Sentimos todos os perigos que nos espreitam
nessa questão: o que é Nietzsche hoje? Perigo demagógico (“os jovens
conosco”...) Perigo paternalista (conselhos a um jovem leitor de Nietzsche...) E
em seguida, sobretudo, perigo de uma síntese abominável. Toma-se como aurora da
nossa cultura moderna a trindade: Nietzsche, Freud, Marx. Pouco importa que todo
mundo esteja aqui desarmado de antemão. Marx e Freud talvez sejam a aurora da
nossa cultura, mas Nietzsche é claramente outra coisa, ele é a aurora de uma
contracultura. É evidente que a sociedade moderna na sua essência não funciona a
partir de códigos. É uma sociedade que funciona sobre outras bases. Ora, se
consideramos Marx e Freud, não literalmente, mas o devir do marxismo ou devir do
freudismo, vemos que eles se lançaram paradoxalmente numa espécie de tentativa
de recodificação: recodificação pelo Estado, no caso do marxismo (“vocês estão
doentes pelo Estado, e serão curados pelo Estado”, não será o mesmo Estado);
recodificação pela família (estar doente pela família, curar-se pela família,
não a mesma família). É isto que realmente constitui, no horizonte da nossa
cultura, o marxismo e a psicanálise, como as duas burocracias fundamentais, uma
pública, outra privada, cuja meta é operar bem ou mal uma recodificação daquilo
que não pára de se descodificar no horizonte. O caso de Nietzsche, ao contrário,
não é absolutamente esse. Seu problema está em outro lugar. Através de todos os
códigos, do passado, do presente, do futuro, trata-se para ele de fazer passar
algo que não se deixa e não se deixará codificar. Fazê-lo passar num novo corpo,
inventar um corpo no qual isso possa passar e fluir: um corpo que seria o nosso,
o da terra, o do escrito...
Conhecemos os grandes instrumentos de
codificação. As sociedades não variam tanto, não dispõem de tantos meios de
codificação. Conhecemos três principais: a lei, o contrato e a instituição. Nós
os reencontramos muito bem, por exemplo, na relação que os homens mantêm ou
mantiveram com os livros. Existem livros da lei, nos quais a relação do leitor
com o livro passa pela lei. Aliás, nós os denominamos mais particularmente
códigos, ou livros sagrados. Em seguida há uma outra espécie de livros que
passam pelo contrato, a relação contratual burguesa. É esta a base da literatura
leiga e da relação de venda do livro: eu compro, você me dá o que ler – uma
relação contratual na qual todos, autor, leitor, estão presos. E há ainda outra
espécie de livros, o livro político, de preferência revolucionário, que se
apresenta como um livro de instituições, sejam presentes ou futuras. Toda
espécie de mistura é feita: livros contratuais ou institucionais que são
tratados como textos sagrados... etc. É que todos os tipos de codificação estão
tão presentes, subjacentes, que os encontramos uns nos outros. Seja um outro
exemplo, o da loucura: a tentativa de codificar a loucura é feita sob três
formas. Primeiramente, as formas da lei, ou seja, do hospital, do asilo – é a
codificação repressiva, é o confinamento, o antigo confinamento que será chamado
no futuro a tornar-se uma última esperança de salvação, quando os loucos dirão:
“Bons os tempos em que nos confinavam, pois hoje em dia se passam coisas
piores”. Em seguida, houve uma espécie de golpe formidável, que foi o golpe da
psicanálise: entendia-se que havia pessoas que escapavam à relação contratual
burguesa tal como ela aparecia na medicina, e essas pessoas eram os loucos,
porque estes não podiam ser partes contratantes, eram juridicamente “incapazes”.
O golpe de Freud foi fazer passar sob a relação contratual uma parte dos loucos,
no sentido mais amplo do termo, os neuróticos, e explicar que se podia fazer um
contrato especial com eles (donde o abandono da hipnose). Ele é o primeiro a
introduzir na psiquiatria, e é nisto finalmente que consiste a novidade
psicanalítica, a relação contratual burguesa que até então fora excluída dela.
E, em seguida, existem ainda as tentativas mais recentes, cujas implicações
políticas e às vezes ambições revolucionárias são evidentes, as tentativas ditas
institucionais. Encontra-se aí o tríplice meio de codificação: ou bem será a
lei, e se não for a lei será a relação contratual, e se não for a relação
contratual será a instituição. E sobre essas codificações florescem nossas
burocracias.
Diante da maneira pela qual nossas sociedades se
descodificam, pela qual os códigos escapam por todos os lados, Nietzsche é
aquele que não tenta fazer recodificação. Ele diz: isto ainda não foi longe o
bastante, vocês são apenas crianças. No nível daquilo que escreve e do que
pensa, Nietzsche persegue uma tentativa de descodificação, não no sentido de uma
descodificação relativa que consistiria em decifrar os códigos antigos,
presentes ou futuros, mas de uma descodificação absoluta – fazer passar algo que
não seja codificável, embaralhar todos os códigos. Embaralhar todos os códigos
não é fácil, mesmo no nível da mais simples escrita e da linguagem. Só vejo
semelhança com Kafka, com aquilo que Kafka faz com o alemão, em função da
situação lingüística dos judeus de Praga: ele monta, em alemão, uma máquina de
guerra contra o alemão; à força de indeterminação e de sobriedade, ele faz
passar sob o código do alemão algo que nunca tinha sido ouvido. Quanto à
Nietzsche, ele vive ou se considera polonês em relação ao alemão. Apodera-se do
alemão para montar uma máquina de guerra que vai passar algo que não é
codificável em alemão. É isso o estilo como política. De um modo mais geral, em
que consiste o esforço de um tal pensamento, que pretende fazer passar seus
fluxos por debaixo das leis, recusando-as, por debaixo das relações contratuais,
desmentindo-as, por debaixo das instituições, parodiando-as? Volto rapidamente
ao exemplo da psicanálise. Em que uma psicanalista tão original quanto Melanie
Klein permanece, todavia, no sistema psicanalítico? Ela mesma o diz muito bem:
os objetos parciais dos quais nos fala, com suas explosões, seus fluxos etc.,
são da ordem do fantasma. Os pacientes trazem estados vividos, intensamente
vividos, e Melanie Klein os traduz em fantasmas. Existe aí um contrato,
especificamente um contrato: dê-me seus estados vividos, eu lhe devolverei
fantasmas. E o contrato implica uma troca, de dinheiro e de palavras. A esse
respeito, um psicanalista como Winnicott mantém-se verdadeiramente no limite da
psicanálise, porque tem o sentimento de que esse procedimento não convém mais
num certo momento. Há um momento em que não se trata mais de traduzir, de
interpretar, traduzir em fantasmas, interpretar em significados ou em
significantes, não, não é isso. Há um momento em que será necessário partilhar,
é preciso colocar-se em sintonia com o estado de consciência inspirado. Mesmo assim, isso é seguramente
mais complicado. O que nós sentimos é antes a necessidade de uma relação que não
seria nem legal, nem contratual, nem institucional. Com Nietzsche, é isso. Nós
lemos um aforismo, ou um poema de Zaratustra. Ora, materialmente e
formalmente, tais textos não são compreendidos nem pelo estabelecimento ou
aplicação de uma lei, nem pela oferta de uma relação contratual, nem por uma
instauração de instituição. O único equivalente concebível seria talvez “estar
no mesmo barco”. Algo de pascaliano voltado contra Pascal. Embarcou-se: uma
espécie de jangada da Medusa, há bombas que caem à volta, a jangada deriva em
direção a riachos subterrâneos gelados, ou então em direção a rios tórridos, o
Orenoco, o Amazonas, pessoas remam juntas Remar juntos é partilhar, partilhar
alguma coisa, fora de qualquer lei, de qualquer contrato, de toda instituição.
Uma deriva, um movimento de deriva, ou de “desterritorialização”: eu o digo de
uma maneira muito nebulosa, muito confusa, já que se trata de uma hipótese ou de
uma vaga impressão sobre a originalidade dos textos nietzscheanos. Um novo tipo
de livro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário