quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Vinte e nove prólogos terá meu romance imprologável






 Imara Bemfica Mineiro
Doutoranda em Literatura Comparada / UFMG

 
http://www.letras.ufmg.br/poslit/08_publicacoes_pgs/Em%20Tese%2016/16%202/TEXTO%204%20IMARA.pdf

“Toda a Arte está em discussão como um todo. Eu sou, pois, mais bem um rotineiro
que um inovador em duvidar seriamente dela”.10 Assim, em um texto escrito por volta de 1927, Macedonio diagnostica tanto esse esforço epistemológico no qual se empenha o campo artístico, quanto algo que se aproxima muito da ideia de “tradição da ruptura”, que, em suas palavras, seria uma “rotina de inovação”. A dúvida que marca o olhar teórico de Macedonio sobre a arte em discussão aponta para o entendimento de que a Arte11 estaria em crise, tratando de olhar criticamente para si mesma, duvidando de si mesma. Sendo assim, Macedonio diz que “na Arte, maior confiança merecem as obras de dúvida de arte do que as
obras de certeza de arte”. Duvidar da arte é olhar para ela de maneira crítica, e, de acordo
com ele, tanto mais artística é a obra quanto mais dúvidas gere acerca de seu caráter artístico. No prólogo “Aos críticos”, de Museo de la Novela de la Eterna, os críticos são definidos como “eternos esperadores (sic) de perfeição” referindo-se à sua disposição em esperar que apareça algo perfeito. Esperam porque ainda não encontraram – desde Kafka, segundo Macedonio – nada que os satisfizesse, e por essa novidade continuariam esperando eternamente. Aquele que espera, espera por algo que não está aí, por algo diferente daquilo que contempla no presente. Esperar pela novidade é, portanto, uma aposta no futuro. Nesse sentido é que Macedonio, em outro prólogo do mesmo romance, pede aos críticos a gentileza
de considerar sua idade avançada e não publicarem resenhas que, não satisfeitas com o romance em questão, afirmem que seu autor seja um escritor de futuro promissor. Tal é a caricatura do crítico traçada pelo romance, como personagem impiedoso e incansável de
esperar pela perfeição. Outra característica que é possível ler nesse personagem é a sua
distância da esfera teórica ou literária (talvez por isso possa ser lido como caricatura). Esse personagem-crítico esboça a figura de alguém que se dispõe a emitir o juízo (questionado por
Said) de anúncio da novidade, e com isso ocupa o lugar fictício daquele que confere à arte a certeza de seu caráter artístico (criticado por Macedonio).
A afirmação de Said de que “a crítica é tanto uma forma de arte, como uma forma de
crise” parece estar também próxima à ideia de Macedonio ainda que novamente parta de outro lugar. 

Talvez seja possível sugerir, a partir da leitura de Macedonio, que para ele a
Arte seria tanto uma forma de crítica, como uma forma de crise, daí o emaranhado dessas noções que parecem se definir umas pelas outras. Daí também o fundamento da leitura do prólogo “Aos críticos” como o traçado de uma caricatura daquilo que se veste e se apresenta como crítico, mas que ao colocar-se a parte das reflexões teóricas e literárias não teriam efetividade em seu olhar crítico.
Conforme Vadimir Safatle, as obras de arte modernas “fiéis à forma crítica” se
organizariam a partir do desvelamento de seu próprio processo de produção.Esse
desvelamento estaria pautado na concepção de que a crítica funciona como dispositivo de distanciamento da produção artística (também crítica e teórica) em relação a conteúdos miméticos. Essas características apontadas por Safatle aparecem, de fato, cumprindo papéis cruciais na proposta estética de Macedonio: “a idéia de classificar e hierarquizar assuntos de arte é uma desgraça; é deprimente da arte impor e valorizar assuntos quando seu valor está na execução”. O distanciamento de qualquer intenção mimética se explicita, no caso do romance Museo de la Novela de la Eterna, quando este é definido em um de seus prólogos, como um manifesto contra o realismo, assumindo o absurdo como sua matéria-prima e solicitando aos leitores que não se empenhem em desenredar os sucessos confusos e independentes de qualquer lógica causal. Um dos fatores que dificulta a leitura do Museo de la novela de la Eterna como
romance é, sem dúvida, a infinidade de prólogos, anúncios, considerações que precedem os
capítulos, os quais, por sua vez, frequentemente expõem os personagens no interior do
romance, discutindo seus papéis, suas condições de personagens, etc. Mais do que um
romance, portanto, o Museo é um projeto de romance, um apanhado de esboços17 teóricos sobre o romance, leitor, personagens, estética e sobre qual seria a função da literatura. Como lemos no comentário de Macedonio sobre inovação, a moda de então era a obsessão pelos personagens de maneira que ele mesmo considera fazer algo sobre isso. De fato, essa vem a
ser uma das propostas do Museo, que começa a ser escrito na década de 1920 e em processo de escrita permanece durante o resto da vida do autor.18
“Vinte e nove prólogos terá meu romance imprologável [...], desenvolvo nele teoria da
Arte e doutrina do Romance...” comenta Macedonio Fernández em uma correspondência a
Ramón Gómez de la Serna.19 E em outra carta, a Alberto Hidalgo, afirma que os anúncios que fazia em volantes distribuídos sobre sua “Novela Futura” já eram o próprio romance.20 Esses dois eventos retomam a questão da definição da obra de Macedonio, bem como apontam para o fato de que tanto o romance e a teoria estão imbricados, quanto a propaganda do romance já se constitui como o próprio romance, criticando a forma tradicional e fechada do gênero realista. Macedonio diz que seu livro possui o “relato cerzido por cortes horizontais que
mostram o que os personagens do romance fazem a cada instante''

Tomando o Impossível como critério de Arte, esse relato se propõe a ser incoerente e a desnudar-se diante do leitor a
todo o momento. Dessa maneira pretende afastar-se de qualquer traço de realismo, de toda
intenção mimética. Se a Literatura tem, para Macedonio, a função de desestabilizar as certezas do leitor, de provocar algum sentimento de imortalidade, esses sentimentos não são incitados pelo estímulo sensorial (pela descrição de sentimentos com os quais o leitor se identificaria – uma espécie de mimese das emoções).
À literatura sentimental, realista e dramática, Macedonio atribui a alcunha de
Culinária. O estímulo do que ele considera Literatura propriamente é desencadeado pela exposição dos procedimentos artísticos. Essa exposição, em lugar de buscar uma identificação direta do leitor através de uma realidade representada pela arte, busca justamente o abalo
dessa identificação de maneira que o leitor chegue a duvidar de qualquer relação sua com o mundo exterior. De acordo com Safatle, a exposição do modo de produção é o artifício do qual lança mão a arte moderna para enfatizar seu distanciamento da atividade mimética e reforçar a ideia de que se define pela autonomia em relação às “representações naturalizadas
na realidade social”.23

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