terça-feira, 17 de setembro de 2013

TONAL VESGO

 
Ana Maria Ramo y Affonso
 
Somos escravos da razão (Castaneda RA: 299), do compromisso com a vesguice, com a dicotomia e a dialética do intervalo que nos dá a falsa esperança de durar. Limitados pelo compromisso com um único modo (dicotômico e dialético) de ser no tempo e estar no espaço, nos saciamos com o entendimento ignorando, e até negando, outras possibilidades de saber, outros modos de conhecimento que escapam à razão e à linguagem. Há outras descrições, outros compromissos, outros modos de percepção. Os brujos mexicanos afirmam que a razão é só um dos .centros. de percepção possíveis, uma perspectiva mais, e que é um desperdício dar-lhe tanta importância (Castaneda RP: 333). Assim como o seria dar por assentada a definição dos 'brujos'. Visão do mundo mais ampla? Sim, mas nada além disso (RP: 320).

Castaneda também lida com uma descrição, com um ponto de vista, com um compromisso com determinado modo de ser no tempo e estar no espaço .com um corpo.O importante é experimentar no corpo .as premissas da explicação. (RP: 357); eis a antropologia .experimental. de Castaneda.


Mi evaluación consciente era que yo había aceptado la descripción mágica del mundo, dada por don Juan, sólo en términos intelectuales, mientras mi cuerpo como entidad completa la rechazaba; de ahí mi dilema. Sin embargo, en el curso de los años que tenía de tratar a don Juan y a don Genaro, yo había experimentado fenómenos extraordinarios, y todos habían sido experiencias corporales, no intelectuales (Castaneda RP: 57).

O desconhecido não é conhecível, assim como o impensável não é pensável; só podemos presenciá-lo, estar de .corpo presente. perante as suas manifestações. O mundo é misterioso e tentar explicá-lo é reduzi-lo a nada. Mas, estamos comprometidos demais com um ponto de vista e nosso corpo dividido por ele, dicotomizado, encadeado à razão, é demasiadamente obtuso. Don Juan tenta mostrar isto a Castaneda, e várias vezes a arte do mestre consiste em enganar o aprendiz. A tarefa de don Juan é ensinar Castaneda a varrer a ilha do Tonal, ordenar os elementos e compreender que só algumas facetas de si e do mundo são accessíveis à razão. Mas a razão é muito apegada ao seu domínio absoluto, ou o ator é muito apegado à sua razão, e a defesa perante esta redução de suas possibilidades (de seus possíveis) consiste em reforçar sem trégua as poucas verdades que lhe restam. O aprendiz reúne tudo aquilo que conhece, toda a sua visão do mundo em torno da razão, o que lhe permite assumir com segurança a possibilidade de que exista um Outro lado incompreensível mas, por isso mesmo, desconhecido e longínquo, que pode ser testemunhado com outro .centro de ensamblagem., outro .feixe. ou .ponto de vista. . o da .vontade. (RP: 332). A vontade: o modo de testemunhar o Nagual.

A razão pode aceitar estes fatos e continuar em segurança, pois tudo o que é compreensível, inteligível e explicável tem um lugar legítimo: o Tonal, a ordem do mundo que se impõe ao caos. O próprio mestre deve convencê-la disto para mantê-la em segurança; convencê-la de que .o tonal é explicável e previsível. (RP: 360). Porém, o mestre engana o aprendiz até o último momento, pois nem sequer o Tonal pode ser compreendido e/ou explicado. A razão nunca chega lá; deve contentar-se com ser .un centro de ensamble, un espejo que refleja algo que está fuera de ella. (RP: 361). Grande feixe da história: o Tonal é também inexplicável (RP: 361).


"El último trozo de la explicación de los brujos dice que la razón no hace sino reflejar un orden externo, y que la razón no sabe nada de ese orden;no puede explicarlo, como tampoco puede explicar el nagual. La razónsólo puede atestiguar los efectos del tonal, pero jamás podría comprenderlo o deshilvanarlo. El hecho mismo de que estemos pensando y hablando indica que hay un orden que seguimos sin ni siquiera saber cómo lo hacemos, o qué es el orden ese." (Castaneda RP: 361).

.Aquilo que faz a metáfora, mas sempre escapa em sua expressão. (Wagner 1981: xvii) . o símbolo negativo . é o Tonal, pois é o Tonal que faz qualquer coisa para a qual a razão tenha um nome. O Nagual é puro .efeito. (RP: 187) . não se usam as palavras para traduzir o Nagual. E se o fizermos, será com as palavras escolhidas pelo seu tradutor por excelência, no presente caso: don Juan. O próprio Tonal também não pode ser explicado, interpretado ou entendido, mesmo que este seja o nosso modo de ser razão, ou o modo de ser de nossa razão. O modo de ser do Tonal de nosso tempo, o Tonal da dobra, é só um dos .pontos de vista. possíveis, mais um modo de ação, e a antropologia é testemunha nada inocente deste fato. Ao traduzir modos de conhecimento, as entrelinhas do(s) texto(s) deslocam o saber antropológico das figuras conceituais a que os antropólogos o limitam. E assim, neste, por este, e desde este campo do saber, Castaneda nos convida a percorrer a diferença diferencial entre fazer antropologia e ser um homem comum e fazer-se um guerreiro ao des-antropologizar o ser... Entre outras coisas. Enquanto isso, Don Juan se ocupa do Tonal do antropólogo e, portanto, também do nosso.


É fácil perceber que o Tonal dos nossos tempos, o Tonal ocidental, possui a fraqueza do narcisismo. O problema não é a tautologia ou a dialética, pois esses são modos do jogo; o problema é a perfeição do sentido que tal jogo tem para nós, pois dificilmente conseguimos, ou melhor, queremos, variar as regras. Jogamos o jogo da duração, e fazemos do mundo um palco onde possamos encenar nosso compromisso. Palco da vida no qual jogamos o jogo do duplo e inventamos pares que se remetem mutuamente: empírico e transcendental, essência e aparência, qualidades primeiras e qualidades segundas, fatos e valores, natureza universal e cultura relativa, inato e ação humana, semelhança e diferença; .dicotomia universal do osso e da carne. (Duvignaud 1979:80), elementos do nosso pensamento, realidade atualizada pela ação vesga dos atores, membros comprometidos com um modo de descrição: a representação, o modo da dobra, a .fonte principal de infecção. (Latour 2004:78). Como vimos no capítulo anterior, os limites, as positividades, as fronteiras, atualizam a dobra do espaço no tempo ou do tempo no espaço . atualizam o tempo e o espaço como dobra, intervalo. Assim, é possível o .quadro. que permite ao pensamento .ordenar. as similitudes e as diferenças, permite à linguagem se entrecruzar com o espaço e fundar o .lugar. onde o contínuo do tempo pode vir a repousar, a durar (Foucault 1999: XII). Lugar como .tábua de trabalho. (Foucault 1999: XII), solo positivo prenhe de positividades (de vida, trabalho e linguagem) que posicionam o olhar, determinando e delimitando a ação e a atenção. Com que descrição ocupar o intervalo? Com a do lugar, o corpo estabelecido, determinado, estado, significado pela linguagem . figuração de um significante. Ocupar um lugar é possuir uma forma, ponto de vista que se reflete no espelho. Se o pensamento moderno é uma .relação de sentido com a forma da verdade e a forma do ser. (Foucault 1999: 287) e o estruturalismo é a .consciência desperta e inquieta do saber moderno. (Foucault 1999: 287), então nós nos perguntamos qual a relação do sentido com a forma, da forma com o estruturalismo e do estruturalismo com o sentido, ou seja, a forma da relação de sentido que os estruturalistas imaginam e inventam, que figuram.

Não é difícil perceber essa figuração, pois o estruturalismo dá perfeitamente conta de pensar a forma devido à sua .concepção exclusivamente extensivista da diferença. (Viveiros de Castro 2001: 10). A ordem encontra o seu sentido no intervalo, na instauração do discreto no contínuo, na relação de oposição entre diferenças, que são intervalos no contínuo da semelhança. O sentido é .necessária e unicamente de posição. (Deleuze 1982: 276), de lugar relacional, ou seja, de ponto de vista. O espaço é que é estrutural para o estruturalismo. A estrutura não é a forma, a figura ou a essência (Deleuze 1982: 275). A estrutura é o sujeito, o estruturador, que se move num espaço estrutural e dura num tempo estrutural, num .tempo de atualização. (Deleuze 1982: 285).

.Atualizar-se é diferenciar-se. (Deleuze, 1982: 284); ocupar lugares e impor intervalos entre eles. Atualizar-se é o estruturar da estrutura, que é .diferencial em si mesma e diferenciadora em seu efeito. (Deleuze 1982: 285); enquanto virtualidade, .indiferenciação.; enquanto atualização, diferença (Deleuze 1982: 284). Atualizar virtualidades, diferenciar indiferenciações, distribuir posições, lugares: eis a prática de sentido no estruturalismo, com seus modos de tempo de atualização e espaço de diferenciação. .O verdadeiro sujeito é a própria estrutura., diz Deleuze (1982: 282). Sujeito que produz espécies e partes, e que as faz aparecer como reflexos recíprocos e infindáveis.

Modo de ser do Tonal de nosso Tempo? Jogo possível! Jogo tautológico da dialética: praticar o sentido é realizar uma escolha, definir lugares para as coisas e lhes determinar uma duração, uma atualidade permanente. Praticar o sentido é dicotomizar o mundo em pares opostos, pensar a ordem possível perante o caos, definir as fronteiras, os limites, as formas de que a vida necessita, as positividades que a posicionam, que atualizam o ser do tempo no estar do espaço (estado do ser). O sentido é a .realidade do possível enquanto tal. . efetuação do possível exprimido na linguagem ou no signo (Viveiros de Castro 2001:08).

Construir sentido, fabricar significado é criar e experimentar contextos, ambientes de relação e relacionais; produzir relações convencionadas que permitem a comunicação, o diálogo, o entendimento. Rotulamos, nomeamos a relação de sentido, a associação de símbolos, como realidade. Mas não há realidade absoluta e unânime, pois o que há é relativismo, ou seja, relação (Wagner 1981). Relação que desafia a instituição de um exterior e um interior: os elementos que se relacionam no interior do contexto participam também em contextos externos (Wagner 1981: 41). Porém, a dialética é o jogo do duplo e a convenção é a regra que torna esse jogo permanente, duradouro. Estabelecendo, repartindo os distintos domínios entre o par de uma dicotomia clássica, a do inato e da ação humana, a Cultura, o mundo de pensamento e ação, pode reproduzir seu reinado, seu desígnio. Este modo ou estilo convencional que Wagner (1981) descreve pressupõe a existência de contextos antes da ação, contextos ou relações inatas, básicas; e a única ação pertinente é descobrir estas células-tronco, separando os contextos, mascarando a relação em seus termos (Wagner 1981: 41). Ação do sujeito, do ator, do homem comum, que assinou o compromisso de fazer cultura. Ilusão cultural . ilusão necessária?

Ordenar o mundo para poder habitá-lo! Perfeitamente plausível. O Tonal veicula o possível da vida, tal e como a experimentamos, a atualização, o aqui e agora, a distribuição de um tempo e um espaço para a forma. A crítica é mais sutil e mais profunda. A objetividade também pode ser relativa, e o transcendental empírico ou a aparência essência. Os limites que dotam de sentido o mundo são necessários, mas nem por isso havemos de outorgar-lhes o estatuto de verdade inquebrantável. Como afirma don Juan:

.Nuestro error es que insistimos en permanecer en nuestra isla, monótona y fastidiosa, pero conveniente. El tonal es el villano y no debería serlo. (Castaneda RP: 210).

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