quarta-feira, 18 de setembro de 2013

A FLUIDEZ DAS FORMAS

 
Ana Maria Ramo y Affonso
 
A estrutura circula (Deleuze 1982: 276) e passa pelos lugares vazios, os intervalos plenos de possíveis, virtualidades .suspensas. no espaço do tempo. O próprio sentido é circular. Entre a realidade e a ilusão situamos a obviação da invenção (Wagner 1981). Grau zero, significante flutuante, lugar do rei. O Tonal de nosso tempo excede no sentido e é o não-senso que permite a passagem para além das palavras; palavras que sempre falham quando se trata de encarar o mundo (Castaneda RP: 39). A palavra percorre os intervalos da razão neste infindável jogo de espelhos. É o seu modo de ação; modo que os atores atualizamos no gesticular constante de um discurso adquirido, convencionado, socializado, sentido. .Mantemos o mundo com nossa conversa interna. (Castaneda RA: 251). Mundo que é uma associação de possíveis atualizados, um atualizar dos possíveis na associação, na relação. Confundimos o mundo com os .fazeres., diálogos gestuais prescritos nos roteiros culturais. Forma que adquirimos frente aos espelhos. Mas os atos são somente atos e, com seu .desatino controlado., o homem de conhecimento, o guerreiro que foi o mais longe possível na caça ao poder, varia junto com as descrições. Estranha figura para os filósofos-sábios, que permanecem na mesma ponte, durando na memória, e protegendo o poder de seu pensar com a .polícia epistemológica. (Latour 2004). Mas o poder dos homens de conhecimento é o poder do movimento, do que circula, servindo para ensinar alguém mais a guardar poder. Don Juan, que sabe do quimérico de qualquer duração, é a figura que ri dos filósofos sábios a partir das estantes de auto-ajuda esotérica, lugar ao qual ele e Castaneda foram relegados.
 
O mestre não ensina ao antropólogo um modo de compreender o mundo, pensá-lo, ou explicá-lo, pois o modo do antropólogo já dá conta do trabalho. O mestre ensina seu aprendiz a .parar o mundo., parar a descrição, sair do circuito fechado dos reflexos da palavra e da razão. E para isso o aprendiz deve se tornar um caçador de poder, pois o modo do poder é um estado de ânimo, o sentir que des-loca, que des-ordena o sentido. A caça do guerreiro ao poder é solitária, é preciso abrir mão, momentaneamente, do sentido e de seu social acolhedor para poder passar por entre as descrições.
 
Perder o sentido, procurar o não-senso, a linha de fuga, passar por entre as descrições... Caçar o poder não pensando o sentido (já passado), mas sentindo o estado de ânimo presente. Para experimentar a .brujeria. de don Juan, Castaneda precisa se abster do sentido, e sentir o poder. E é aqui que Castaneda deixa de ser antropólogo e se torna outro, nativo, aprendiz, bruxo... Mudar o compromisso é mudar a perspectiva, o modo de .inventar. sujeitos; o modo de se inventar sujeito, de se sujeitar à invenção.
 
Ecuación de diversas variables . el trance que descompone los grilletes
de los modelos culturales del .yo., el enfrentamiento con un cosmos
polisémico en el que el hombre se somete a la prueba de la materia, el
don de la nada hecho a la nada que se opone al cambio, la restauración
hecha por la risa del cuerpo en su dinamismo . la fiesta remite al
conjunto de la experiencia imaginaria. Ni la antropología ni la filosofía
pueden explicar esa manifestación subersiva que opone a la cohesión de
los conjuntos la destrucción de las formas instituidas (Duvignaud 1979:
218).

Duvignaud, pensador da passagem, diz da festa: Metafísica em ato (1979: 220). Metafísica em gesto da matéria, do corpo sensível. Nada a ver com o modo de atuação de um ator, cujos gestos são a manifestação material e sensível de uma lógica que permanece nos circuitos fechados da significação (gestos que anunciam os limites), mas com o modo de agir do guerreiro, do aprendiz de bruxo e possível homem de conhecimento, que, parafraseando Duvignaud, encontra o .sentido. no .desvio da atividade obrigada ou normal. (1979: 130). Agir que perverte as formas (Duvignaud 1979: 153). Como o sacrifício, jogo e festa da aniquilação do ser social (Duvignaud 1979:131 e 150), do papel, do modo vesgo que instaura o intervalo entre a metafísica e a física, o espírito e o corpo, a força e a forma (dentre outros). A transmutação sacrificial, a passagem intensiva (Viveiros de Castro 2002: 463) afirma a inescapável variação. Só nos resta testemunhar a transformação, dando sem esperar retorno o que temos, a fim de não ser mais (Duvignaud 1979: 169); a fim de entrar no .modo do haver., modo da relação como alteração (Vargas 2007: 34). Aposta feita ao imprevisível (Duvignaud 1979: 22).
A linguagem é estrutural; a estrutura é o seu efeito, a sua ação. Mas a linguagem não é o único modo de experimentar o mundo, e nem tudo deve passar por ela para ser comunicado. Então, o que estaríamos realizando nesta dissertação, senão falar ou, pior ainda, escrever? Quase nada. Eis o nosso limite conceitual, o texto antropológico pelo qual nosso pensamento aprende e experimenta a domesticação das formas duráveis. Com uma ressalva: podemos experimentar uma maior fluidez conceitual, e fazer jus à palavra selvagem, às entrelinhas do texto antropológico que tantas fugas têm permitido à razão dicotômica. Há outros possíveis modos de razão e de linguagem; modos mais fluidos e humildes que nos permitem testemunhar a flexibilidade do Tonal, o nosso e o dos Outros.
Somos, como Deleuze, ..pró. alguma coisa de novo. (Deleuze 1982: 302), sempre.
 
Assumindo as limitações do modo escolhido, pensamos e falamos, porém, em vez de fazê- lo sobre o comportamento social, a natureza humana ou a estrutura da linguagem, pensamos e falamos sobre a .experiência imaginária. de que nos fala Duvignaud (1979:218) e até tentamos .experimentar uma imaginação., .entrar no (outro) pensamento pela experiência real., na linha do proposto por Viveiros de Castro (2001:19). Infelizmente nosso modo textual de ação, a escrita, é uma prisão para o .nomadismo da imaginação. (Duvignaud 1979:94) que encontramos além das nossas tão bem estabelecidas margens.

Porém, a imaginação nômade, a palavra selvagem transborda as linhas que tentam domesticá-la, e faz das grades, dos muros e dos limites do pensamento ocidental e de sua tradução textual, brechas, aberturas, fissuras . outros modos da margem: os modos da passagem.
 

As dualidades tão freqüentes nas cosmologias amazônicas formam
apenas as margens, incessantemente desfeitas e refeitas, entre as quais
flui o pensamento nativo. Longe de ser o avatar de um Dois a obcecar a
razão indígena, a alteridade está situada, como diria Guimarães Rosa, na
terceira margem desse rio (Viveiros de Castro 2001: 05).
 
A antropologia de Mauss abre uma nova margem à .palavra selvagem., agora transcrita. Mauss é um autor imprescindível para compreender outros autores e, principalmente, os grandes temas da antropologia, da episteme antropológica marcada pelo resíduo, pelo Outro ao qual dirige seu olhar. Uma ciência que fale da magia não poderia deixar de ser assim. E é isso que Mauss nos ensina; é essa a sua eficácia. Pois o texto de Mauss constantemente se revela, se desdobra e se transforma dentro de um ambiente no qual a parte é sempre o todo; espaço de entrelinhas, de fugas de uma palavra errante, de resíduo...

Espaço antropológico da multiplicidade, do mana: força, ser, ação, qualidade e estado (Mauss 2003a:142). Mauss deixa de herança a flexibilidade conceitual da idéia nativa, primitiva, complexa e confusa...
 
 
A idéia de mana é uma dessas idéias turvas das quais acreditamos ter-nos
 
livrado, e que por isso temos dificuldade de conceber [...] Sua natureza
primitiva, isto é, complexa e confusa, nos impede de fazer dela uma
análise lógica, devemos então nos contentar em descrevê-la (Mauss
2003a: 143).
 
Mas não todos ficaram contentes com a solução encontrada. Lévi-Strauss está preocupado demais com a superabundância de significante e não pretende deixar uma noção de tal mportância sem significar. É necessário procurar a .realidade subjacente. através da crítica objetiva. (Lévi-Strauss 2003: 26). O mana é um poderoso instrumento de tradução: .significante que precede e determina o significado. (Lévi-Strauss 2003: 20).
Com Lévi-Strauss, o mana encontra a sua função, .suprir um desvio. que estava ali antes do próprio mana (2003: 30); desvio que o pensamento percorre sem fim, que serve de espaço onde o pensamento pode se movimentar: .A noção de mana não é da ordem do real, e sim da ordem do pensamento que, mesmo quando pensa sobre ele mesmo, pensa sempre um objeto. (Lévi-Strauss 2003: 32).

O conhecimento científico progride .retificando fendas. (Lévi-Strauss 2003: 33), suprindo desvios, ou seja, percorrendo intervalos e ocupando lugares. O pensamento mágico não progride: o pensamento mágico passa. Eis a grande diferença. A magia não é simbólica, nem representação, pois ela nega o intervalo, a dobra, o desvio ou a fenda. A magia é da ordem do contínuo. A magia opera uma passagem: esse é o seu modo de atuação e, portanto, a sua ordem do real. A magia está mediando a oposição do pensamento. Um modo não pode ser apreendido pelo outro, e don Juan não se cansa de explicar isso a Castaneda.

Enquanto isso, o mana atua e afeta uma antropologia às voltas com seus próprios objetos e sujeitos. Atualiza-se no estruturalismo, no não-lugar da .função semântica., o que .permite o pensamento simbólico apesar da contradição. (Lévi-Strauss 2003: 35), o que permite a obviação da contradição, a mediação da oposição. Traduzindo o mana à lógica simbólica e assumindo a anterioridade da contradição ou da oposição, a passagem se resume à mediação dialética. Lévi-Strauss encontra uma interessante função para o pensamento mágico:

Dilacerado entre esses dois sistemas de referência, o do significante e o
do significado, o homem exige ao pensamento mágico que lhe forneça
um novo sistema de referência [...] esse sistema se edifica às custas do
progresso do conhecimento (Lévi-Strauss 1996: 212).
 
O que nos perguntamos aqui é se essa tal dilaceração não é em si um produto e função de um pensamento que opera intervalos na sua distribuição de lugares, que estabelece diferenças como forma de ordenação-atualização de um mundo que o ultrapassa, que o impele constantemente a atuar para definir o seu lugar neste mundo, para construir um sentido que o justifique, que o transforme em conhecimento durável. Mas, a qual preço? Mauss responde: .Em última instância, é sempre a sociedade que se paga, ela própria, com a moeda falsa de seu sonho. (Mauss 2003a: 159).

De novo é uma escolha. Quais sonhos, enfim, nos interessam? E qual é, de fato, o falso sonho? Se trairmos a nossa língua, em lugar da outra, se trairmos o sentido, a semântica, a sintaxe e a própria preponderância da linguagem e de seu corolário, a razão, poderemos então liberar o mana da razão, que nunca, em qualquer caso, o dominou. .¿Para qué hacer del mana una .categoría del entendimiento colectivo. cuando designa una fuerza
real para los melanesios?. (Duvignaud 1979: 86).

O .a-estrutural. e .a-conceitual. do mana irrita o espírito redutor (Duvignaud 1979: 43), mas não o espírito levistraussiano, espírito ávido de conhecimento que povoa o estruturalismo com os fenômenos .a-estruturais. e, apesar do antropólogo afirmar que o seu pensamento é comparável ao dos nativos em prol da própria universalidade do pensamento, são os mitos que, nas entrelinhas, por entre as séries da estrutura, se pensam nele, à sua revelia (ou não).
 
Lévi-Strauss viaja pela .floresta de imagens e de signos. que é o mito (Lévi-Strauss 2004:52). As Mitológicas são o relato dessa viagem-mediação, desse percurso entre oposições. O intervalo se desdobra em infinitas possibilidades, constantemente; a estrutura é .uma multiplicidade de coexistência virtual. (Deleuze 1982: 283). Coexistência de multiplicidades: eis a sustância do mito. Nele, o intervalo é antes passagem que lugar. Ponto de fuga das formas e das forças, os mitos são um meio, o relato da transformação... da variação.
 

Ponto de fuga universal do perspectivismo cosmológico, o mito fala de
um estado do ser onde os corpos e os nomes, as almas e as afecções, o eu
e o outro se interpenetram, mergulhados em um mesmo meio pré-
subjetivo e pré-objetivo . meio cujo fim, justamente, a mitologia se
propõe a contar (Viveiros de Castro 1996: 135).

Relatos das transformações, nos mitos encontramos o corpo da passagem, o seu modo de atualização: o modo da variação. O desaninhador de pássaros (Lévi-Strauss, 2004), o rapaz que transgride as fronteiras da convenção e trai os modos de associação que seu compromisso com um grupo implica, entra constantemente em relação com outros modos na sua viagem por entre a vida e a morte. Ele só permanece na medida em que se dispõe a variar a perspectiva, ou seja, o corpo.

O .corpo. é ponto de encontro da forma e da força . do lugar e da passagem. Nele podemos experimentar uma indiscernibilidade entre ambas, de forma que ele é o mediador por excelência entre as grandes oposições, como Contínuo-Discreto ou Natureza-Cultura.

Mediador entre o mundo sensível e o inteligível, ou se preferir, entre o mundo e o pensamento (ou espírito). Ou seja, .corpo. é mediação. Ou, dito em uma linguagem perspectivista, o corpo é a origem das perspectivas (Viveiros de Castro 1996: 128); das perspectivas visuais, auditivas, olfativas, tácteis, gustativas (dentre as mais conhecidas). Os sentidos (junto com a natureza) são puros limites: .limites-tensão., pontos para os quais .tende uma série ou uma relação. (Viveiros de Castro 2001: 17), não fronteiras ou limites que definem exterioridades e interiores. Os sentidos no corpo são o interstício, o próprio intervalo, só que não vazio, pelo contrário, cheio de possíveis, de afecções.

 

O que estou chamando de "corpo", portanto, não é sinônimo de fisiologia
distintiva ou de morfologia fixa; é um conjunto de afecções ou modos de
ser que constituem um habitus. Entre a subjetividade formal das almas e a

materialidade substancial dos organismos, há um plano intermediário que
é o corpo como feixe de afecções e capacidades, e que é a origem das
perspectivas (Viveiros de Castro 1996: 128).
A cópula e a comida são hábitos que fazem corpo, que definem perspectivas e determinam pontos de vista. A força da relação transformada na forma da substância quando, na cópula, se gera um filho; a forma da carne, da matéria, transformada na força da energia que permite o gesto, o movimento. Comer e copular são modos da passagem, ações cotidianas e habituais que fazem mundo . modos de relação do corpo; modos de transformação. A variação é prerrogativa tanto para a existência como para a permanência.
 
O que dizer dos nossos corpos, habituais e ocidentais? Atualizar, encorporar ou criar um corpo para o homem, o ator, o sujeito, é se comprometer com uma determinada relação tempo/espaço, com um modo de conhecimento, com uma perspectiva, com um ponto de vista: no intervalo, na dobra, no vão, no .lugar., no descontínuo do espaço, o tempo contínuo da virtualidade vem repousar. É o movimento do ser ou a velocidade da percepção . o sentir, enfim . que o modo da duração quer deter, e, assim, limitar o que seria uma passagem à permanência estática. Atual permanente . que é o contrário do .atual momentâneo., da atualização da diferença como passagem . na forma acabada e definida pelas positividades e fronteiras. Os termos são, neste modo, anteriores à relação, produtos de um poder pensado, de uma força formatada. A oposição e a dicotomia são inventadas como realidades universais percorridas incansavelmente pela dialética. A natureza do semelhante e a culturalização das diferenças encontram aqui a sua razão de ser.
Quando o intervalo, a dobra, o vão, é fissura, ou brecha, os possíveis se multiplicam e a transformação imanente à relação é obviada, desmascarada. Fluidez das formas, matéria carregada de energia, dinamismo. Há sempre outras relações não atualizadas, possíveis: os centros são múltiplos, assim como as naturezas: podemos por fim pensar os pluriversos; eis nossa alternativa à dialética (Latour 2004: 137, nota 22), em lugar de exterioridade, interpenetração recíproca (Tarde 2007b: 79). O exterior é um .estado interno. (Tarde 2007b: 68), pois os limites, as fronteiras, são relativos, ou seja, relacionais.
 
.Os tipos são apenas freios, as leis são apenas diques opostos em vão ao transbordamento de diferenças. (Tarde 2007b: 106). As formas que se apresentam à nossa percepção culturalmente codificada, os significados, os sentidos, os centros, os feixes, os corpos são momentos do movimento, do .deslocamento gradual. de uma materialidade viva e ativa (Tarde 2007b: 61). A essência não é a matéria ou a substância, mas a atividade. Ocupar um lugar, atualizar um estado: a monadologia renovada de Gabriel Tarde possibilita (certifica sob condição) experimentarmos conceitualmente um corpo como associação de .esferas de ação. que.estão inteiramente lá onde agem. (Tarde 2007b: 80).
 

[...] na hipótese das mônadas tudo flui naturalmente. Cada uma delas
absorve o mundo a si, o que é apreender-se melhor a si mesma. Elas bem
fazem parte umas das outras, mas podem pertencer-se mais ou menos, e
cada uma aspira ao mais alto grau de possessão; daí sua concentração
gradual; além disso, elas podem pertencer-se de mil maneiras diferentes,
e cada uma aspira a conhecer novas maneiras de apropriar-se de suas
semelhantes. Daí suas transformações. É para conquistar que elas se
transformam; mas, como jamais se submetem a uma dentre elas a não ser
por interesse, o sonho ambicioso de nenhuma delas se realiza inteiramente, e as mônadas vassalas empregam a mônada suserana enquanto esta as utiliza (Tarde 2007b: 120).

Há vários centros possíveis: pluriversos infinitesimais. Nestes não-lugares da passagem, os agentes são .pequenos seres infinitesimais. e as ações .pequenas variações infinitesimais. (Tarde 2007b: 61). O que resolve a contradição da transformação e desmascara o .jogo do duplo.. Tarde revela lançando uma pergunta: .[..] mas por que uma transformação, incompreensível quando apresentada como uma soma de diferenças nítidas, definidas, é facilmente compreendida se a consideramos como uma soma de diferenças infinitamente pequenas?. (Tarde 2007b: 58).

Diferir infinitesimal... Os limites, as fachadas, as fronteiras adquirem uma fluidez conceitual que muito aportou ao Tonal de nosso Tempo. Lévi-Strauss, pensado e perpassado pelos mitos, chega à dialética dos pequenos intervalos. O corpo, nos mitos, passa pela transformação da putrefação. O .podre. é uma .forma da sensorialidade. (Lévi- Strauss 2004: 191). Modo de sentir, modo de ação e, principalmente, de variação. Ser .perecedouro, por um momento., diz Duvignaud (1979: 126). As .rupturas na duração. geram esquecimento, e este .rui a permanência. (Duvignaud 1979: 72-73). Para poder variar por entre as distintas descrições, é necessário .parar o mundo., parar a máquina de fabricar tempo e duração. Lévi-Strauss encontra nos mitos e na música o relato desta possibilidade, pois ambos são .máquinas de suprimir o tempo. (Lévi-Strauss 2004: 35).

Música e mito se encontram no corpo do ouvinte. Corpo aberto ao desdobramento, à transmutação; assim como o são a música e o mito. Corpo em comunicação. Corpo de sentidos. Os mitos e a música se assemelham no seu modo de penetrar o corpo, de passar por ele . o tempo psicofisiológico do ouvinte (Lévi-Strauss 2004: 35). Assim como a música, os ritmos e períodos do mito soam no labirinto neurológico, cujo ritmo é, por sua vez, marcado pela pulsação cardíaca. Pulsar da vida, pulsar do tempo. Como a música, o mito é uma máquina de suprimir o tempo, pois ao desdobrarem o intervalo .irreversível. porque diacrônico, entre uma pulsação e outra, instauram o campo fértil da transmutação.

Transmutação da diacronia em sincronia. Ao escutar a música e os mitos, .atingimos uma espécie de imortalidade. (Lévi-Strauss 2004: 35).

Transmutação é o modo da imortalidade, da duração do infinito. Durar é mudar, afirma Tarde (Tarde 2007a: 136). O herói estruturalista, o .sujeito nômade. sabe disto e atua de acordo; na .práxis., um .ponto de mutação. (Deleuze 1982: 300-303). O herói é o ser-menos, aquele que passa entre o ser e o não-ser, o filósofo do haver ou o caçador de poder, enfim, o xamã que .encarna os modos da mediação. (Lévi-Strauss 2004: 76). .O ser-menos. tem direito a ocupar um lugar inteiro no sistema, pois é a única forma concebível da passagem entre dois estados .plenos.. (Lévi-Strauss 2004: 71).

Incompletude do .ser. e plenitude do .estar.. A mediação é .ser-menos.. Os termos que são mediados são plenos, mas esta plenitude só é possível enquanto estado e, portanto, não é permanente. O ser, ao contrário, pode ser percebido enquanto permanência, mas só pela sua qualidade de menos (ou minoria). Única forma concebível da passagem, múltiplas possibilidades de pensamento brotam deste fértil solo epistêmico: o ser-menos. Corpo-relação, signo (negativo), passagem, função vacante da estrutura, a casa vazia, constantemente perpassada. Há sempre um entre-dois...
 
 
 
Se o modo da ação é a fluidez, e não a duração, então o .estar. é uma passagem antes que a ocupação de um lugar em um quadro pré-definido. Entretanto, é o .ponto., a ocupação de um lugar que permite o sujeito, que permite a atualidade da perspectiva, o corpo (Viveiros de Castro 1996). O Tonal define o modo de ser no tempo e estar no espaço. Ele começa com o nascimento e acaba com a morte, é o modo da vida. E para permanecer vivos precisamos atuar, convencionar gestos em hábitos e compartilhar o .sentido. que limita os sentires, que fecha as aberturas. A identidade e a diferença emergem nos hábitos (Viveiros de Castro 2001: 11), e os hábitos, assim como as descrições, podem variar. Porém, é preciso estar muito bem preparado, pois .apenas os xamãs, pessoas multinaturais por definição e ofício, são capazes de transitar entre as perspectivas, tuteando e sendo tuteados pelas subjetividades extra-humanas sem perder a própria condição de sujeito. (Viveiros de Castro 1996: 135).

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