria cujo modo de mascaramento é a .vesguice., a proliferação de dicotomias insuperáveis que continuam a manter os postos de trabalho dos filósofos-sábios (bruxos malignos) e de seus filhos cientistas, os únicos capazes de ir e voltar do mundo dos fatos ao mundo dos valores (Latour 2004: 27-28), não nos é fácil realizar tal empreitada. Admitir que .não há ruptura entre os dois mundos, e que se trata muito mais de um tecido sem costura., implica encontrar uma saída alternativa que não nos deixe no vasto campo do relativismo que estamos tentando driblar (Latour 2004); supõe admitir não só a relatividade do subjetivo, mas também do objetivo (Wagner 1981: 02).

Enquanto antropólogos podemos pedir o auxílio de povos que encarnam modos diferentes de inventar a realidade ou de compor .mundos comuns., como é o caso dos bruxos representados por don Juan. Assim, à medida que os antropólogos foram se tornando mais sensíveis àquilo que .os nativos. (os outros) falavam ou faziam (ou falavam que faziam) e percebiam que os quadros epistemológicos e conceituais que traziam de casa não enquadravam perfeitamente com os dados observados, e à medida que as entrelinhas de seus textos foram falando cada vez mais alto, que mais vozes pediam a vez de falar, a antropologia começou a se questionar a respeito de si e se percebeu como uma .alegoria do homem.. Tal modo de atuação justifica um ponto de vista segundo o qual todos evoluímos na mesma direção, ocupando lugares diferentes na mesma linha temporal, no mesmo
passar do tempo e assim, assumindo esta perspectiva, legitimamos .a nossa própria invenção da sociedade como relação do homem com a natureza. (Wagner 1981: 132),relação a que damos o nome de Cultura.

Essa tomada de consciência provocou uma reflexão a respeito de tais conceitos e das características do homem que alegorizamos, sendo este nada mais e nada menos que o que coordena o biológico e o moral, os fatos e os valores, a natureza e a cultura, o inato e o artificial, e o mesmo que os inventa. Um homem dual, dividido, cindido; o espírito ansiando a liberdade da matéria, a mente que não se reconhece no corpo. .Brecha na ordem das coisas. (Foucault 1999: XXI). Invenção que mascara o ato de inventar.

Personagem criada para interpretar e encarnar o dualismo . alegoria da dualidade. Mas, qual o sentido de tal dualismo exacerbado? Por que ele nos é tão caro? A distinção entre qualidades primeiras e qualidades segundas, que determina o ponto de vista que ocupamos para nos definir . o modo pelo qual o Tonal de nosso tempo funciona. há longo tempo vem proliferando em múltiplas dicotomias que, apesar de apresentar nuances específicas que complicam um pouco o seu reconhecimento, constituem a mesma paisagem das variadas pinturas que formam a pinacoteca das ciências, humanas e não humanas.

Bruno Latour (2004) decifra a relação que se desdobra em um destes memoráveis e influentes pares: o dos fatos e dos valores. A oposição que lhes cabe representar se manifesta nos seus modos diferentes de estar no mundo, ou seja, de agir. Os primeiros estão em silêncio e os segundos falam tanto que não conseguem se ouvir.

Procurando a função de tal par na sua origem (o nosso .mito fundante.), ele descobre uma armadilha fatal, por .astuta. e .eficaz.: a invenção da necessidade do .filósofo-sábio., .ao mesmo tempo Legislador e Salvador.,.único capaz de ir e voltar de um ao outro mundo., ou seja, único porta-voz legítimo dos fatos mudos. Todos nós conhecemos o poder que tal papel encerra; o autor, por sua vez, o deixa claro:


Nele e por ele a tirania do mundo social se interrompe milagrosamente: no ir, para lhe permitir contemplar, enfim, o mundo objetivo; no voltar, para lhe permitir substituir, qual um novo Moisés, a indiscutível legislação de leis científicas pela tirania da ignorância. Sem esta dupla ruptura, não há ciência, nem política sob influência, nem concepção ocidental da vida pública (Latour 2004: 28).

O filósofo-sábio é, assim, imbuído do poder de inventar a realidade, ou, pelo menos, a sociedade. Ele é, parafraseando Viveiros de Castro (2001), .o proprietário dos conceitos.


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