segunda-feira, 28 de outubro de 2013

OLHO DA CÂMERA (10)



Cidade do São Salvador da Bahia de Todos os Santos. Inventei um personagem para um filme. Tenho dezesseis anos de idade e minha idéia fixa sobre o personagem em questão é de que um aventureiro minimamente sensato se aventura primeiro na própria imaginação, lendo e estudando mapas dentro de um quarto isolado do mundo, nos diálogos com outros personagens obscuros sobre rotas de garimpo e em uma ou outra nuance que o olho-da-câmera possa transformar numa imagem de vídeo emocionalmente viva e reveladora. Só depois ele parte! Falei sobre isso ontem á noite no curso de roteiro que estou fazendo na Casa de Cultura Alemã, no Corredor da Vitória, ao defender a idéia central do meu pré-roteiro de curta-metragem. Mas não prestaram muito atenção, por causa da minha idade. TOMADA EXTERNA: (GAROTA: fique quieto com as mãos, que aqui todo mundo me conhece. JACK (irônico): Desculpe, espera um pouco (agora, um pouco atrapalhado andando ao seu lado, está examinando a garota, vinte anos, corpo bem feito, vestida modestamente, com uma rústica animalidade na fisionomia: entre o Mercado do Peixe e a Praça do Rio Vermelho, passando pelo antigo casarão de Jorge Amado e Zélia Gattai com um cigarro entre os dedos. ---- Está muito á frente do seu tempo(...)". Há meses, venho pensando em como fazer para que meu personagem saia para o mundo com um mínimo de dignidade, nada de brigas entre familiares, desespero financeiro, desilusão amorosa, etc. Nada disso: quero provar simplesmente que no mundo há pessoas assim, que de repente perdem a confiança num mundo movido por uma diabólica sujeira de bastidores e se vão com uma alegre excitação na alma e pronto (GAROTA: ei, vamos indo que vai começar á chover!) e não são poucas... - (e, em seguida, um tanto intimidada com a elegancia do automóvel que passou com o farol alto do nosso lado: -Que carrão!) - alegre excitação na alma por estar mudando o rumo da realidade segura e petrificada de cada dia através de um sistema de filtragem do imprevisível que é energia vital pura, eu disse isso no curso de roteiro ontem á noite e subitamente uma morena magra de óculos fundo de garrafa me questionou dizendo que eu estava com medo de poetizar o personagem e que ele iria acabar ficando sem graça e sua aventura seria entendida como um naufrágio existencial comum. Ela era muito mais velha do que eu, de modo que eu fiquei sem saber o que dizer. (JACK: -Amanhã converso com você, o que você pretende dizer com isso?), leio esse diálogo no meu pré-roteiro e imediatamente retruco á ela: --- O que você pretende dizer com isso(?) ---, a morena, inclinando-se em sua mesa e ajeitando os óculos em seu rosto, respondeu: --- Sei lá! ---, e voltou á uma atitude passiva e indiferente. (GAROTA: - Não tem rádio no carro?) - JACK, tomando o volante, fecha a porta e liga o carro: -Vamos embora dessa cidade, JÁ! - Olho em volta e estou discutindo sozinho dentro da minha mente com a morena de óculos fundo de garrafa, quero um diálogo de despedida diante de alguma coisa pegando fogo na frente de um terreno baldio, talvez um bar com ciganos e garimpeiros mau encarados, discutindo dívidas em voz alta. Talvez um tiroteio, correria, gritos. (JACK, ombro á frente ecoando rio abaixo: - Não pense que estou satisfeito com essa farra psicodélica(...) não estou satisfeito com isso, meu alter-ego não é um alucinado fajuto balbuciando doideras para as estrelas do mar: ele tem um dente de ouro no fundo da boca e tudo é importante para ele na vida, o peitoral contraído contra os feixes do cordão de prata e o grande crucifixo, indicando que ele é um mensageiro do espírito em luta contra as potências das sombras que tentam confundir e angustiar as pessoas promovendo falseados mitos de sucesso através do sistema de valor social (universidades, mídia, partidos políticos e multi-nacionais: Davi contra Golias) que controlam o espaço interno das pessoas contaminando a linguagem com um jogo onde espelho reflete espelho continuamente e as pessoas só conhecem os reflexos umas das outras, uma pesada imagem própria que temos todos que carregar e defender diante dos outros, que condiciona todos os nossos atos e reações, que é como um bicho feito de energia estranha para cada um, flutuando sobre a nossa cabeça, controlando as imagens mentais dentro de nós, se alimentando de nossa energia psíquica á cada reação nossa de medo, raiva, vaidade, preocupação, etc(...) ah, se cada um pudesse ver com os próprios olhos como funciona isso, essa medonha companhia de todas as nossas horas, nos tratando como comida e nos mantendo todos presos nessa condição para poderem fazer seu banquete dia após dia(.) JACK vê o CONTROLADOR GERAL fumando jogado na poltrona. Sob o ângulo formado por suas pernas a janela deixa passar o pisca-pisca dos anuncios de neon da cidade lá fora. Junto ao transmissor telepático do grande corpo social do império, o grande corpo social do império que tem a consistência e a inércia de uma telepática medusa varada, no grande corpo social do império que é como uma enorme e telepática medusa varada com toda sua rendondez sobre toda a redondez da TERRA, estão plantados os ELETRODOS. O CONTROLADOR-GERAL espreita cada passo de JACK na sua direção comum sorriso maligno. JACK olha em volta, analisando as dimensões megalomaníacas da sala de controle. São centenas, milhares de eletrodos, um número incalculável de eletrodos, de tipos tão diversos que inclusive já nem parecem eletrodos. O eletrodo-televisão, certamente, mas também o eletrodo-dinheiro, o eletrodo-remédios-de-tarja-preta, o eletrodo-assistencia-social, o eletrodo-bem-me-quer-mal-me-quer. Por meio desses milhões de eletrodos, de naturezas tão diversificadas que JACK subitamente renunciou a conta-los, O CONTROLADOR-GERAL mantém o plano encefalogramático da metrópole imperial. Por esses canais, imperceptíveis para a grande maioria da população, se emitem ininterruptamente informações, súbitas mudanças de ânimo, os afetos e contra-afetos, as simpatias e antipatias necessárias para se prolongar o sonho tóxico da população zumbi de um mundo devastado e dominado por trevas. E nota que JACK passa por alto todos os outros dispositivos agregados aos eletrodos principais, como jornalistas, sociólogos, policiais, intelectuais, críticos literários, pofessores e demais agentes de um incompreensível voluntariado ao qual se delegou a tarefa de orientar a atividade subalterna dos eletrodos) - ESCURECIMENTO. Uma ajudinha, Mariana! (JACK: -Pro inferno com essas festas em apartamentos, não vou mais (...) sabe onde eu dormi ontem á noite(?) - Depois, nadar. Ir para o colégio de ressaca, sentar do lado da carteira dela, pegar na sua mão na frente de todo mundo, como ela gosta, e assistir ao cinema vesgo das químicas e matemáticas. Olho o relógio: dez da manhã, sexta-feira metade do bairro mata aula e vai para a praia em frente. Á noite tenho uma competição de natação na Associação Atlética da Bahia, praia, piscina, professora de natação, namoradinha do colégio, quarto, solidão, vazio, avanço entre todos os delírios da realidade, saído junto com eles de uma mesma fornada ou jato de consciência. Toca adiante! (JACK, agora ele está parado diante da porta de um quarto num corredor. É uma porta razoavelmente velha no final de um corredor razoavelmente decrépito, naquele tipo de hotel barato que era novo no tempo em que o banheiro azulejado até o teto se tornou a base da civilização ocidental. Entra no quarto e recolhe seus pertences, é um despojadíssimo quarto de quinta categoria. Duas camas, uma cômoda claudicante, uma batéia de garimpo de ferro esmaltado e um jogo de peneiras para pedras preciosas no chão, que são dele mesmo. Cai na cama por um momento, os olhos fixos no teto. Em seguida, lentamente, volta-se para sua bolsa de couro sobre a cômoda. Olha-a demoradamente. ESCURECIMENTO. Agora ele está parado á margem de uma estrada, na periferia de uma cidadezinha de garimpo do interior da Bahia. Procura se proteger da chuva com o casaco, encosta numa parede. Os faróis de um caminhão surgem na escuridão. --- Vai para Salvador(?) ---- Vou... ----- Suba(.), é um velho caminhoneiro absolutamente comum, pacato e solidário ----, a janela é fechada, o caminhão parte ---- Onde vc estava hospedado? Encontrou algum ouro? - No Hotel Terminus. Uma mixaria só. O ouro aqui é todo fagulhado e 18 quilates. Uma poeira pesada demais debaixo dágua. Haja paciência(!). - Mas aqui não existe nenhum Hotel Terminus. - Isso é o que todo mundo diz pra mim (risos). Lembro que minha prancha de surf está jogada num terreno baldio, no caminho do colégio, e que o colégio está jogado no meio da rua, no caminho para a praia do Buracão. Olho o relógio de novo. É sabido que o surf tem uma origem iniciática, mítica, ritual. Era um rito para atualizar um mito. O homem sobre a prancha, um mantra, um yantra, uma mandala orgânica. Sua identidade essencial com o délfico, a domesticação das ondas, das ilusões, compulsões e obsessões, do espírito montado sobre o corpo: é Cristo potencial andando sobre as águas! (JACK: - Mesmo que seja na hora da aula(?) Caderno de capa verde... onde foi parar o JACK(?) na água, surfando(?) Só aparece para mim quando estou na rua ou em contato com outras pessoas. Chamo ele de JACK em homenagem ao escritor aventureiro Jack London. Mas qualquer hora dessas vou ter que dar á ele um nome bem brasileiro, talvez meu prórpio nome, justo. Decidi escreve-lo num caderno de personagens, que por acaso virou um pré-roteiro, mas as únicas impressões que colho do que escrevi até agora são de uma densa e impenetrável selva de imagens sem significado. Pensando bem... Talvez o ideal seja conversar mais com a morena de óculos fundo de garrafa, chama-la para sair, extrair dela a quintessencia do bom-senso cinematográfico, até amadurecer o conjunto da obra. Patrícia, seu nome. Flertei com ela no fim da aula e ela se sentiu embaraçada, por causa da minha idade. Acendo um cigarro. Se ela conhecesse a juventude do meu condominio, faria uma idéia mais forte de mim. Respaldo de grupo, nessa idade funciona perfeitamente. Ver para crer: praia do Buracão! (JACK: -Terei que decidir ainda... PATRÍCIA: -Como? -JACK: - Decidir se devo continuar como o personagem principal por mais quatro cenas, quatro cenas é muito tempo para mim ). De volta para a Babilônia-beach. Sagacidade corporosidade afiada e malandros de tudo que é lado cercando as garotas da rua por todos os lados. Garotas passam pela palha, cuspe no baseado mal apertado. JACK: - É realmente necessário continuar fumando essa farofa-fantasy(?) - Eu me sento á uma certa distância porque não pratico boxe como os outros e não gosto de fumar em público. (PATRÍCIA: -Sabia que ELE escreve (?) -GAROTA: -Nas horas livres, quando está com a corda dada...-, alguns segundos de embaraço mútuo : PATRÍCIA: -Cuidado para não dar corda demais nele, porque (PAUSA...) ele se perde com frequência no meio daquele jorro de imagens (.) -JACK(visivelmente contrariado): - Garçom, a conta por favor(...) JACK, tomando o volante, fecha a porta e liga o carro: -Vamos embora dessa cidade, JÁ! ). Mariana está olhando para mim sentado na areia. Cospe no teu próprio olho e acorda, JACK! Telegrama do mimo, senhas... Ela quer um diálogo com trechos inteiros plagiados de Wordsworth, romance, corações despedaçados, uma cena de sexo explícito num quarto de hotel, ela se levanta da cama e entra num banheiro azulejado até o teto, um circuito fechado com esses diálogos diante de alguma coisa pegando fogo na areia da praia, ela olha pela persiana do banheiro azulejado até o teto e vê o futuro. Babilônia-beach. As pessoas sob o sol parecem pedaços de mormaço falantes dentro de uma nuvem azulada de fumo. As palavras de Mariana são provocativas como fogo para minhas tripas. (MARIANA: - Me leva no cinema do shopping hoje(?) É que o pessoal do colégio(...) Me deixa ler o seu roteiro de novo, hoje á noite(?). CINEMA. TOMADA INTERIOR. Na tela, o filme está sendo projetado. JACK: - Somos namorados, Mariana(?) - MARIANA: - Tá vendo(!) ). Cacarejos de silêncio e beijos no escuro. Mariana! Me levanto e dou uma volta com ela na areia, a perna na frente da cinderela. Pego. Todos no colégio me tomam como seu namorado (JACK: - Não assumir nenhum compromisso até o próximo Domingo, porque... pensando bem, porque?(...) MARIANA: - Vou comprar cigarros(...) vou na sua casa hoje á noite, pretendo dormir com você(.) Seu pai é tão gente boa, muito inteligente(.) ). JACK, pensando comigo mesmo: --- Diga que está novamente seco por ela, então(!) - Digo, pronto, já está dito e estou mesmo seco por ela de novo(.) - MARIANA(:) - Lembre-se de dizer á sua mãe que foi você quem me caçou apaixonadamente no colégio, e lembre-se de ter uma conversinha comigo ao pé do ouvido de vez em quando, na frente de todo mundo do colégio(.) ---). Cospe no teu próprio olho, JACK! Essa obsessão dela com o colégio é foda, me deixa meio cismado(!) (JACK (agitado, impaciente), tomando o volante, fecha a porta e liga o carro: -Vamos embora dessa cidade, JÁ! ). RIMBAUD: --- Que as cidades se iluminem à noite. Minha temporada aqui acabou. O ar marinho queimará meus pulmões; os climas perdidos me curtirão. Voltarei, com membros de ferro, pele escura, olhar selvagem: por minha máscara, me julgarão de raça forte. Terei ouro. Me envolverei nos assuntos políticos. Serei salvo pela bancada do garimpo. (JACK: -Terei que decidir ainda... PATRÍCIA: -Como? -JACK: - Decidir se devo continuar como o personagem principal por mais quatro décadas, quatro décadas é pouco tempo para mim ). (JACK, ele entra afobadamente num quarto de hotel e recolhe seus equipamentos de garimpo num canto, é um despojadíssimo quarto de quinta categoria. Cai na cama por um momento, os olhos fixos no teto. Em seguida, lentamente, volta-se para sua bolsa de couro sobre a cômoda e lembra que ali está o último dinheiro que resta. Olha-a demoradamente, tentando decidir para que selva ir tentar a sorte. ESCURECIMENTO: agora, de rodoviária em rodoviária. Toca adiante! À medida que ele ganha experiência, consegue farejar uma fofoca de ouro só de pisar na rodoviária de uma cidade e encher as narinas com o vento enquanto toma um café no balcão da lanchonete olhando o aspecto dos indivíduos em volta: onde há ouro sendo desencantado por perto, há pessoas excitadas falando pelos cotovelos e querendo contar vantagem, demonstrando mais conhecimento, coragem e eficiência do que os outros em público. No Norte, chamam isso de garimpeiro ''bravo'', aquele que fala muito e sabe pouco. O garimpeiro ''manso'' sabe de tudo e não fala praticamente nada, só ri discretamente e olha para o chão. Acendo um cigarro. PATRÍCIA: -Cuidado para não dar corda demais nele, porque (PAUSA...) ele se transforma de verdade nos próprios personagens e some no mundo sem deixar rastro- -ARTAUD: --- Quem és, afinal? - perguntaram a um só tempo trezentas vozes enquanto vinte mil espadas cintilavam nas mãos dos fantasmas mais próximos. (...) Eu, Antonin Artaud, sou meu filho, meu pai, minha mãe, e eu mesmo. Eu represento totalmente a minha vida. RIMBAUD: --- Conheço ao menos a natureza? Conheço-me? — Não mais palavras. Sepultei todos os personagens em meu ventre e parti. Tambores, floresta, dança, dança, dança, dança! Não vejo a hora em que, os patrões de inumeráveis firmas estrangeiras de extração de ouro desembarcando, cairei no vácuo da praia poluída de braços abertos, implorando por um posto avançado dentro de um caixote de metal á 300 metros de profundidade no mar. ARTAUD: ---- O que queres, afinal(?)O que é, em nome dos céus, que estás tentando descobrir ?" -JACK: --- Não sei bem ao certo... Imagine um andarilho místico numa estrada entre duas montanhas, falando sozinho, suas palavras são um misto de poesia e aviso, ele é assim desde pequeno. Só uma imagem inicial clássica. Imagine agora um pirata de garimpo. Pense nas comunas de balsas piratas ilegais dos rios perdidos entre as escaldantes florestas tropicais do Brasil, como os bucaneiros, aquelas congregações misto de utopia e anarquia, gritando O BRASIL É NOSSO!, pense até mesmo nos hackers modernos, esses nômades piratas de dados a surfar na net oceano onde a noção de propriedade intelectual é uma miragem fadada ao desaparecimento, e pense num burilador de palavras especialmente inspirado a jorrar significados e imagens vertiginosamente num turbilhão borbulhante, caótico, recheado de mensagens mas igualmente lírico, num ritmo fluido que lembre o desregramento de todos os sentidos de Rimbaud ou o caleidoscópio de imagens subconscientes de James Joyce, ele se move por seus dados não de uma forma racional, mas como Salvador Dali teria formulado de maneira precisa: por um método crítico-paranóico, juntando dados aparentemente isolados, impensados, numa livre associação de camadas interrelacionadas em cujo ápice está esperando uma espécie de revelação humana da fonte da juventude eterna. De volta para a Babilônia-beach. MARIANA: -Como está o trampo na Universidade(?) RIMBAUD:- Os patrões do ouro desembarcaram. O canhão! É preciso submeter-se ao batismo, vestir-se, trabalhar. Não o tinha previsto! JACK: - Acho que a garota das Ciências Sociais que trabalha comigo na sala do diretor-de-departamento tá me dando mole(...) mas foi ela quem me caçou (rs) -MARIANA: - Não diga(!) Aposto que é um dragão(.) Vou comprar cigarros(.) -JACK: - Não é tão bonita quanto você(.) ----, precisão que dói: UM DRAGÃO! Li para a garota das Ciências Sociais um trecho de uma carta conjugal de Antonin Artaud numa tarde, durante o expediente: ''(...) tua alma é enferma e mal-formada como a minha(...) cada uma de suas cartas aumenta a incompreensão e a estreiteza de espírito das anteriores(...) todos seus rodeios e infinitas disputas não poderão impedir que você nunca entenda minha vida direito e siga me condenando por uma parte ínfima dela(...) sua imaginação te enlouquece(!) contigo qualquer discussão é impossível(!)'', ela ouviu com atenção e achou aflitivo e interessante. Considerou que eu era muito novo para ler esse tipo de coisa e sugeriu que eu lesse Kafka. Eu me defendi dizendo que já tinha lido O Processo e que para mim era difícil ver naquele livro de Kafka algo menos terrível que a revoltada carta conjugal de Artaud. Depois ela citou algumas estatísticas sobre comportamento de mulheres no casamento contemporâneo, e respondi á ela que eu era filho de dois sociólogos da universidade federal e que isso nunca tinha me impedido de acreditar mais nas letras de música pop do que em inúmeros textos acadêmicos sofisticados sobre "relações entre sexo, afeto e poder". (JACK: - Sou alguém que teme profundamente pela irrelevância dos estudos acadêmicos. A vida se tornou um teatro de clichês, logo as revistas femininas serão mais relevantes no debate sobre comportamento e afetos contemporâneos do que os estudos acadêmicos). Li para ela um novo trecho da carta de Artaud, alterando alguns trechos maliciosamente: ''tua alma é como a minha(...) essa membrana de dupla espessura, de múltiplos graus, de incontáveis fendas, essa membrana feita de vidro sensível, capaz de multiplicar-se indefinidamente, desmontar-se, de se recolher sobre si mesma com suas inumeráveis reverberações de fendas e começar um borbulhante formigamento de dados inteiramente novos a partir do nada(.)''. (JACK: - Talvez a condição de escrever sob o gosto de sangue e de saliva que tem a trincheira da vida real dê às revistas femininas mais consistência do que as elaborações sem corpo dos especialistas em afetos. Talvez um dos maiores medos humanos e que move o mundo desde sempre seja justamente o medo de perder a beleza e a juventude. Já que as ciências humanas mentem, a esperança é que as revistas femininas falem a verdade que não quer calar: ao final, temos mesmo é medo de sermos feios e mal-amados). Mariana telefonou para minha casa ontem á noite e conversou com meu pai, enquanto eu estava numa festa no apartamento da minha professora de natação. Tomei a direção errada: nem vale a pena falar com ela sobre isso. PROFESSORA DE NATAÇÃO: Fique quieto com as mãos, que aqui todo mundo me conhece. JACK:- Sabe onde eu dormi ontem á noite(?) ----, podemos rolar pelo declive do beco e parar exatamente embaixo de sua saia: MARIANA: -Se for na frente do colégio inteiro, pode até ser(!) ---, SORVETE: Alô, como vai(?) --- TELEFONE: -Vou comprar cigarros(.) - MARIANA: - Vamos nos encontrar de noite, na sua casa(.) Tudo bem(?) -, ela mordiscava os lábios do outro lado da linha. Olho o relógio. Lembro da minha professora de natação e sua exibição erótica no quarto, ninfomania conhecida de muitos alunos. Toca adiante! Como sugeriu Aldous Huxley: ''Cada pessoa, em cada momento é capaz de perceber tudo que está acontecendo em qualquer parte do universo. A função do cérebro e do sistema nervoso é a de nos proteger dessa massa inesgotável de informação''. O que se movia visivelmente dentro do invisível fluxo de consciência da ouvinte e do narrador? A reflexão no teto de uma lâmpada e cúpula, uma inconstante série de círculos concêntricos de variadas gradações de luz e sombra: uma catedral gótica em construção, sugerindo a invasão do universo inteiro por um sentimento metafísico noir desconhecido fora dos livros de Raimond Chandler. Em que direções estendiam-se a ouvinte e o narrador? Ouvinte, es-sudeste: narrador, nor-noroeste: no 53º paralelo de latitude, Norte, e no 6º meridiano de longitude, Oeste: em um ângulo de 45º em relação ao equador terrestre, provavelmente numa balsa de garimpo boiando sobre um rio tórrido. E em que estado de repouso ou movimento? Em repouso relativamente só a eles mesmos quando mergulhados subitamente no simbolismo poético dentro de cada personagem, mas produzindo um movimento simpático muito específico de convergência sentimental e física. Em movimento sendo ambos e cada um deles carregado para Oeste, para a frente e para trás respectivamente, pelo perpétuo movimento próprio da terra através de sempre mutáveis rotas de garimpo de sempre mutável espaço interior indeterminado dos personagens que copiam a vida real e vivem de pequenos pedaços dela fatiada em capítulos. Em que postura? A ouvinte: reclinada semilateralmente, para a esquerda, mão esquerda sob a cabeça, perna direita estendida em uma linha reta e descansando sobre a perna esquerda, fletida, na atitude de Géa-Tellus, completada, recumbente, plena de sementes e rasgos felinos de fisionomia. Narrador: reclinado lateralmente, para a esquerda, pernas cruzadas na poltrona, o dedo indicador e o polegar da mão direita descansando na ponta do nariz, na atitude de cumplicidade representada por um cigarro entre os dedos, dizendo para a ouvinte: ''A cada vez que se olha pela janela ou que se anda pela rua, a consciência descreve intermináveis círculos, vai de frente para trás e vice-versa, captando todo tipo de interferencia e sofrendo todo tipo de enriquecimento em fluxo, por isso uma das tarefas da arte é chegar o mais perto possível do mecanismo da percepção. Capiche?''. (PATRÍCIA: - O que você pretende dizer com isso(?) - JACK: - Que tal um filme em preto e branco: um velho homem de olhar mareado que do seu leito de morte observa as fluorescencias do hospital e sente que a vida lhe escapa pensando á todo momento: ''que PORRA será que vai acontecer AGORA?'''''que PORRA será que vai acontecer AGORA?'''''que PORRA será que vai acontecer AGORA?'''(...) - CINEMA. TOMADA INTERIOR. Na tela, o filme está sendo projetado. PATRÍCIA: -Sabia que ELE escreve (?) -MARIANA: -Nas horas livres, quando está com a corda dada...-, alguns segundos de embaraço mútuo : PATRÍCIA: -Cuidado para não dar corda demais nele, porque (PAUSA...) -JACK (apreensivo, farto): - que PORRA será que ela vai DIZER AGORA?(...) Garçom, a conta por favor(...) JACK, tomando o volante, fecha a porta e liga o carro: -Vamos embora dessa cidade, JÁ! - MARIANA: - Não tem rádio no carro(?) JACK: - Somos namorados, por acaso(?) - MARIANA: - Tá vendo(!) ei, vamos pra casa logo que vai começar á chover! ). ESCURECIMENTO. CRÉDITOS. FIM.


(continua)
KALKI-MAITREYA

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