sábado, 12 de outubro de 2013

A câmera-olho de John Dos Passos


Logo às primeiras páginas de sua famosa trilogia U.S.A., em Paralelo 42 (o primeiro dos três romances, seguido por 1919 e O grande capital), John Dos Passos, americano nascido em Chicago mas de origem portuguesa da Ilha da Madeira, dá sinais do que, para ele, definiria os Estados Unidos da América no início do século 20. Com efeito, em meio à multidão apressada que se amontoa nos metrôs ao cair da noite, após jornadas fatigantes de trabalho, em que tudo nas grandes cidades parece exigir o máximo de indivíduos profundamente solitários, inseridos na demanda vertiginosa da ascensão do capitalismo, "só os ouvidos, à espera de uma fala, não estão sós…".
É assim que esse narrador em terceira pessoa abre a panorâmica do que vai se delinear na narrativa exaustivamente fragmentada que compõe o conjunto da obra: apenas a multiplicidade de histórias que se tecem, a partir do amplo leque de vozes, prontas para serem colhidas por um ouvido atento, é que pode ajudar a suportar o peso da solidão, do anonimato, da pressão sufocante dos exageros de um universo em que tudo é marcado pela velocidade, em que a euforia diante dos avanços do progresso capitalista esmaga as individualidades em prol do sistema avassalador que, ostensivamente, vai se impondo nas metrópoles:


O jovem anda sozinho, rápido mas não o bastante, longe mas não o bastante (rostos passam e desaparecem, conversas tornam-se farrapos, passadas perdem-se nos becos); ele precisa tomar o último metrô, o bonde, o ônibus, subir correndo as pranchas de embarque de todos os vapores, registrar-se em todos os hotéis, trabalhar nas cidades, atender aos anúncios de empregos, aprender os ofícios, pegar os empregos, morar em todas as pensões, dormir em todas as camas. Uma cama só não basta, um emprego só não basta, uma vida só não basta. À noite, a cabeça rodando de desejos, ele caminha sozinho, só.
Sem emprego, sem mulher, sem casa, sem cidade…
 

Em tempos em que nada parece ser o bastante, os modos de narrar do autor também pretendem dar conta dessa euforia, apresentando como estratégia composicional uma série infinita de personagens que surge em meio a manchetes recortadas de jornais, documentários e revistas de época (as chamadas newsreels), misturadas a fragmentos de discursos políticos e biografias de homens famosos, além de trechos de canções populares, justapostos, numa bricolagem, sem nenhum grau hierárquico e sem nenhuma linearidade. Todos entram na panorâmica de Dos Passos, considerado pelo eminente estudioso Townsend Ludington, da Universidade da Carolina do Norte, como o maior escritor modernista americano. Afinal, nada era suficiente para revelar o espírito frenético de uma época em que a potência americana se afirmava como símbolo do "grande capital" (com todas as contradições que daí advieram). Ao artista importa, então, aguçar os ouvidos e ampliar, ao máximo, a acuidade visual para não perder o que essa infinidade de vozes e a multiplicidade de pontos de vista revelam, já que "era o falar que ficava nos ouvidos, o elo que mexia com o sangue; USA…":


Os USA são a fatia de um continente. Os USA são um grupo de companhias holding, alguns aglomerados de sindicatos, um volume de leis encadernado em couro de bezerro, uma rede de rádio, uma cadeia de cinemas, uma coluna de cotações da bolsa apagada e escrita por um rapaz da Wester Union num quadro negro, uma biblioteca pública cheia de jornais velhos e livros de história com os cantos das páginas dobrados e protestos garatujados nas margens a lápis. Os USA são o maior vale fluvial do mundo, bordejado de montanhas e colinas. Os USA são um conjunto de funcionários falastrões com contas bancárias demais. Os USA são um bando de homens enterrados de uniforme no cemitério de Arlington. USA são as letras no fim do endereço quando se está longe de casa. Mas acima de tudo os USA são o falar do povo.


Compilação de vozes
 

Assim é que podemos afirmar que, antes de mais nada, a América que interessa a John Dos Passos — representada por um diversificado mosaico de formas do narrar — é a dessa ampla e heterogênea compilação de vozes: da mídia, da imprensa e da cultura popular; das biografias, da personalíssima voz do artista (na perspectiva subjetiva da câmera-olho); e também, especialmente, das crônicas de época. De modo muito pertinente, ele é considerado como o grande cronista da vida americana das primeiras décadas do século 20. Em sua trilogia (os livros foram publicados, respectivamente, em 1930, 1932 e 1936), nesse vasto espectro, consegue abarcar desde as manifestações da classe operária (com seus diversos líderes) até as de profissionais liberais, bem como as dos mais altos representantes do poder capitalista instituído.
Alguns críticos, como Walter B. Rideout, por exemplo, percebem o quanto Dos Passos teria sido influenciado por Walt Whitman (a quem muito admirava), especialmente no que diz respeito ao aguçado tom de coloquialismo.
Importa notar, entretanto, que embora haja essa investida numa visão globalizante que almeja simbolizar a excitação característica daqueles tempos marcados pelo excesso num atropelo de imagens e infinita proliferação de vozes, em contrapartida, o modo como o autor combina os diversos tipos de linguagem de que lança mão traduz, na verdade, a ironia com que soube denunciar as arbitrariedades e violência embutidas no discurso hipócrita dos adeptos do capitalismo selvagem.
 
Sacco e Vanzetti


Cumpre sempre lembrar, neste sentido, o quanto John Dos Passos (sobretudo de 1930 a 1936, anos em que se dedicou à trilogia, considerada a obra mais completa sobre a formação da sociedade contemporânea dos Estados Unidos) se definia como jornalista, escritor, pintor — enfim, um artista extremamente comprometido com a causa operária, militando como socialista. Envolveu-se prontamente no famoso caso Sacco e Vanzetti, aderindo à comitiva em prol da defesa dos dois imigrantes italianos que acabaram sendo condenados injustamente à cadeira elétrica, numa das execuções mais arbitrárias que a humanidade já conheceu.
De fato, como nos esclarece Pedro Luso de Carvalho, em 23 de agosto de 1927, nos Estados Unidos, Sacco e Vanzetti foram executados por um crime que não cometeram. Nos autos do processo, nenhuma prova da autoria do crime. Sete anos foi o tempo que a justiça levou para condená-los, a contar do recebimento da denúncia do promotor de justiça pelo juiz. Nesse lapso de tempo, protestos da comunidade intelectual norte-americana, inconformada com a sentença condenatória dos dois humildes italianos, se sucediam. Milhares de pedidos de clemência foram encaminhados por eles, aos quais se somaram tantos outros pedidos do mundo inteiro. Mas tudo foi inútil. A sentença condenatória teria de ser cumprida para servir de exemplo ao povo, para que este se distanciasse do anarquismo e do comunismo (tal reacionarismo radical contra qualquer manifestação da esquerda ficou conhecido, à época, como Red scare).
Publicada a sentença condenatória de Sacco e Vanzetti, que culminou com a morte de ambos na cadeira elétrica, o sonho de uma sociedade americana justa e igualitária havia caído por terra.

 
Jornalista radical


Uma das obras mais significativas a respeito do caso é The never ending wrong (1977), de Katherine Anne Porter, aqui traduzido com o título Sacco e Vanzetti: um erro irreparável (Salamandra, 1978). Conforme nos revela a autora: "Durante alguns anos, no início da década de 1920, quando eu vivia parte do meu tempo no México, cada vez que voltava a Nova Iorque, eu retomava o fio da estranha história dos imigrantes italianos Nicola Sacco, um sapateiro, e Bartolomeo Vanzetti, um peixeiro, acusados de um assalto brutal a um caminhão de pagamentos, incluindo homicídio, em South Braintree, Massachusetts, no começo da tarde do dia 15 de abril de 1920".
Mais ainda do que a comoção e o envolvimento de Katherine Porter, para Dos Passos, a execução de Sacco e Vanzetti representou um verdadeiro momento de transição, uma reviravolta tanto emocional como política. Com efeito, Seth Moglen, especialista em Literatura Americana da Lehigh University, no brilhante ensaio Writing so fiery and accurate: the radical biographies of Dos Passos’ U.S.A. and the work of political mourning explica que entre 1920 (quando os italianos foram presos) e 1927 (data de sua morte), o autor começou a participar do movimento anticapitalista, afirmando-se não só como grande romancista, mas também como jornalista radical na mesma linha de John Reed. Especialmente em 1926 e 1927, ele trabalhou no Comitê de Defesa de Sacco e Vanzetti, devotando seu prestígio e talento de escritor àquela campanha, lutando para salvar a vida de ambos.
A injustiça gritante impetrada contra aqueles humildes imigrantes fez com que estes se tornassem para Dos Passos os representantes mais simbólicos de todo o movimento anticapitalista que se desenvolvera no curso daquela década. Ele se referia ao período da condenação até a execução como "os sete anos de agonia da classe trabalhadora".
Assim ele descreveu o "anarquismo" de Sacco: "Ele amava a terra e o povo. Aspirava a que os trabalhadores pudessem caminhar livres em direção às colinas e não que cambaleassem encurvados sob o maquinário ordenado da indústria".
Quanto aos ideais anarco-comunistas de Vanzettti, Dos Passos admirava aquela "esperança de que, de alguma forma, os instintos humanos predatórios, encarnados no sistema capitalista, pudessem ser canalizados para algo construtivo, como, por exemplo, para as livres comunidades de artesãos, lavradores, pescadores, agropecuaristas, trabalhando juntos por uma sociedade mais justa e igualitária".
Quando ambos foram encarcerados em Charlestown, o autor recebeu a notícia, literal e simbolicamente, como a supressão da aspiração utópica de toda uma geração que o sistema capitalista acabaria por destruir, de modo efetivo.
Nas semanas que se seguiram à execução, Dos Passos concluiu que os escritores de esquerda deveriam assumir o compromisso de reagir àquela repressão:


Sacco e Vanzetti não podem ter morrido em vão. […] Não podemos permitir que a América esqueça o que ocorreu… Todos os professores universitários, escritores, líderes trabalhistas, liberais proeminentes da sociedade civil protestaram, pois ficaram extremamente chocados diante da decisão do estado de Massachusetts em levar adiante as execuções. Trabalhadores de todo o país sentiram-se profundamente consternados. Só de pensar em tão descabida injustiça, o sangue parecia congelar-lhes nas veias. Bem, isso aconteceu; nós protestamos, ficamos estarrecidos… O que faremos agora?


Lamentação e luto


A solução que John Dos Passos deu, pessoalmente, a essa pergunta foi o que de melhor pôde fazer: trabalhar em seu novo romance. Desta maneira a trilogia U.S.A. foi concebida. Mais que tudo, os romances que a compõem, bem antes de representarem quase uma epopéia moderna da formação da sociedade americana (que o consagrou como um dos maiores escritores do século 20), foram a resposta explícita do autor à execução de Sacco e Vanzetti e a sua manifesta reação à década da assim chamada anti-red hysteria (histeria anti-esquerdista). Constituiu um autêntico projeto de lamentação e luto diante daquela mais que significativa perda política. Mas o intento do autor foi permeado, também, por muita revolta e amargura. Embora o que ele mais quisesse fosse perpetrar os ideais anarquistas dos dois injustiçados (a quem defendeu com veemência), sua esperança acabou se contaminando por sentimentos de fracasso e desamparo. Daí porque seja, também, necessário interpretar sua trilogia à luz de todas as contradições profundamente vivenciadas por ele, o que em síntese Seth Moglen denominou "modernismo do luto".


 
Épica modernista


Em seu grande projeto literário de resposta aos desmandos do sistema capitalista que se impunha, John Dos Passos se preocupou eminentemente com as formas do narrar.

 
Assim, os fragmentos que compõem o mosaico dos três romances são estruturados a partir de alguns procedimentos recorrentes, que fazem com que sua trilogia seja analisada — é o caso de críticos como Donald Pizer, por exemplo — como uma épica saga modernista. Conforme observa o estudioso, o processo literário do autor vai se refinando gradualmente desde os primeiros romances até culminar em U.S.A., em que a representação da vida na América consegue ser ao mesmo tempo pessoal, histórica e social.

 
Entre os recursos de que lança mão para tanto, teremos: o da "câmera-olho", em que é possível perceber nuances de prosa poética à la Bildungsroman associada a jorros narrativos de fluxo de consciência muito woolfianos; os recortes biográficos, que surgem como irônicos retratos impressionistas; as newsreels, manchetes e leads coletados aleatoriamente de jornais e documentários de época, que funcionam como colagens surreais; e ainda uma seqüência de narrativas em discurso indireto livre, numa composição arquetípica da sociedade americana. Mas, sempre, na base da tessitura romanesca, percebemos o refinamento irônico de uma literatura engajada, altamente comprometida com a denúncia das contradições da grande potência, cujas mazelas ocultavam-se nas dobras dos discursos políticos ufanistas e hipócritas dos representantes e detentores do big money. É o que vemos, por exemplo, na seguinte seqüência de Paralelo 42:


FUNCIONÁRIOS NADA SABEM DE VÍCIO
Diretores dos serviços sanitários transformam as águas do rio Chicago em canal de esgoto LAGO MICHIGAN LIGA-SE AO PAI DAS ÁGUAS Zuchterverein alemão aberto concurso de canários cantores luta pelo bimetalismo na proporção de 16 por 1 não está perdida diz Bryan

BRITÂNICOS DERROTADOS EM MAFEKING
Pois muitos homens foram assassinados em Luzon


REIVINDICAM AS ILHAS PARA SEMPRE
O Hamilton Club ouve discurso do ex-congressista Posey da Indiana
RUIDOSA RECEPÇÃO AO NOVO SÉCULO
TRABALHADORES SAÚDAM NOVO SÉCULO
IGREJAS SAÚDAM NOVO SÉCULO
O sr. McKinley dá duro em seu gabinete na entrada do ano novo.
NAÇÃO SAÚDA AURORA DO NOVO SÉCULO
Respondendo a um brinde — Salve Columbia! — no banquete do Columbia Club em Indianápolis, Indiana, o ex-presidente Benjamin Harrison disse, entre outras coisas: Nada tenho a dizer, aqui ou em qualquer outra parte, contra o expansionismo territorial [...]
Moças da Sociedade Chocadas: Dançaram com Detetives

Pois muitos homens foram assassinados em Luzon
e Mindanao [...]
 
Respondendo ao brinde "Ao século vinte", o senador Albert J. Beveridge disse entre outras coisas: O século vinte será americano. O pensamento americano o dominará. O progresso americano lhe dará cor e direção. As conquistas americanas o tornarão ilustre.
A civilização jamais perderá seu controle sobre Xangai. A civilização jamais sairá de Hong Kong. As portas de Pequim jamais tornarão a fechar-se aos métodos do homem moderno [...]
Muitos homens de bem assassinados nas Filipinas
Jazem adormecidos em algum túmulo solitário.
 
O olho da Câmera (1)


quando se anda pela rua é preciso pisar com cuidado nas pedras para não esmagar as verdes e ansiosas folhas de grama é mais fácil quando se pega a mão da Mamãe e se gruda nela dessa maneira pode-se dar topadas mas andando depressa se pisa em muitas folhas de grama as pobres línguas verdes machucadas se escondem sob os pés talvez seja por isso que essas pessoas estão tão furiosas e seguem a gente mostrando os punhos estão jogando pedras gente adulta jogando pedras [...]

 
Mac

Quando o vento soprava das fundições de prata do outro lado do rio, o ar da cinzenta casa de madeira para quatro famílias em que Fainy McCreary nascera sufocava o dia todo, com o cheiro de sabão de óleo de baleia. Nos outros dias, cheirava a repolho e a bebês e aos tachos de lavar roupa da sra. McCreary. Fainy nunca podia brincar em casa porque o Pai, um aleijado de peito cavo, com um cerdoso bigode louro grisalho, era vigia noturno nas Fábricas Chadwick e dormia o dia inteiro. Só lá pelas cinco horas uma lufada de fumo de tabaco infiltrava-se da sala da frente até a cozinha. Era o sinal de que o Pai acordava e estava de bom humor, e logo pediria seu jantar [...]

 
Nessa bricolagem em que entram diferentes formas de linguagem, de discursos, além da multiplicidade de vozes que ecoa no curso da narrativa, numa primeira instância de leitura talvez só percebamos o nonsense caótico, a "corrupção" das formas a que faz referência Pizer, afastando qualquer possibilidade de entendimento numa marcada adesão aos tons surrealistas e dadaístas de fragmentação e ruptura com a lógica discursiva. Porém, aos poucos, conforme o romance se desenvolve, vamos nos dando conta de que, justamente pelo contraste gritante entre as manchetes de notícias extremamente supérfluas, as dos discursos políticos nacionalistas manipuladores e, em oposição extrema, as que denunciam a pobreza e as condições precárias de vida da classe trabalhadora (muitas vezes, ainda por cima, formada por operários imigrantes, que sofriam todo tipo de discriminação étnica), além da narrativa sempre em primeira pessoa e mais poética e cinematográfica do "olho da câmera", é que as chamadas contradições da "aurora do novo século" na América vão sendo reveladas. Mais que isso, vão sendo denunciadas, pois "o ouvido atento de quem sempre está à espera de histórias" não deixa de exacerbar as feridas do capitalismo selvagem e da violência que este impetrou contra os militantes da esquerda.

 
Daí porque seja necessário reiterar que o que moveu a literatura explicitamente atrelada aos mestres das vanguardas modernistas em John Dos Passos — sobretudo na composição da trilogia U.S.A., fazendo, inclusive, com que recebesse a alcunha de "maior modernista americano" nos termos propostos pelo crítico Townsend Ludington — foi principalmente o sentimento de profunda perda política e de pesar que definiu seu mister literário como nítido exemplo de um "modernismo do luto", tal como bem notou Seth Moglen.
Recortes biográficos
 

É dentro dessa perspectiva que devemos interpretar os chamados "recortes biográficos" utilizados em meio aos demais procedimentos narrativos. Com efeito, tais memoriais, dedicados a alguns dos mais importantes líderes da esquerda, breves, incisivos e, muitas vezes, poéticos, constituem, no conjunto da obra, um verdadeiro retrato coletivo dos principais nomes do movimento anticapitalista da época. É assim que, em Paralelo 42, Dos Passos celebrou Eugene Debs, líder do Partido Socialista; Big Bill Haywood, principal referência do I.W.W. (Industrial Workers of the World ou Wobblies), que, em seu auge, em 1923, chegou a congregar cerca de 300 mil trabalhadores, tendo sido violentamente dizimado pelo red scare em 1924; Charles Steinmetz, um imigrante inventor socialista; e Robert La Follette, o radical Senador de Wisconsin.

 
1919, o segundo romance da Trilogia, contém biografias de dois mártires Wobbly (da I.W.W.): Joe Hill, famoso compositor que foi executado no estado de Utah, e Wesley Everest, que foi linchado durante o Massacre de Centralia de 1919, em Washington. Nesta mesma obra, encontramos as biografias de três importantes intelectuais socialistas: John Reed, o líder revolucionário jornalista; Randolph Bourne, crítico cultural anticapitalista; e Paxton Hibben, diplomata e escritor.
 
A última dessas biografias radicais aparece em O grande capital e traz a figura de Thorstein Veblen, cujos escritos tiveram grande influência na formação socialista de Dos Passos.

 
Interessante observar que os modos pelos quais o autor as recorta e insere no grande contexto fragmentado e polifônico da trilogia é que as retira da instância de relato histórico meramente documental, conferindo-lhes a relevância poética que passam a assumir.
 
Derrota política


Seth Moglen chama a atenção para o fato de que tais biografias não aparecem apenas para relembrar o acontecido, num viés testemunhal, mas muito mais para dar conta do pesar, do luto de uma trajetória política de derrota. Representam o coro de vozes que, tanto quanto as de Sacco e Vanzetti, foi obrigado a calar. Segundo Dos Passos, elas traduziriam o espírito democrático do movimento anticapitalista em prol da igualdade que o red scare conseguiu, sistematicamente, destruir.

 
É assim, por exemplo, que em Paralelo 42 vemos desenhada a figura de Eugene Debs:
 
Amante da humanidade

Debs era ferroviário, nascera num barraco de tábuas em Terre Haute.
Era um de dez filhos.
O pai viera para a América num veleiro em ’49,
um alsaciano de Colmar; não era muito de ganhar dinheiro, gostava de música e de ler;
deu aos filhos a oportunidade de concluir a escola pública e isso foi quase tudo que pôde fazer.
Aos quinze anos, Gene Debs já trabalhava como maquinista na Estrada de ferro de Indianápolis e Terre Haute.
Trabalhou como foguista de locomotiva,
escriturário numa loja
associou-se à seção local da Irmandade de Foguistas de Locomotiva, foi eleito secretário, viajou por todo o país como organizador.
Era um homem alto de andar bamboleante, tinha uma espécie de retórica tempestuosa que punha em fogo os trabalhadores da estrada de ferro em seus salões de pinho
fazia-os querer o mundo que ele queria,
um mundo partilhado por irmãos
onde todo mundo tivesse o mesmo quinhão:
Não sou um líder trabalhista. Não quero que vocês me sigam, a mim ou a qualquer outro. Se estão em busca de um Moisés que os conduza para fora do deserto capitalista, fiquem exatamente onde estão. Eu não os conduziria a essa terra prometida mesmo que pudesse porque, se eu pudesse conduzi-los para dentro, outra pessoa os conduziria para fora. [...]
Mas onde estavam os irmãos de Gene Debs em mil novecentos e dezoito quando Woodrow Wilson mandou prendê-lo em Atlanta por discursar contra a guerra? [...]
E trouxeram-no de volta para morrer em Terre Haute
para sentar-se na varanda numa cadeira de balanço com um charuto na boca,
a seu lado rosas Beleza Americana que sua esposa arrumava num vaso [...]
porque ele dizia:



Enquanto houver uma classe baixa eu pertenço a ela, enquanto houver uma classe criminosa eu pertenço a ela, enquanto houver uma alma na prisão eu não sou livre…

 
Da Esquerda para o Conservadorismo


É estranho imaginar como esse John Dos Passos, brilhante escritor americano do século 20, tenha, em seu percurso de vida, transitado de um extremo engajamento político de esquerda ao do conservadorismo reacionário, ao qual acabou, ao final, aderindo.

 
Talvez tal tendência não destoe muito da de outros tantos intelectuais, profundamente decepcionados com as quedas dos muros, dos ideais socialistas e dos projetos utópicos de construção de sociedades mais justas e igualitárias.
 
Seja como for, o famoso modernista, que logo após ter se graduado em Harvard confirmava seu anseio em prol da necessidade de renovação das manifestações artísticas em geral, como bem defendeu em seu primeiro ensaio jornalístico, em 1916, no The New Republic, intitulado Against american literature, é um dos nomes mais importantes quando se pensa na afirmação da literatura americana, capaz de ecoar as grandes rupturas formais de uma época de radicais experimentações.
 
Muito dessa adesão aos influxos modernistas daqueles tempos são revelados por Dos Passos na introdução de 1930 à sua tradução do francês de um longo poema de Blaise Cendrars. Conforme ensina Townsend Ludington, o autor, então, declarara que:
 
aquele poema fazia parte da gigantesca onda de criatividade que se alastrou pelo mundo todo, vindo de Paris, antes da última guerra na Europa. Assumindo vários nomes: futurismo, cubismo, vorticismo, modernismo, muitos dos melhores trabalhos artísticos de nosso tempo foram o produto dessa explosão, que exerceu uma influência tão significativa nessa esfera do conhecimento, que pode ser comparada aos mesmos efeitos do impacto da revolução de Outubro, nas organizações sociais e políticas e a da fórmula de Einstein, na Física. Cendrars e Apollinaire, poetas, fizeram parte das primeiras barricadas cubistas, junto ao grupo de artistas que incluía Picasso, Modigliani, Marinetti, Chagall, que influenciaram profundamente Maiakovsky, Meyerhold, Eisenstein, cujas idéias chegaram até Joyce, Gertrude Stein, T. S. Eliot. A música de Stravinski e Prokofiev e o Balé de Diageleff, de certa forma, eram também provenientes da mesma Paris, representando a desintegração da vitória, do mesmo modo como a representavam as janelas da Saks da 5ª Avenida, a arquitetura dos altos edifícios, o memorial a Lenin em Moscou, os painéis e pinturas de Diego Rivera na Cidade do México e os novos tipos gráficos e estilos usados pelos anúncios de propaganda nas revistas americanas.
Lost generation


John Dos Passos é também arrolado entre os famosos artistas que formaram a assim chamada "Geração Perdida". O termo é atribuído tradicionalmente a Gertrude Stein, mas foi popularizado por Ernest Hemingway em seu livro O sol também se levanta e em suas memórias no livro Paris é uma festa, e se refere a um grupo de celebridades literárias americanas que viveu em Paris e em outras partes da Europa no período em que se viu o fim da Primeira Guerra Mundial, no começo da Grande Depressão. Entre seus membros mais notórios, incluíram-se o próprio Hemingway, F. Scott Fitzgerald, Ezra Pound, Sherwood Anderson, Waldo Peirce, John Dos Passos e T.S. Eliot. Embora fosse irlandês, James Joyce faria parte deste movimento com seu romance Ulysses, considerado por muitos estudiosos como um dos mais importantes desta geração.
Seja como maior modernista americano ou jornalista da esquerda radical, seja como ativista político anticapitalista, defensor da causa Sacco e Vanzetti ou membro da Geração perdida, John Dos Passos deixou, em meio à sua vasta produção intelectual (que incluiu até mesmo um livro sobre o Brasil), a mais importante saga sobre a formação da sociedade americana no início do século 20 e as contradições da afirmação do sistema capitalista. Um dos grandes inovadores da literatura americana, investiu em formas narrativas inusuais, consciente de que sua linguagem, refletindo a polifonia de vozes e a multiplicidade de pontos de vista, continuaria, ainda que ficcionalmente, a questionar o establishment, ecoando sobretudo o que apregoavam os que foram obrigados, injustamente, a calar…
 

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