O "Círculo" como principal núcleo anticapitalista da Alemanha
O principal centro de pensamento sociológico na Alemanha do
início do século XX era Heidelberg, onde se reunia em torno de Max Weber uma
plêiade brilhante de intelectuais e universitários.
Entre os participantes regulares ou episódicos deste famoso
“Círculo Weber de Heidelberg” encontram-se, de 1906 a 1918: os
sociólogos Ferdinand Tönnies, Werner Sombart, Georg Simmel, Alfred Weber (o
sociólogo da cultura, irmão de Max), Arthur Salz (membro do Verein für
Sozialpolitik dos “socialistas de cátedra”), Robert Michels (nesta época,
“sindicalista revolucionário”), Ernst Troeltsch (sociólogo das religiões, de
orientação “social-cristã”), Paul Honigsheim (então jovem estudante); os
filósofos neokantianos Wilhelm Windelband, Hugo Münsterberg e Emil Lask, os
neo-hegelianos Ehrenberg (judeu tornado místico-cristão) e Rosenzweig; o jurista
George Jellinek; o esteta Friedrich Gundolf (amigo do poeta Stephan George); o
poeta pacifista Ernst Toller; o psiquiatra e futuro filósofo kierkegaardiano
Jaspers; o especialista em Dostoievsky Nikolai von Bubnov; e dois
dostoievskyanos escatológicos: Ernst Bloch e György von
Lukács...
George Simmel, um dos integrantes
do Círculo de Heidelberg...
Evidentemente, não se pode falar de uma ideologia comum a este
conjunto heterogêneo e disparatado, mas nele se encontra indiscutivelmente uma
potente corrente anticapitalista romântica; segundo o testemunho muito
esclarecedor de Paul Honisgsheim,
“mesmo antes da guerra, havia em vários meios uma tendência a
se distanciar do modo burguês de vida, da cultura da cidade, a racionalidade
instrumental, a quantificação, a especialização científica, e todos os outros
elementos considerados então como repugnantes...Lukács e Bloch, Ehrenberg e
Rosenzweig eram partidários desta tendência. Este neo-romantismo, se assim se
pode chamá-lo, estava ligado ao velho romantismo por múltiplas, ainda que
ocultas, pequenas correntes de influência; podemos dar alguns exemplos:
Schopenhauer, Nietzsche, o velho Schelling, Constantin Franz...o movimento de
Juventude...O neo-romantismo sob suas diversas formas estava representado em
Heidelberg...e seus adeptos sabiam a qual porta bater: a porta de Max
Weber.”
Uma das manifestações deste estado de espírito era um estranho renascimento da religiosidade, como forma de rejeição radical do racionalismo burguês; segundo Paul Honisgsheim “era uma época em que a religião começava a estar na moda – nos salões e nos cafés – em que se liam naturalmente os místicos e se simpatizava espontaneamente com o catolicismo, uma época em que era de bom-tom lançar um olhar de desprezo sobre o século XVIII...para poder em seguida invectivar de coração aberto contra o liberalismo”. Esta tendência também se manifestava no círculo de Max Weber, entre outros, em Bloch e Lukács, que gostavam de fazer, então, “louvações extasiadas ao catolicismo”.
Entretanto, mais que a Igreja Católica, era a música e a literatura russa que faziam a unanimidade do círculo de Heidelberg; era ainda um modo de recusar a civilização ocidental capitalista. Graças a esta eslavofilia – estimulada pela participação nas reuniões de domingo (com Weber) de Nikolai von Bubnov, professos de História do Misticismo em Heidelberg, autor de publicações diversas sobre filosofia religiosa russa, em geral, e sobre Dostoievsky, em particular, e pela presença do escritor Feodor Stepum, que introduz no público alemão a obra do teórico do misticismo russo Vladimir Soloviev. A obra de Tolstoi e Dostoievsky encontrava-se no centro dos debates do círculo de Max Weber, particularmente no contexto da contradição entre a ética absoluta colocada pelos escritores russos (radical e sem concessões) e a ética da responsabilidade, implicando que se tomasse sobre si o fardo do pecado, como em “O Grande Inquisidor” de Dostoievsky...Esta problemática obcecava ainda Max Weber em 1919: no seu célebre discurso aos estudantes sobre a vocação política, ele menciona explicitamente o “Grande Inquisidor” de Dostoievsky como a apresentação mais notável desta contradição.
Veremos que os dilemas ético-políticos de Lukács em 1918-1919 apresentam uma similitude espantosa com a perspectiva de Weber, partindo das mesmas fontes: Dostoievsky e Tolstoi.
Uma das manifestações deste estado de espírito era um estranho renascimento da religiosidade, como forma de rejeição radical do racionalismo burguês; segundo Paul Honisgsheim “era uma época em que a religião começava a estar na moda – nos salões e nos cafés – em que se liam naturalmente os místicos e se simpatizava espontaneamente com o catolicismo, uma época em que era de bom-tom lançar um olhar de desprezo sobre o século XVIII...para poder em seguida invectivar de coração aberto contra o liberalismo”. Esta tendência também se manifestava no círculo de Max Weber, entre outros, em Bloch e Lukács, que gostavam de fazer, então, “louvações extasiadas ao catolicismo”.
Entretanto, mais que a Igreja Católica, era a música e a literatura russa que faziam a unanimidade do círculo de Heidelberg; era ainda um modo de recusar a civilização ocidental capitalista. Graças a esta eslavofilia – estimulada pela participação nas reuniões de domingo (com Weber) de Nikolai von Bubnov, professos de História do Misticismo em Heidelberg, autor de publicações diversas sobre filosofia religiosa russa, em geral, e sobre Dostoievsky, em particular, e pela presença do escritor Feodor Stepum, que introduz no público alemão a obra do teórico do misticismo russo Vladimir Soloviev. A obra de Tolstoi e Dostoievsky encontrava-se no centro dos debates do círculo de Max Weber, particularmente no contexto da contradição entre a ética absoluta colocada pelos escritores russos (radical e sem concessões) e a ética da responsabilidade, implicando que se tomasse sobre si o fardo do pecado, como em “O Grande Inquisidor” de Dostoievsky...Esta problemática obcecava ainda Max Weber em 1919: no seu célebre discurso aos estudantes sobre a vocação política, ele menciona explicitamente o “Grande Inquisidor” de Dostoievsky como a apresentação mais notável desta contradição.
Veremos que os dilemas ético-políticos de Lukács em 1918-1919 apresentam uma similitude espantosa com a perspectiva de Weber, partindo das mesmas fontes: Dostoievsky e Tolstoi.
O círculo de Max Weber tinha certas relações com outro grupo de
Heidelberg, muito mais esotérico e fechado: o círculo de Stephan George, que
reunia os amigos e admiradores quase religiosos em torno do célebre
poeta.
Ao menos um membro deste grupo, o crítico de arte Friedrich Gundolf, participava dos dois círculos,e o próprio Weber lia com interesse os poemas de George. Lukács dedica em 1918 um ensaio a Stephan George (publicado em seguida A Alma e as Formas) em que sublinha o caráter “profundamente aristocrático” de seu lirismo que “mantém longe de si toda escandalosa banalidade, todos os suspiros fáceis e as moções baratas do coração”. Entretanto, o ensaio não agradou aos iniciados do círculo místico dos adoradores do poeta, porque não reconhecia os pretensos dons proféticos sobrenaturais de George. Alguns anos mais tarde (1946), Lukács retorna sobre a significação da obra de Stephan George; sublinha a “não-fraternidade aristocrático-estética de sua visão de mundo” e acrescenta:
“George recusa apaixonadamente a vida social de sua época.
Não vê nela senão a prosa mortífera para a alma, a perdição encarnada...São
claras as conseqüências do matiz alemão do anticapitalismo romântico. É do ódio
contra este mundo, o mundo do capitalismo e da democracia, que nasceu o
‘profetismo’ de George...”.
Lukacs insistirá, em seu livro Brève histoire de la littérature allemande, nas implicações políticas desse "profetismo", por meio do qual George
"converte-se no chefe espiritual da reação que avança. Mão se contenta em formular apaixonadas acusações contra o mundo contemporâneo; anuncia também, com virulência crescente, sua queda necessária e o advento de um mundo novo, de um novo "Reich", que salvará da maldade e da fealdade... Fundando-se em tais poemas o fascismo o reclama para si. [Mas] não estava inteiramente justificado no que concerne ao poeta. George não quis saber nada do hitlerismo: morreu em exílio voluntário...Não existem laços essenciais ao menos objetivamente." (Lukacs, Brève histoire de la littérature allemande, 1949)
São visíveis as afinidades possíveis com a corrente
neo-romântica do círculo de Max Weber.
Na realidade o próprio Max Weber não pode ser classificado como um neo-romântico. Aliás, é muito difícil definir sua posição político-ideológica: é um “liberal”, como pretende Merlau-Ponty, um “representante ativo da política do capital monopolista”, como pensava a Academia de Ciências da URSS, ou um aristocrata nietzscheano como sugere Jean-Marie Vincent ? Ele era contrário ou favorável à democracia parlamentar, ao militarismo, à social-democracia ? Sem querer, de forma alguma, truncar o debate, desejamos somente chamar a atenção sobre certa “afinidade eletiva”, malgrado diferenças significativas, entre a sociologia de Weber e o anticapitalismo romântico. Jean-Marie Vincent caracteriza com razão a ideologia weberiana como “uma espécie de humanismo precário, estranho às tendências fundamentais do desenvolvimento social (burocratização, desencantamento)”, um pessimismo que recusa com obstinação alguns aspectos da evolução do mundo moderno. Desse ponto de vista, ele foi, sem dúvida, profundamente influenciado por Tönnies, do qual retoma freqüentemente as categorias de análise, tentando superá-las em direção a uma visão mais objetiva da realidade sócio-econômica moderna.
Na realidade o próprio Max Weber não pode ser classificado como um neo-romântico. Aliás, é muito difícil definir sua posição político-ideológica: é um “liberal”, como pretende Merlau-Ponty, um “representante ativo da política do capital monopolista”, como pensava a Academia de Ciências da URSS, ou um aristocrata nietzscheano como sugere Jean-Marie Vincent ? Ele era contrário ou favorável à democracia parlamentar, ao militarismo, à social-democracia ? Sem querer, de forma alguma, truncar o debate, desejamos somente chamar a atenção sobre certa “afinidade eletiva”, malgrado diferenças significativas, entre a sociologia de Weber e o anticapitalismo romântico. Jean-Marie Vincent caracteriza com razão a ideologia weberiana como “uma espécie de humanismo precário, estranho às tendências fundamentais do desenvolvimento social (burocratização, desencantamento)”, um pessimismo que recusa com obstinação alguns aspectos da evolução do mundo moderno. Desse ponto de vista, ele foi, sem dúvida, profundamente influenciado por Tönnies, do qual retoma freqüentemente as categorias de análise, tentando superá-las em direção a uma visão mais objetiva da realidade sócio-econômica moderna.
(...)
“...é horrível pensar que um dia o mundo será ocupado somente
por estas pequenas peças, por pequenos homens que se agarram a pequenos empregos
e procuram obter outros maiores – uma situação que...tem um papel crescente no
espírito de nosso sistema administrativo presente...Esta paixão pela burocracia
é suficiente para pôr-nos em desespero...A grande questão não é saber como
promover e estimular esta evolução, mas como se opor a esta máquina para manter
uma parte da humanidade livre desse desmembramento da alma, desta suprema
dominação do modo burocrático de vida.”
(Max Weber, Gesammelte Aufsätze zur Soziologie und
Sozialpolitik)
(...)
Sem esta dimensão anticapitalista – que seguramente não é senão um aspecto de um sistema teórico complexo, matizado e às vezes contraditório – é difícil de compreender alguns fenômenos como a simpatia de Weber pelos sindicatos operários:
“Eles são os únicos no interior do Partido Social-Democrata que...não se rebaixaram, e que mantiveram o idealismo em face da mediocridade do Partido...O único refúgio do trabalho idealista no seio do Partido Social-Democrata são e serão, em nossas condições alemãs, os sindicatos.”
(...)
Segundo Eduard Baumgarten, para Weber, os sindicatos constituem precisamente um contrapeso ao aburguesamento e à burocratização do Partido, ponto de vista que aproxima o eminente sociólogo de Heidelberg de seu discípulo “sindicalista revolucionário” Robert Michels. O próprio Michels sublinha em outro lugar o interesse de Weber por suas idéias e a abertura das páginas do Archi für Sozialwissenschaft para a corrente sindicalista, com a publicação de artigos de Hubert Lagardelle, Arturo Labriola, Enrico Leone etc. Enfim, segundo o testemunho sempre revelador e penetrante de Paul Honisgsheim, a Weltanschauung de Weber transporta-o para a “vizinhança dos anarquistas e, sobretudo, dos sindicalistas bergsonianos”.
(...)
Sem esta dimensão anticapitalista – que seguramente não é senão um aspecto de um sistema teórico complexo, matizado e às vezes contraditório – é difícil de compreender alguns fenômenos como a simpatia de Weber pelos sindicatos operários:
“Eles são os únicos no interior do Partido Social-Democrata que...não se rebaixaram, e que mantiveram o idealismo em face da mediocridade do Partido...O único refúgio do trabalho idealista no seio do Partido Social-Democrata são e serão, em nossas condições alemãs, os sindicatos.”
(...)
Segundo Eduard Baumgarten, para Weber, os sindicatos constituem precisamente um contrapeso ao aburguesamento e à burocratização do Partido, ponto de vista que aproxima o eminente sociólogo de Heidelberg de seu discípulo “sindicalista revolucionário” Robert Michels. O próprio Michels sublinha em outro lugar o interesse de Weber por suas idéias e a abertura das páginas do Archi für Sozialwissenschaft para a corrente sindicalista, com a publicação de artigos de Hubert Lagardelle, Arturo Labriola, Enrico Leone etc. Enfim, segundo o testemunho sempre revelador e penetrante de Paul Honisgsheim, a Weltanschauung de Weber transporta-o para a “vizinhança dos anarquistas e, sobretudo, dos sindicalistas bergsonianos”.
É somente dentro deste contexto que se pode compreender o
comentário surpreendente que fez Lukács a seus amigos de Heidelberg:
“Max Weber é o homem que poderá arrancar o socialismo do miserável relativismo produzido pela ação de Frank (um dirigente social-democrata revisionista e direitista) e seus asseclas” (...).
“Max Weber é o homem que poderá arrancar o socialismo do miserável relativismo produzido pela ação de Frank (um dirigente social-democrata revisionista e direitista) e seus asseclas” (...).
Simmel e Paul Ernst
Max Weber, em 1917
Provavelmente, o “visitante” mais importante e o mais
influente do círculo de Max Weber era George Simmel, com quem, em Berlim,
estudaram Lukács, Bloch e Karl Mannheim (1) . Segundo Lukács (em 1953), o
pensamento de Simmel também deve ser compreendido como expressão do
descontentamento anticapitalista dos intelectuais, e situado no quadro global da
tendência de crítica anticapitalista da cultura.
SimmelNão é por acaso que, em uma de sua primeiras obras, A Filosofia do Dinheiro (1900), o leitmotif central é a preponderância crescente da quantidade sobre a qualidade, a tendência a dissolver esta naquela, e a substituir tudo o que for determinação específica, individual, qualitativa, pela simples determinação numérica – tendência da qual a dominação cada vez mais esmagadora do dinheiro sobre a vida social é a expressão mais tocante. Graças a esta venalidade universal, não somente todos os objetos, mas também os valores em princípio não quantificáveis, como a honra e a convicção, o talento e a virtude, a beleza e a saúde da alma, se tornam mercadorias, adquirem um “preço de mercado”. A prostituição é a forma suprema desta mercantilização dos valores humanos, forma que manifesta em seu ser a natureza fundamental do dinheiro, sua fria impessoalidade, sua redução do ser humano à condição de simples meio. (2)
O capitalismo, sublinha Simmel, é fundado sobre a transformação do trabalho humeno em mercadoria, em objeto que se opõe ao trabalhador, que se tornou estranho a ele, e que tem suas próprias leis de movimento. Todo o universo da produção capitalista aparece como um cosmos regido por leis internas independentes dos indivíduos e de sua vontade. Estas análises lembram evidentemente a problemática marxista do fetichismo da mercadoria, mas a diferença é que, para Simmel, o fenômeno estudado por Marx não é mais do que “um caso particular” daquilo que constitui a “tragédia da cultura”: a alienação da cultura objetiva em relação à cultura subjetiva, o avanço da cultura das coisas e o declínio da cultura das pessoas (3). Por esse viés, a análise econômica concreta, historicamente determinada, de Marx, é metamorfoseada, ou antes dissolvida em uma visão de mundo trágica, uma psicossociologia a-histórica, uma filosofia da cultura de tendência profundamente metafísica. (4)
Não se pode falar de visão trágica de caráter metafísico sem se referir imediatamente ao poeta e dramaturgo Paul Ernst, que manteve contatos com Simmel entre 1895-1897, e ao qual Lukács vai dedicar em 1910 seu célebre ensaio “Metafísica da Tragédia” (publicado em A Alma e as Formas).
Paralelamente às tragédias neo-clássicas sobre temas medievais (Canossa, 1907) ou teutônicas (Brunhild, 1908), que chamaram a atenção e a simpati de Lukács, Paul Ernst escreveu um grande número de ensaios estéticos e literários nos quais se desenvolve toda a problemática romântica anticapitalista: a decomposição dos valores comunitários, a despersonalização e a mecanização crescente da sociedade moderna etc.(5). O tema centra é ainda uma vez a oposição Kultur/Zivilisation:
“Devemos libertar-nos da ligação entre nossas concepções de cultura e as conquistas da civilização. Os bárbaros podem utilizar a eletricidade e navegar no ar; mas somente os homens cultos (Gebieldete) têm sentimentos profundos e pensamentos elevados. A ciência, também, encontra-se atualmente submetida ao compasso da economia. Porém, não é o homem da economia que pode decidir se um povo tem cultura ou não, mas o poeta e o sacerdorte.”
A eviolução ideológica de Paul Ernst desde o fim do século XIX até sua morte (1933) é um intinerário estranho, mas bastante característico das ambigüidades do radicalismo anticapitalista dos intelectuais alemães deste período: e, em 1888, adere ao Partido Social-Democrata e trava uma correspondência político-literária com Friedrich Engels (cuja carta a Paul Ernst de 5 de junho de 1890 sobre a sociologia das obras de Ibsen é célebre); em 1891 adere a uma ala esquerda, semi-anarquista, do PSD alemão conhecida como die Jünger (“os jovens”), composta sobretudo de intelectuais (“uma revolta de estudantes e de literatos”, escreverá Engels) e acaba por deixar o Partido (6). Em 1892, colabora com o “socialista agrário” Rudolf Mayer na redação de uma obra intitulada Der Kapitalismus fin de siécle, mas deixa logo a política para se dedicar às suas atividades literárias. Entre 1908-1911 escreve suas tragédias neoclássicas e faz amizade com Lukács, mantendo com ele uma rica correspondência de 1911 a 1926. Enfim, depois de 1917, encaminha-se mais e mais para uma ideologia político-literária nacionalista e ultraconservadora, da qual a expressão acabada é a obra Kaiserbuch (1923-1928), um hino à glória do Reich alemão na Idade Média (7).
Entretanto, mesmo em sua fase reacionária, o anticapitalismo permanece no centro do pensamento de Paul Ernst; em um ensaio redigido em 1926, ele olha com nostalgia o mundo “orgânico” destruído pelo capitalismo e pela indústria, e denuncia o universo dominado pelo capital como uma “barbárie absurda” (sinnlose Barbarei).
É interessante notar que em 1926 (ou 1927), Lukács escreveu-lhe uma carta a propósito deste artigo, a última de sua correspondência, na qual o militante bolchevique encontra ainda um terreno comum com o poeta conservador:
“qualquer que seja a divergência entre nossas concepções, há uma possibilidade de discussão, se ao menos nós valorizamos o capitalismo de maneira semelhante. Penso que você está errado sobre praticamente todas as questões, mas, pelo menos, não está do outro lado da barricada.”
(...)
O "Círculo" e o Expressionismo alemão
Também na Alemanha, o fascismo (ou a reação) não é
necessariamente o desaguadouro do anticapitalismo romântico dos intelectuais,
escritores e universitários. Se tomarmos como ponto de referência o círculo de
Max Weber de Heidelberg, que foi um dos principais focos de irradiação desta
corrente, encontramos uma “ala esquerda”, que se tornará marxista,
revolucionária, e bolchevique no pós-guerra. Esta “esquerda de Heidelberg” dará
ao movimento comunista um grande filósofo marxista, utópico-messiânico – Ernst
Bloch – um poeta, dramaturgo e comandante do Exército Vermelho da República dos
Conselhos da Baviera (1919) – Ernst Toller – e, finalmente, o maior filósofo
marxista do século XX e comissário do povo na República húngara dos Conselhos
(1919) – Gyorgy Lukacs...
Toller representa o desenvolvimento expressionista revolucionário do romantismo anticapitalista. Sua primeira educação política tem lugar em 1916-1917, junto a Max Weber em Heidelberg, mestre do qual ele presta homenagem em seu romance autobiográfico, Uma Juventude na Alemanha (1933):
“A juventude une-se a Max Weber; sua personalidade, sua probidade intelectual atraem-na para ele...Nas conversas noturnas revela-se a natureza combativa deste erudito. Com palavras, que colocam em perigo sua liberdade, sua própria vida até, ele revela as misérias do Reich. Ele vê no Imperador o mal principal...”.
Em seguida, sofre a influência utópica do grande pensador anarco-sindicalista Gustav Landauer (descrito por seu amigo Martin Buber como “conservador revolucionário”) que queria substituir a cidade capitalista por uma Gemeinschaft rural, uma aldeia socialista simultaneamente agrícola e industrial, da qual o ponto de partida deveriam ser as tradições camponesas comunitárias conservadas, renovadas e desenvolvidas. Em 1917, Toller corresponde-se com Landauer, cujo Apelo ao Socialismo (1915) “tocou-o e determinou-o de forma decisiva”. De início simplesmente pacifista, enojado com a guerra (que viveu pessoalmente como convocado) o jovem poeta vai evoluir rapidamente para uma posição anticapitalista:
“Os politiqueiros enganam-se a si mesmos e enganam os cidadãos, chamam de ‘ideais” a seus interesses e, por estes ‘ideais’, pelo ouro, pela terra, pelas minas, pelo petróleo, por todas estas coisas mortas, os homens estão famintos, desesperados e são mortos por toda a parte. A questão de saber de quem é a culpa da guerra empalidece ao lado da culpa do capitalismo.”
Vai então se revoltar, em nome de seu pacifismo ardente, contra a economia e o estado capitalistas, esses Golems, esses falsos ídolos que reclamam sacrifícios ilimitados da visdas humanas.
Preso durante uma manifestação operária contra a Guerra, em Munique, Toller escreve da prisão, em 1917-1918, um drama romântico-expressionista que o tornará célebre, A Mutação (Die Wandlung), no qual se encontram grandiosas visões idealistas e messiânicas:
“Agora abrem-se saídas do seio do universo
As altas portas arqueadas da catedral da humanidade
A juventude ardente de todos os povos se lança
À caixa luminosa de cristal, que percebe na noite.”
Tendo aderido ao USPD – Partido Social Democrata Independente – cisão de esquerda da SPD em 1917) e estabelecido ligações da amizade com seu dirigente Kurt Eisner (socialista neo-kantiano e presidente do Governo de esquerda da Baviera), Toller tornar-se-á – após o assassinato de Eisner por um aristocrata reacionário – um dos chefes da efêmera República dos Conselhos da Baviera.
As participações de Toller, do poeta expressionista Erich Müsahm e de Gustav Landauer na Comuna de Munique de abril de 1919, mostram bem quanto, malgrado sua confusão e limitação ideológicas, essas correntes expressionistas e neo-românticas podem ganhar uma dimensão revolucionária autêntica.
Lukács, em seu célebre ensaio sobre A Grandeza e a Decadência do Expressionismo (1934), sublinha o parentesco dessa corrente artística com o anticapitalismo romântico, e particularmente com a crítica cultural do capitalismo, tal como ela se encontra, por exemplo, em A Filosofia do Dinheiro de Simmel. Além disso, Lukács tente destacar as ligações entre expressionismo e a ideologia do USPD, citando como exemplo típico de sua unidade precisamente o caso de Toller em Munique. Entretanto, de maneira estranha e unilateral, não vê nesses dois movimentos (político e artístico) senão “a hesitação da pequena burguesia em face da revolução proletária eminente...o medo em face do “caos” da revolução”. E conclui com esta observação feroz, na qual se sente um ranço do sectarismo do “Terceiro Período”do Komitern: “As duras lutas dos primeiros anos da revolução e seus primeiros fracassos na Alemanha destroem de maneira cada vez mais clara as pseudo diferenças entre a retórica revolucionária e os gemidos dos que capitularam. E acontece então o fim – simultaneamente à dissolução do USPD numa coincidência temporal que não é devida ao acaso – do expressionismo como corrente literária na Alemanha.”
Ora, Lukacs silencia sobre o fato de que o desaparecimento do USPD teve lugar no Congresso de Halle, quando a maioria dos delegados decide a fusão com o PC alemão, partido ao qual adere também (como muitos escritores expressionistas) Ernst Toller, após haver passado muitos anos na prisão por suas funções como cabeça da República dos Conselhos e do Exército Vermelho da Baviera...
O esquematismo de Lukacs torna-se ainda mais surpreendente quando ele pretende que “o expressionismo é, sem dúvida, uma das múltiplas correntes ideológicas burguesas que desemboca mais tarde no fascismo; seu papel ideológico de preparação não é maior – nem menor – que o de diversas outras correntes contemporâneas.”
Três anos depois da publicação do ensaio de Lukács, os nazistas organizaram a tristemente célebre exposição Art Degenere (Arte Degenerada), na qual figuravam praticamente todos os pintores expressionistas conhecidos. Em uma nota acrescentada a seu artigo em 1953, Lukacs proclama imperturbavelmente: “O fato dos nacional-socialistas terem rejeitado mais tarde o expressionismo como ‘arte degenerada’ não muda em nada a exatidão histórica da análise naqui exposta”. O mínimo que se pode dizer (sem querer negar a ambigüidade ideológica da corrente) é que uma análise histórica que ignora a dimensão revolucionária do expressionismo e o reduz a um precursos da ideologia nazista está muito longe de ser “exata”...
(...)
A Montanha Mágica
A ousada associação entre elementos aparentemente contraditórios faz pensar irresistivelmente em certo jesuíta comunista, fervoroso partidário da revolução proletária e da Igraja Católica e em quem se vê, por vezes, uma alegoria de Lukács, por outras, uma imagem de Ernst Bloch, ou ainda uma síntese sui generis dos dois: "Leon Naphta", a singular criação literária de Thomas Mann em A Montanha Mágica.
Thomas Mann, em 1943
Raramente um personagem romanesco suscitou tão ásperas discussões políticas e controvérsias literárias. Seria ele um fascista, como pretende Lukács, ou um bolchevique fantasiado com uma batina, como o afirma Yvon Bourdet ? Não seria uma personificação do próprio Lukács como o pensam tantos pesquisadores franceses: Maurice Colleville, Pierre-Paul Sagave, Nicolas Baudy e, mais recentemente, Yvon Bourdet ? Em nossa opinião, todas estas diferentes teses e hipóteses contraditórias são, ao mesmo tempo, verdadeiras e falsas. Tentaremos demonstrar porquê.
Segundo Lukács, "o jesuíta Naphta" é pura e simplesmente "o representante dos ideais reacionários e fascistas, das idéias antidemocráticas", ou ainda, "o propagador de um sistema de tendência católica que prefigura o fascismo."(1) Nas proclamações revolucionárias e proletárias reiteradas e incendiárias do intelectual (judeu) Naphta, Lukács não vê mais que demagogia anticapitalista reacionária, característica do fascismo. Ressalta, aliás, a similaridade entre o pensamento mórbido do personagem de A Montanha Mágica e a apologia da enfermidade em Novalis. Consequentemente, para Lukács, o eixo central do romance de Thomas Mann é sem sombra de dúvida, "a luta ideológica entre a vida e a morte, a sanidade e a doença, a reação e a democracia", "a luta das ideologias democráticas e fascistas", respectivamente simbolizadas por Settembrini e Naphta, "para ganhar a alma de um Alemão médio moralmente correto", encarnado prlo personagem de Hans Castorp. Chega até a proclamar a visão profética de Thomas mann que, "aproximadamente dez anos antes da vitória do fascismo", "mostra através da literatura que a demogagia anticapitalista é a maior força de propaganda fascista." (2)
No entanto, Lukács constata que o romance "termina com um resultado nulo"; como explicá-lo, no quadro de sua interpretação ? Ele dá a isso duas razões:
1. Trata-se , da parte de Thomas Mann, "de uma apreciação instintivamente sábia da relação de forças no pós-guerra". Argumento bastante discutível, à medida que este período é precisamente "a idade de outro" da República de Weimar, da social-democracia no poder etc.;
2. Thomas Mann jamais escreveu um "romance de tese" parcial : "forças e fraquezas das duas partes estão perfeitamente dosadas nele (vê de forma particularmente aguda as fraquezas da velha mentalidade da democracia em face dos ataques do anticapitalismo romântico)". Portanto, Lukács é obrigado a reconhecer que, no personagem Naphta, Thomas Mann mostra "o caráter sedutor (inclusive no sentido espiritual e moral) do anticapitalismo romântico" e "os elementos justos de sua crítica da vida atual da sociedade". Mas Lukács persiste em não ver na "sedução" de Naphta mais que "demagogia reacionária", anunciadora do fascismo.
É necessário acrescentar que Lukács só vai "descobrir" o
fascista oculto sob a máscara refinada e irônica de Leon Naphta em 1942, quando
da invasão nazista na URSS...
A ideologia de Naphta deriva efetivamente do "fascismo" ou da
"prefiguração do fascismo"? Examinemos de perto uma das principais falas
"programáticas" (se se pode dizê-lo assim) do pequeno jesuíta judeu:
"Os Pais da Igreja chamaram "meu" e "teu" de palavras
funestas e disseram que a propriedade privada era usurpação e roubo. (...) Eram
louváveis a seus olhos o camponês, o artesão, mas não o comerciante, nem o
industrial. Pois queriam que a produção se adaptasse à necessidade e tinham
horror da produção em grandes quantidades. Ora, todos estes princípios e esta
escala de valores econômicos ressuscitaram após séculos no movimento moderno do
comunismo. A concordância é completa, até quanto à reinvindicação da sobreania
formulada pelo trabalho internacional contra o reino internacional do comércio e
da especulação, o proletariado mundial que opõe agora a humanidade e os
critérios do reino de Deus à podridão burguesa e capitalista. A ditadura do
proletariado, condição de sanidade política e econômica deste tempo, não tem o
sentido de uma dominação pela dominação, para toda a eternidade, mas o de uma
suspensão momentânea do conflito entre o espírito e o poder, sob o sinal da
cruz; o sentido de uma vitória sobre o mundo terrestre através da dominação do
mundo; o sentido da transição, da transcendência; o sentido do reino. O
proletariado retomou a obra de Gregório, o Grande, renovou em si seu zelo
piedoso e, tal qual o santo, não poderá impedir sua mão de derramar sangue. Seu
dever é instituir o terror para a salvação do mundo, para atingir aquilo que foi
o objetivo do Salvador: a vida em Deus, sem Estados nem
classes."
Neste discurso (que o narrador escreve como "contundente") efetivamente encontramos uma estranha combinação de catolicismo e bolchevismo, mas onde está o fascismo ? Que fascista alguma vez se refeiu ao proletariado mundial ? Desde quando o fascismo tem por objetivo político instaurar a ditadura do proletariado como forma de transição para uma sociedade sem Estado nem classe ?
Neste discurso (que o narrador escreve como "contundente") efetivamente encontramos uma estranha combinação de catolicismo e bolchevismo, mas onde está o fascismo ? Que fascista alguma vez se refeiu ao proletariado mundial ? Desde quando o fascismo tem por objetivo político instaurar a ditadura do proletariado como forma de transição para uma sociedade sem Estado nem classe ?
A redução ao fascismo, feita por Lukács, da doutrina estranha
e "sedutora" de Naphta, nem sequer é um simplificação; aparece como totalmente
inadequada para explicar seu objeto. Isto não quer dizerque não haja um "nó
racional" na interpretação lukacsiana: não está totalmente errado considerar o
fascismo como um dos desenvolvimentos potenciais do "naphtismo" (se nos for
permitido esse neologismo !); mas uma simples leitura em preconceitos dos
discursos do personagem judeu-jesuíta-bolchevique de Thomas Mann é suficiente
para mostrar a parcialidade da tese de Lukács. Na realidade, o erro de Lukács
não pode ser com´reendido fora de sua atitude geral para com a corrente
neo-romântica, a partir de 1934, ou seja, depois do traumatismo ideológico que
significa para ele o triunfo do fascismo na Alemanha. Retornaremos ao
tema.
A outra interpretação é a que vê em Leon naphta uma figura
romântica do próprio Lukács e, em geral, uma imagem típica do doutrinário
comunista. Examinaremos esta tese em sua última variante, a interessante e
estimulante obra de Yvon Bourdet, Figures de Lukács (1972).
Segundo Bourdet, as declarações de Naphta "permitem
compreender toda a vida de Lukács e até seus últimos dias"; por outro lado, "os
princípios fundamentais de Lukács e de Naphta são idênticos" ! Sempre segundo
Bourdet, Thomas Mann traçou em Naphta não apenas a imagem viva de Lukács, mas
também "o caráter essencial e altamente significativo do militante
leninista".(3)
Naphta não tinha, pois, nada de nazi, nem de romântico; sob uma aparência de jesuíta, seria fundamentalmente comunista, no sentido da III Internacional: "Com uma ironoa profética e uma intuição genial, Thomas mann sabia ver, no militante bolchevique, uma simples reencarnação do homem de Igreja." A tese de Bourdet não está desprovida de pressupostos políticos, como ele mesmo destaca explicitamente, "nosso conceito de Naphta como representante do marxismo bolchevique conduz a considerar o stalinismo como uma continuação coerente do leninismo."
Naphta não tinha, pois, nada de nazi, nem de romântico; sob uma aparência de jesuíta, seria fundamentalmente comunista, no sentido da III Internacional: "Com uma ironoa profética e uma intuição genial, Thomas mann sabia ver, no militante bolchevique, uma simples reencarnação do homem de Igreja." A tese de Bourdet não está desprovida de pressupostos políticos, como ele mesmo destaca explicitamente, "nosso conceito de Naphta como representante do marxismo bolchevique conduz a considerar o stalinismo como uma continuação coerente do leninismo."
O que pensar desta interpretação que se situa,
simetricamente, no pólo oposto à de Lukács ?
Em nossa opinião, não há dúvidas de que Lukács serviu
parcialmente de modelo a Thomas Mann para a fabricação de Leon Naphta: a
semelhança física entre os dois, o nome - ironicamente trocado por Thomas mann -
do proprietário da casa onde Naphta se aloja (o costureiro Lukacek), a
coincidência temporal entre o primeiro encontro entre Thomas Mann e Lukács em
1922 e a aparição no penúltimo capítulo do romance, do novo personagem (Cap. VI:
"Ainda alguém"), enfim, certas declarações e cartas do autor de A
Montanha Mágica, mostram a existência de uma ligação entre o verdadeiro
marxista e o jesuíta imaginário.(4)
No entanto, não se pode fazer caso omisso da carta de Thomas
Mann a Paul Savage, onde o escritor insiste: "Peço-lhe encarecidamente que
não estabeleça relações entre Lukács e A Montanha Mágica, assim
como com o personagem Naphta...Personagem e realidade são extremamente
diferentes e, sem falar dsas origens e da biografia, a combinação do comunismo e
do jesuitismo que criei neste livro, e que intelectualmente talvez não seja
assim tão má, não tem nada a ver com o verdadeiro Lukács."
Y. Bourdet minimiza esta carta creditando-a ao "jesuitismo"
de Thomas Mann.
Tentaremos mostrar mais abaixo porque as notas aparentemente
contraditórias do escritor sobre a relação Naphta-Lukács são "complementares" na
realidade: Lukács serviu parcialmente de modelo a Naphta, mas o pensamento do
jesuíta obscurantista não é, de forma alguma "idêntico" ao do comissário do povo
da República Húngara dos Conselhos...
Para provar esta "identidade", Bourdet é obrigado a encontrar
um traço de igualdade bastante arbitrário entre o antinaturalismo místico de
Naphta e a crítica lukacsiana da dialética da natureza.
Referindo-se à passagem "programática" de Naphta que citamos
acima, Yvon Bourdet acredita que ela é a prova que "Thomas Mann não podia fazer
mais para adverti-los de que se preocupa muito pouco com os jesuítas e que esse
disfarce indica os militantes revolucionários marxistas." O jesuitismo de Naphta
será apenas um "disfarce" do "revolucionário marxista" ? Ora, Thomas Mann, na
carta a Paul Savage, escreve explicitamente que se trata de uma combinação e não
de um mascaramento. Longe de se "preocupar muito pouco com os jesuítas", o
escritor insiste sobre o caráter católico e obscurantista se seu personagem, do
qual a maior parte dos propósitos não tem grande coisa a ver com o bolchevismo,
mesmo "disfarçado". (5)
Por outro lado, é evidente que o anticapitalismo apaixonado e
místico de naphta, suas invectivas contra o "reino satânico do dinheiro e dos
negócios" estão bastante afastadas da crítica marxista e leninista do
capitalismo. Esse distanciamento se deveria, como o sugere Y. Bourdet, ao fato
de que Thomas Mann tinha "um conhecimento insuficiente das análises de O
Capital" ? É necessário estudar os três livros de O Capital para saber que as
teses econômicas de Marx são distintas das dos padres da Igreja, e nada têm a
ver com a nostalgia da Idade Média ou com a luta contra as tentações do Diabo ?
O fato assinalado pelo próprio Bourdet, de que as críticas de Naphta contra o
comércio "se aproxima mais de uma homilia religiosa do que da crítica marxista"
pode ser explicado pela ignorância de Thomas Mann sobre os escritos de Marx
?
Parece-nos então que o jesuitismo, o obscurantismo e o
clericalismo de Naphta não são nenhum "disfarce" nem uma fraqueza devida à
ignorância de Thomas Mann: eles fazem parte de sua ideologia do mesmo modo que a
dimensão revolucionário-proletária.
Nicolas Tertulian, da Universidade de Bucarest, em sua poêmica resposta a Bourdet, está mais próximo de uma análise rigorosa do texto de Thomas Mann, quando encontra (partindo de uma sugestão do próprio Lukács) nos discursos de Naphta "let-motiv de determinada sociologia e determinada filosofia germânicas, de tipo conservador-reacionário, desde Max Scheller de Von Umsturz der Werte a Sombart, e de Von Ewigen im Menschen e desde Othmar Spann até Hans Freyer, temas e atitudes que a forma lukacsiana do "romantismo anticapitalista" definiu exatamente. Os exemplos de pensadores neo-românticos dados por ele não são os mais pertinentes - os autores que influenciaram Thomas Mann nessa época eram antes Dostoievsky, Tolstoi, Novalis, Schopenhauer, Nietzsche, Bergson e Sorel - mas, a idéia fundamental é justa. Em nossa opinião, Tertulian está no caminho certo para resolver o "enigma Naphta" quando fala das "fusões paradoxias" e "misturas ideológicas insólitas", das quais Sorel é um exemplo evidente. Infelizmente, ele retorna, em última instância, à tese clássica de Lukács, considerando as idéias de Naphta como "fascistizantes", sublinhando que os temas do romantismo anticapitalista desaguam necessariamente na "literatira demagógica das ideologias ´ré-fascistas e fascistas" e proclamando peremptoriamente: "as idéias possuem sua morfologia e sua sintaxe rigorosas, as quais tornam impossível uma confusão entre um pensamento "de direita" e um pensamento "de esquerda".
Ora, as "misturas ideológicas insólitas" do tipo Sorel
mostram precisamente que as coisas não são tão simples...
Não podemos também seguir Tertulian quando afirma que o
pensamento de Lukács situa-se "exatamente nas antípodas de semelhantes
constelações ideológicas" e que ele foi "sempre fundado sobre o elogio do
aristotelismo, da renascença, do Século das Luzes, das tradições democráticas
européias". Lukács, ao contrário, reconhecia explicitamente no prefácio de 1967
aos seus escritos de juventude que durante todo um período seu pensamento se
caracterizava por um "idealismo ético como todos os componentes de
anticapitalismo romântico". Voltaremos a este assunto.
Quem é então Naphta ?
As respostas fornecidas por Lukács e Yvon Bourdet são
totalmente opostas, mas resultam de um procedimento semelhante: em ambos os
casos seleciona-se um aspecto do personagem e tenta-se "desembaraçar-se" do
outro. Para Lukács, Naphta é um fascista e seu comunismo não é mais do que
"demagogia"; para Bourdet, ele é leninista e seu catolicismo não é senão
"disfarce". Tentam assim tornar arbitrariamente coerente um personagem cuja
essência são precisamente a contradição e o paradoxo. Ambos são também obrigados
a fazer de Thomas Mann um adivinho, um profeta, um visionário que, por dons
miraculosos de clarividência, previu com grande antecipação o fascismo e o
stalinismo.
Porém, como acentuava, com razão, esse eminente professor da
dialética que se chama Blaise Pascal, "para entender o sentido de um autor é
preciso conciliar todas as passagens contraditórias. Assim, para entender as
Escrituras, é preciso ter um sentido com o qual todas as passagens contrárias
concordem. Não basta ter um sentido que convenha a várias passagens
concordantes, mas ter um que concorde inclusive com as passagens contraditórias.
Todo autor tem um sentido, ao qual todas as passagens contrárias se coadunam, ou
não tem sentido algum."
A nosso ver - e isso decorre de tudo aquilo que temos escrito
nesse capítulo sobre intelligentsia alemã na passagem do século -o sentido com o
qual concordam todas as passagens contraditórias do discurso estranho, sedutor,
repulsivo e ambíguo de Naphta é precisamente o neo-romantismo antiburguês, que
contém em si, como virtualidades, ao mesmo tempo, o comunismo e a reação, o
bolchevismo e o fascismo, Ernst Bloch e Paul Ernst, Gyorgy Lukács e Stephan
George. O gênio da Thomas Mann não está em "profetizar" o futuro, mas em
descrever com ironia e sutileza um fenômeno contemporâneo, levando-o até as
últimas consequências (consequências precisamente contraditórias).
Vimos que as "Considerações de um Apolítico" (1918) de Thomas
Mann estavam profundamente impregnadas pelo anticapitalismo romântico. Em
1922-1923, distanciou-se parcialmente das teses dessa obra (sobretudo de seu
antidemocratismo) sem por isso se vincular ao liberalismo burguês clássico:
donde a hesitação de Hans castorp entre Naphta e Settembrini...Longe de travar
(como pretende Lukács) um "luta ideológica" contra a "demagogia fascista",
Thomas Mann mostra-se, em A Montanha Mágica tão seduzido quanto inquieto peolo
discurso de Naphta. Na realidade, a perspectiva de uma síntese entre o
conservantismo romântico e a revolução socialista - que é a idéia principal de
Naphta - não está tão distanciada das concepções político-culturais do próprio
Thomas Mann, que escreve num ensaio dos anos 20 ("Kultur und
Sozialismus"):
"o que seria necessário, o que seria, inclusive, tipicamente
alemão seria uma união e um pacto entre a concepção conservadora da cultura e as
idéias sociais revolucionárias, entre Grécia e Moscou, se me posso permitir esse
recurso: eis as idéias que um dia eu tentei promover. Declarei que a situação
não seria boa na Alemanha, e que a Alemanha não reencontraria a si mesma, senão
quando Karl Marx tivesse com Friedrich Hörlderlin, um encontro que, todavia,
está a ponto de realizar-se. Esqueci de acrescentar que o conhecimento
unilateral permaneceria forçosamente estéril."
Lukács cita essa frase de Thomas Mann, mas procura esvaziar
seu conteúdo acentuado que Hörlderlin "foi o maior poeta citoyen alemão" e,
consequentemente, estava "muito longe de uma 'concepção alemã conservadora da
cultura'".
Porém, nesse contexto, o que importa não é tanto o
"verdadeiro" sentido de Hörlderlin, mas o sentido que lhe atribui Thomas Mann.
Associando Hörlderlin ao conservantismo cultural romântico, Thomas Mann apenas
segue a tradição da crítica literária alemã. O próprio Lukács o reconhece em
outro lugar, pois em sua Breve História da Literatura Alamã lamenta-se da
"anexação desse revolucionário tardio e solitário que foi Hörlderlin pelo
romantismo reacionário."
Em que a ideologia de Naphta depende do anticapitalismo
romântico ?
Ele condena violentamente "os ingleses (que) inventaram a
doutrina econômica da socieade", "a riqueza capitalista...alimento das chamas
infernais", os "horrores do comércio e da especulação modernas", o poder
demoníaco do dinheiro, "a selvageria bestial e infame do campo de batalha
econômico", burguês etc. E fá-lo em nome da Igreja Católica, de uma nostalgia da
Idade Média e da sociedade pré-capitalista. Seu pensamento é, pois, "mistura de
revolução e obscurantismo" (Settembrini dixit); em uma passagem
surpreendente, Hans Castorp qualifica Naphta de "revolucionário da conservação -
quase a mesma definição que Martin Buber dá do pensamento de Gustav Landauer, o
amigo de Paul Ernst (1891) e Ernst Toller (1918-1919) ! - e o narrador o
descreve nos seguintes termos:
"Naphta era por instinto simultaneamente revolucionário e
aristocrata, socialista, e, ao mesmo tempo, possuído pelo sonho de chegar a
formas de existência nobres e distintas, exclusivas e ordenadas."
A fonte de todas essas contradições e ambigüidades nos é dada
pelo próprio Naphta em uma de suas derradeiras homilias:
"Fala, entre outras coisas, do romantismo e do fascinante
duplo sentido desse movimento europeu do início do Século XIX, diante do qual os
conceitos de reação e revolução se desvanescem, embora não se reúnam em um novo
conceito mais alto." Thomas Mann cristalizou em Naphta, portanto, o "duplo
sentido fascinante" do romantismo, desenvolvendo até o fim os dois
sentidos opostos contidos nessa matriz. A tese que estamos tentando apresentar
neste capítulo, sobre o hermafroditismo ideológico do anticapitalismo romântico
é magnificamente ilustrada pelo personagem do jesuíta comunista, que contém em
si, justapostas, combinadas, misturadas às vezes, as tendências extremas que se
podem desenvolver a partir da raiz comum.
(...)
Numa carta de 1917 a um amigo, Thomas Mann da sua intenção de
opor ao liberal-republicano Settembrini o personagem de um "reacionário
cínico-desesperado".(6)
Esse desespero de Naphta está próximo ao "clima ideológico"
dos principais escritos de Thomas Mann de antes da guerra: a atmosfera de
declínio monumental de Os Buddenbrooks e a da decomposição mórbida de Morte em
Veneza. Na realidade, uma tendência semelhante delineia-se na maior parte dos
autores neo-românticos: Theodor Storm, Stephan George, Paul Ernst. Não é por
acaso que essa versão trágica do mundo seja mais intensa e dramática em Paul
Ernst, cuja recusa da sociedade liberal-burguesa é também a mais impressionante,
inclusive assumindo no início uma forma semi-anárquica (os grupos dos "Jünger"
do SPD em 1891) - antes de se tornar ultraconservador nos anos 20. (7) E não é
também por acaso, como veremos, que Lukács, cujo anticapitalismo é bem mais
radical do que o da maioria dos intelectuais alemães, seja atraído precisamente
pela obra de Paul Ernst.
* * *
No entanto, além da literatura, é no conjunto da
intelligentsia alemã romântico-anticapitalista que se apresenta essa
"consciência trágica" e, em particular, entre os sociólogos
universitários.
Já observamos o aspecto trágico de Tönnies, o profundo
pessimismo social de max Weber e a problemática simmeliana da tragédia da
cultura. A isso pode-se acrescentar a visão da História como declínio permanente
dos valores em Scheller e o tema da decadência em autores tão diversos como
Alfred Weber, Werner Sombart e Oswald Spengler.
Max Weber resumiu notavelmente essa atitude comum a uma larga
fração da intelligentsia alemã (compartilhada parcialmente por ele) nos
seguintes termos:
"Eles (os intelectuais) olham com desconfiança a abolição das
condições tradicionais da comunidade e a destruição de todos os inúmeráveis
valores éticos e estéticos ligados a essas tradições. Duvidam de que a dominação
do capital possa dar garantias superiores e mais duráveis à liberdade pessoal e
ao desenvolvimento da cultura intelectual, estética e social que
representam...Acontece então, atualmente, nos países civilizados, que os
representantes dos interesses superiores da cultura dão as costas e se opõem com
uma profunda antipatia ao inevitável desenvolvimento do capitalismo..."(8)
Os três princiapais aspectos dessa visão trágica são:
1. Uma versão metafísica do problema da alienação, da
reificação e do fetichismo da mercadoria. O exemplo característico é (como já
vimos) a obra de Simmel que transfigura a problemática sócio-econômica do
marxismo em uma visão idealista, de coloração neokantiana, do conflito, do
próprio abismo, entre o sujeito e o objeto, a "vida" e as "formas" culturais, a
cultura subjetiva e a cultura objetiva; autonomização das instituições sociais
com relação às necessidades concretas dos indivíduos, a dominação dos homens por
seus produtos econômicos e/ou culturias que assim se torna um "destino trágico"
inevitável e irresistível da sociedade moderna. (9)
2. Uma dualidade neokantiana entre a esfera de valores e a
realidade, entre o reino do espírito e o da vida social e política, que é
característica da escola de Heidelberg (Rickert, Lask etc) e que também se
manifesta sob formas mais mediatizadas entre os sociólogos (Max Weber
notadamente).
3. O sentimento de "impotência do espírito" em face de uma
sociedade "massificada", inculta, bárbara-civilizada, grosseiramente
materialista.
Concluindo, pode-se dizer que a visão trágica do mundo entre
os escritores, sociólogos, e outros intelectuais alemães da passagem do século é
o produto da combinação entre:
a) uma oposição mais ou menos profunda entre os seus valores
ético-culturais e o processo de desenvolvimento rápido e brutal do capitalismo
industrial monopolista na Alemanha;
b) o desespero de toda possibilidade de conter ou impedir
esse processo, considerado como uma "fatalidade" irreversível.
A intensidade e o radicalismo da visão trágica de mundo
depende, em cada autor, do grau de repulsa diante do capitalismo e da resignação
e/ou indignação diante do seu advento triunfante.
Extraído de : Michael Löwy, Para Uma Sociologia dos Intelectuais Revolucionários.
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