sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Finnegans Wake, o romance-rio

James Joyce...
 
Webstats4U - Free web site statistics
 
 
Quem vem do Ulisses ao Finnegans Wake passa da narrativa em vigília à narrativa ao despertar, relato de um sonho que envolve o universo. O romance não registra a experiência onírica de uma das personagens. Finnegans Wake desdobra o mapa de uma mente ampla como o universo. O sonhador não sonha para alguém sobre algo num código conhecido. Acontecido fora da interlocução, o sonho quebra as cadeias da subordinação.
(...)
Falar em palimpsesto é adequado. Tenha-se, entretanto, o cuidado de não apagar nenhuma das escritas sobrepostas. O palintexto preserva textos. Tome-se um quadro cubista. Perspectivas, épocas, espaços, caracteres, embora distantes, distribuem-se no mesmo plano. O texto wakiano é assim. Nem sobre enredo nem sobre processos verbais se profira sentença de experimentalismo gratuito. Joyce avança com expressividade reinventada. Invenções só falam a receptores inventivos.
A investigação comanda a elaboração dos capítulos. Em vez de responder a perguntas, o narrador compromete o leitor na perquirição de inquietações várias, complexas, indefinidas. O romance recebeu o nome de Finnegans Wake só em 1938, ao nascer. No período de gestação Joyce o designava de Work in Progress, "Obra em Andamento", caráter que a obra nunca perdeu.
(...)
Por flores e por floras, por faunos e por faunas, por vidas e por vias, flui Finnegans Wake, o romance e o rio, o romance-rio. E fluem recordações, estilhaçadas, entrelaçadas. Como os átomos epicúreos, os fragmentos joycianos caem em efêmeras e progressivas combinações.
Finn MacCool, gigante mítico, capitão dos guerreiros irlandeses, os valentes fenianos, eleva-se entre as recordações antigas, instigado pelo nacionalismo irlandês, e arrasta consigo o pedreiro Tim Finnegan, o da canção popular, que, embriagado, caiu da escada, feriu a cabeça e morreu. A queda do pedreiro entra no rol de outras: a de Lúcifer, a de Adão, a de Roma, a de Humpty Dumpty, a de Charles Stewart Parnell, a do rei Marc, a de Tristão, a do Noé embriagado, a de Ricardo III, a da maçã de Newton, a da chuva, a queda diária de todos os homens sem excluir o colapso da bolsa de Wall Street. Quedas e restaurações movem o universo.
Na terra da magia, o uísque é poção poderosa. Um amigo lembra-se, entre fumo e círios, de administrá-lo a Finnegan. A imobilidade cadavérica não freia a ação da bebida. O pranteado se levanta, e o velório culmina em festa. Líquido, não importa a natureza, regenera. À semelhança de Thor, de Prometeu, de Osíris, de Cristo, de Buda..., no ressurreto borbulha a vida. Persuadem-no a voltar ao leito da morte para que outros vivam em seu lugar.
Ouvem-se em Finnegans Wake sonoridades do idioma que uniu o Ocidente, o latim do império romano: finis (fim) aposto a again para anunciar a circularidade viconiana. O componente latino induz os irmãos Campos à tradução Finnicius Revém. Ao passar pelo francês (rêve - sonho), o título traduzido sustenta a substância onírica do romance. O tradutor romanceia na esteira do original. Oportuno é recordar, na composição do título, a expressão latina fines fluviorum, as desembocaduras dos rios. Podemos ignorar fin (fim), substantivo francês que rima com revém, vínculo sonoro de princípio e conclusão?
Nada impede que se veja em Finnegans o s de posse, em outros tempos escrito sem o apóstrofo. Assim, o título nos encaminha ao velório (Wake) do infausto operário. Se retivermos , contudo, o plural, assinalado por s, alcançamos o despertar dos Finnegans. Quem são eles? Todos os homens? Por que não? Homens Concorrem. Ei-los. (Here Comes Everybody), HCE, o Homem a Caminho Está... Morrer e renascer é o destino de todos. Os que morrem renascem em filhos, em feitos, em livros, em monumentos, em casas, em árvores... De muitas formas se regenera a mesma energia vital. Finn MacCool revém em Tim Finnegan, assim como Odisseu refloresce em Bloom (Flor). Outros sentidos haverá. Repetidas leituras não esgotam a reserva das criações joycianas.
Sobreposições afetam tanto o título quanto a variedade das narrativas. Comecemos, por conveniência, pela mais banal, a de um certo Porter, já na metade da vida, de raízes escandinavas, taberneiro e unido a Anna, de ascendência russa, uma ex-caixeira de pouco estudo. O casal vive num arrabalde de Dublin, Chapelizod, nas proximidades do Phoenix Park, às margens do rio Liffey. Porter, aventureiro, faliu e recomeçou. Ele, episcopal e ela, presbiteriana, ambos isolam-se da maioria católica. O isolamento lembra Bloom, de sangue judeu. Porter e Ana têm uma filha, Isabel, e os gêmeos Kevin ( chamado assim em homenagem ao santo ascético, S. Kevin) e Jerry. O primeiro é prático; as artes, ao contrário, seduzem o segundo. Dos afazeres domésticos cuida Kate (Kathleenna Hoolian, Old Mother Ireland) viúva de Finn MacCool; ela guarda lembranças dos tempos em que seu marido era senhor da Irlanda. Porter mantém ainda um empregado, Joe. Mencionam-se doze fregueses habituais e quatro anciãos. Entram na trama as amigas de Isolda, vinte e oito jovens que moram na vizinhança.
Porter bebeu mais do que a prudência mandava, aliás, atravessou o dia regado a uísque. Isso sucedeu num sábado de muito calor. Cantou-se. Visões oníricas povoadas de pesadelos reelaboram os excessos diurnos.
Já sem atração mútua, marido e mulher ainda se recolhem ao mesmo leito. Os filhos são agora a paixão dos velhos. Anna se afeiçoa a Jerry, Porter prefere Kevin. Sempre em conflito, Jerry e Kevin evocam Caim e Abel, inimigos até ao fratricídio, ou Esaú e Jacó, candidatos à primogenitura. Uma mulher mais jovem perturba os sentimentos do taberneiro, a própria filha. Interiormente incestuoso, um pesadelo o degrada a símio, a inseto. É assim que aparece Humphrey Chimpden Earwicker. O nome Humphrey formou-se de hump, giba; Chimpden vem de chimpanzee (chimpanzé), Earwicker está associado a um inseto que pela crendice penetra no ouvido, earwig (lacrainha). Lacrainha é perce-oreille em francês, donde o onomástico Persse O’Reilly, autor presumido da canção que incriminou Earwicker. O próprio Earwicker é autor dos versos que o levaram às grades? A circularidade viconiana gira no geral e nos detalhes. Ondas de sonho borram esta como outras versões.
A vida de Porter submerge na de Humphrey Chimpden Earwicker, de sangue escandinavo, cuja taberna se chama The Bristol, conhecida também por The Mullingar. Idade? Já avança nos cinqüenta. Caraterísticas pessoais: louro, bigode espesso, gordo, gago.
Earwicker teria se desnudado diante de duas garotas no Phoenix Park, surpreendidas a urinar. Uma delas, a sua própria filha. O desacato do taberneiro foi testemunhado por três soldados bêbados, inseguros do que se passou. A ansiedade de Earwicker em justificar-se dissemina lapsos em sua alocução. A ênfase com que se defende o incrimina. Boateiros acrescentam que ele sofre de doença vil (a vile disease). Venérea? Vozes anônimas o maculam de corpo e alma.
A culpa de Earwicker evoca o pecado original. Pesa sobre ele o lapso de Adão, refletido na perturbação de Hamlet, na inquietação de Stephen Dedalus e na intranqüilidade moderna. Lembra o daimonion de Sócrates. Como os contrários em Joyce não se excluem, Earwicker, associado ao substantivo alemão Erwecker (o que desperta), traz em si mesmo os germens da regeneração. Temos assim um transgressor cristificado. A redenção, consumada no cristianismo além da história, Joyce a situa na própria natureza, purgatório que atua em todos os que por ela passam. Embora Earwicker seja cidadão de Dublin, é tido como intruso, descendente de um tronco germânico invasor da Irlanda.
As personagens confundem-se com fenômenos da natureza: HCE - Dublin, ALP - Liffey, Shem - árvore, Shaun - pedra, Isolda, que ainda não se tornou rio como a mãe, nuvem. As relações são dramáticas: o pai deseja a filha e outras jovens, os filhos hostilizam o pai, a mãe é infiel, os fregueses espalham boatos.
A sigla HCE, originária das iniciais encontradas em manuscritos, aparece freqüentemente repetida em nomes próprios e comuns: Howth Castle and Environs; Here Comes Everybody; Haveth Children Everywhere; How charmingly exquisite; Humme the Cheapner, Esc; hod, cement, and edifices; Haroun Childeric Eggenberth... A personalidade de HCE se forma e se dilui. Aportou na baía de Dublin, vagueou pelo mundo, deixando famílias em toda parte: Tróia, os godos, os francos, os nórdicos, Bretanha, Eire. Manifesta-se em Thor, São Patrício, Cromwell, Wellington... HCE representa a unidade na pluralidade. Brilha no homem e em todas as aparições masculinas. Substitui, provavelmente, o tetragrama sagrado JHVH (Javé, em uma das vocalizações possíveis, nome com que no Antigo Testamento se disigna Deus). Não é aparição messiânica, é a força que brota da terra.
A mulher de HCE, ALP (Anna Livia Plurabelle), concorre em abrangência com seu marido. É detectável em Eva, Ísis, Isolda, numa nuvem, num riacho, em todas as aparições femininas. Fonte do amor cósmico, manifesta-se em Ísis a recolher o corpo desconjuntado de Osíris, marido-irmão . Anna, rio mutável, mantém o fluir heraclitiano. Todos os conflitos se originam e confluem em HCE e ALP. ALP mantém unidos seus filhos-gêmeos em guerra: Shem, forma irlandesa abreviada de Seamus - James, e Shaun, variante irlandesa de John. A polaridade Shem-Shaun, masculina, subordina-se à polaridade heterossexual dos pais.
Shem, introvertido, repelido, é pesquisador, descobridor de coisas proibidas e detentor de poderes excepcionais. Convenções não o refreiam. Incita e perdoa. Chega a favorecer bacanais de amor coletivo. Homens prudentes temem-no, suprimem palavras suas, denunciam e deturpam ensinamentos seus. Escarnecido, boêmio, criminoso, Shem esconde-se nas sombras. Shem the Penman (Shem, o Escriba) é visionário, poeta, o próprio Joyce incompreendido, rejeitado. Shem escreve no seu próprio corpo, pergaminho que Shaun não consegue decifrar.
Shaun é o pastor da humanidade, próspero, aplaudido, vitorioso. Suas obras não sofrem restrições. Jamais desce a profundidades proibidas, nem o atraem verdades escondidas a não ser que lhe sejam úteis. Basta-lhe a vida dos sentidos. Shaun the Postman (Shaun, o Carteiro) passa aos homens a mensagem descoberta e redigida por Shem. Acompanha-o o apreço que afaga os portadores de boas novas. Com Shaun, a palavra, deturpada, pragmática, se faz carne. No processo das sobreposições joycianas, Shaun é Kevin e Shem é Jerry. O casal com seus três filhos formam um conjunto de actantes que atuam em inúmeros atores.
Esta é só uma tentativa de compreender o complexo. Real é o sonho; indefinidos desfilam os sonhadores. Além de Porter, apontaram-se outros sonhadores: Earwicker, Jerry, McCool, o próprio Joyce. Se optamos por uma visão caleidoscópica, sonharam estes e muitos outros. Como saber quem sonhou o quê, se todos sonham? Não se atribua a Porter consistência maior do que a que se dilui em outros. Os movimentos do caleidoscópio arrastam todos na mesma sarabanda. Definem-se os sonhos, vagos permanecem os contornos dos sonhadores.
Finnegans Wake incorpora, entre outras, a lenda de Tristão e Isolda. Reinava na Cornualha Marc. Atacado por inimigos, Rivalen, rei de Loénois, o socorreu. Marc, agradecido, deu-lhe Blanchefleur, sua irmã, em casamento. Rivalen, chamado à luta, morreu em campanha, deixando viúva a esposa grávida. Inconsolável, Blanchefleur morreu pouco depois de dar à luz. Filho da tristeza, a mãe chamou o filho Tristão. O menino foi instruído em canto, música, caça, armas e equitação. Raptado por mercadores da Noruega, conseguiu escapar, longe de sua terra. Trazido por caçadores ao rei Marc, disse cautelosamente que procedia da casa de um mercador. Marc afeiçoou-se ao belo e inteligente rapaz. Atacado pelo rei da Irlanda, temia-se Morholt, um gigante, súdito do agressor. Tristão desafiou o portento e o matou, depois de ser ferido por arma envenenada. Enfermo, Tristão voltou à Irlanda para ser tratado por Isolda, entendida em drogas, que, entretanto, odiava o herói pelos danos causados à Irlanda. Apresentando-se com identidade falsa, ludibriou Isolda e retornou curado. Para evitar que o rei constituísse o valente guerreiro como sucessor, os barões levaram-no a pensar em casamento a fim de gerar herdeiro. Constrangido, Marc elegeu para esposa a dona dum fio de cabelo louro que brilhava como um raio de sol, deixado no palácio por duas andorinhas. Tristão se dispôs a auxiliar o tio em seus projetos matrimoniais. Reconhecendo o cabelo como de Isolda, o sobrinho de Marc retornou à Irlanda, assumindo a identidade de mercador inglês. Enfrentou vitoriosamente um dragão que flagelava a região. Isolda foi o prêmio do triunfo. Determinado, porém, a cumprir com a palavra empenhada, declarou que a princesa seria esposa do rei Marc. A mãe de Isolda, solícita, preparou uma poção mágica e a confiou à dama de companhia da filha para ser administrada aos noivos na noite de núpcias. Inadvertidamente, castigados pelo calor, Tristão e Isolda servem-se da bebida antes de chagarem ao destino. Vencido por força maior que suas nobres inclinações, Tristão trai o rei e lhe entrega a noiva já violada, deixando-o na ignorância. As núpcias realizaram-se no décimo oitavo dia. Atormentado pelo seu infausto amor, o atribulado guerreiro enreda-se numa seqüência infindável de traições, dissimulações, aventuras e mortes. Feridos muitos combates na Frísia, na Gavóia, na Alemanha e na Espanha, Tristão vai à Bretanha e combate com êxito os inimigos do duque Hoel. Este, em reconhecimento de seus feitos, dá-lhe em casamento a irmã, a Isolda das Mãos Brancas. Como Tristão não conseguia varrer da memória a outra, o casamento não se consumou. Fingindo-se louco, volta ao palácio de sua inesquecível amada. A irlandesa exprime o desejo de morrer nos braços do amado e partir para o país donde ninguém volta, a terra de cânticos sem fim.
Às desventuras de Tristão, Joyce aproxima a aflitiva vida amorosa de Jonathan Swift (1667-1745), nascido e formado em Dublin, ironista a quem as Viagens de Gulliver deram notoriedade. Jonathan, já nos seus maduros vinte e dois anos, conheceu, quando secretário de William Temple, numa localidade não longe de Londres, Esther Johnson, uma menina de oito anos. Swift homenageou-a em Journal to Stella, lembrando-a com este nome literário. Esther Johnson seguiu Swift até Dublin, cidade a que o escritor foi levado por deveres profissionais, chegando a ser deão da igreja St. Patrick. Na Irlanda conheceu outra Esther, filha de Vanhomrigh, comerciante de origem holandesa, a quem dedicou o livro Cadenus [Decanus] and Vanessa. Indeciso entre uma e outra, apressou, ao que parece, a morte de ambas.
O romance alude, incorpora, modifica e parodia número imenso de obras, núcleos seminais de nova floração. Não há página em Finnegans Wake sem evocações literárias - as bíblicas superam todas - como se Joyce quisesse abarcar tudo o que se escreveu, fazendo de todos os textos um livro só.
Apontou-se Gimbattista Vico, aludido já na segunda linha de Finnegans Wake, como uma das colunas do romance. Para Vico, quatro são as Idades: a dos deuses, a dos heróis, a dos homens e o Ricorso, período confuso, fim de um ciclo e princípio de outro. Saídos da barbárie, os homens entram na idade dos deuses, orientados - como pensavam - por governantes celestes, cuja vontade se exprime em oráculos e auspícios. A passagem da barbárie para a idade dos deuses é acionada por fenômenos assustadores: dilúvio ou fogos caídos do céu. Os homens vivem na mira de seres disformes que não habitam em cidades, os gigantes. Intimidados, os homens dobram-se ante governantes celestes, controlados os impulsos destrutivos. Na idade dos heróis, a segunda, dominavam as repúblicas aristocráticas. Essa idade é inaugurada por combatentes da estatura de Hércules e dos guerreiros homéricos que ampliam o espaço da civilização. Na terceira idade, a dos homens, surgem as repúblicas populares e as monarquias orientadas por leis humanas. Platão, autor da República, atua na idade dos homens. Vem a débâcle: paixões desenfreadas (luxo, indolência, avareza, inveja, soberba). Entramos no ricorso. A providência socorre os degenerados. Confundidos e aturdidos, esvaem-se em vícios: abastança, ócio, prazer, luxo. Reduzidos ao necessário, os homens recuperam a simplicidade primordial: religiosidade, veracidade, confiabilidade. A história se refaz como a mítica Fênix.
A cada uma das idades corresponde uma forma de linguagem. Na idade dos deuses, entre homens recentemente erguidos à condição humana, surge a linguagem hieroglífica, adequada a mudos - a comunicação faz-se por sinais - mantida pelos egípcios antigos e pelos chineses. Na idade dos heróis, surgem os símbolos. Fala-se agora por comparações, imagens, metáforas, descrições. Na idade dos homens aparece a linguagem vulgar. Convenções regem os meios de expressão. Leis limitam o poder dos nobres.
Os primeiros povos foram poetas. De raciocínio débil, cultivavam fábulas, fantasias, paixões fortes, formuladas em versos heróicos ou jâmbicos. A prosa desenvolve-se na idade dos homens. Atento ao método filológico de Vico, Joyce ausculta nas palavras marcas de passadas gerações, sentidos perdidos, verdades escondidas na etimologia. Subordinar, entretanto, Joyce a Vico ou a quem quer que seja não honra o romancista. Vico auxiliou Joyce a se libertar de concepção retilínea, apocalíptica, punitiva, positivista da história, motivo de muitos tormentos tanto para Dedalus na adolescência como se lê em Retrato do artista quando jovem quanto para Dedalus já adulto como o mostram os dois primeiros capítulos de Ulisses. A circularidade viconiana lhe permitiu ver a vida renascer em cada morte sem subordiná-la, contudo, a nenhum padrão. A tentativa de enquadrar o romance no todo ou em partes na concepção viconiana não levou a resultado satisfatório. A imaginação livre de peias é a lei do romance. Mas Vico interessa ao romancista não só como pensador. Reconhece que, mais do que Freud ou Jung, Vico o ajudou a imaginar.
Para reconstruir o mundo do homem primitivo, Joyce recorreu ao antropólogo Lévi-Bruhl, empenhado em opor pensamento lógico e pensamento pré-lógico. Este não se orientaria, segundo Lévi-Bruhl, pelas categorias elaboradas por Descartes e Kant. O primitivo, pensa o etnólogo, incapaz de distinguir o sensível e o não-sensível, convive com espíritos, com forças impalpáveis. Desatento a causas imediatas, prefere ver nos fenômenos a atuação de forças misteriosas. Para os povos primitivos, transgredir um princípio de origem oculta (tabu) provoca desgraça. As categorias de tempo e de espaço não funcionam como as nossas, objetivamente segmentadas. O primitivo distribui o tempo em períodos fastos e nefastos. Afetivamente ligado ao seu grupo, importa-lhe saber onde as coisas aconteceram. Sem limites precisos entre a vida e a morte, não indaga por motivos naturais para a interrupção das funções vitais. Os cuidados reservados ao morto podem começar antes que cessem os batimentos cardíacos. O espírito continua ligado ao corpo, mesmo depois que os músculos enrijeceram. Os espíritos dos que já não se vêem animam rios, pedras, mares, montanhas e manufaturas. Os ancestrais, sensíveis aos atos de sua gente, participam das preocupações cotidianas. Em lugar de classificações discursivas, elos sentimentais unem o grupo ao todo. Para o indivíduo que se dissolve no grupo, noção de sujeito não há.
A distinção entre pensamento lógico e pré-lógico, criticada em Lévi-Bruhl, some em Joyce. O que foi um dia é. As idades viconianos impregnam a experiência cotidiana. Trazemos o primitivo em nós. Vivemos ora na idade dos deuses, ora na idade dos homens. Na montagem joyciana as quatro idades podem estar concentradas numa mesma palavra. A distinção entre infância e maturidade, vida e morte, ontem e hoje existem para serem transgredidas.
(...)
A leitura dos sonhos abre caminho a processos narrativos que incorporam várias línguas, conjugam lugares, aproximam culturas, congregam épocas, misturam expressões vulgares com relevantes encadeamentos teóricos. Joyce realiza o que os textos de Freud sugerem. Joyce explora violate – lembrançca de Freud? – já na primeira página. Finnegans Wake exige interpretação. O romance faz do leitor analista.
A experiência onírica parte o eu em dois. Um é o eu que restaura o sonho, outro é o eu que origina as imagens estranhas, aflitivas. Nos tempos míticos, dava-se ao sonho personalidade própria. O sonho estava a serviço dos deuses, era um outro, portador do bem e do mal. No sonho guerreiam eus - sonheus. O eu consciente alista-se na milícia dos construtores de individualidades, o eu do sonho divide-se em muitos: guerreiros, gigantes, jovens e velhos, pais e filhos, patrões e empregados, escritores e carteiros, reis e rainhas. O sonho abre a porta a todos - Here Comes Everybody – o Homem a Caminho Está. Do sonho nasce o romance.
Assim como Ulisses, Finnegans Wake impõe renovados hábitos de leitura. A linear não basta. Em cada parágrafo, em cada frase, em cada palavra, tocamos estratos sobrepostos, convite a trabalho de arqueólogo. Verticalidade e horizontalidade se entrecruzam espacial e cronologicamente. Surgem arqueoleitores. Em minúcias do presente ecoam as origens, sucedem-se horizontes culturais variados, encadeados. Andamos por muitos lugares sem sair do mesmo lugar, o já sabido acolhe o novo, faces anoitecidas guardam traços do amanhecer. Até em fatos insignificantes se adensam compactas experiências pessoais. Avolumam-se fábulas, diálogos, anedotas, cantos, rumores; versões uma da outra, e todas, versões de conflitos insistentes.
O sonho navega por águas que a vigilância comprometida com o socialmente aceito deliberadamente ignora. Desejos culposos emergem envolvidos em papel vistoso, fitas e cartão de felicitações. A beleza sonora, rítmica e verbal de Finnegans Wake esconde violência, sentimentos proibidos, indecências. Parte da obscuridade dirigida a leitores atilados tem esta origem. Para se fazer entendido, o texto oferece muitas versões do mesmo código cifrado. Os nomes e os caracteres emergem lentamente, às apalpadelas, aos pedaços.
Falar em palimpsesto é adequado. Tenha-se, entretanto, o cuidado de não apagar nenhuma das escritas sobrepostas. O palintexto preserva textos. Tome-se um quadro cubista. Perspectivas, épocas, espaços, caracteres, embora distantes, distribuem-se no mesmo plano. O texto wakiano é assim. Nem sobre enredo nem sobre processos verbais se profira sentença de experimentalismo gratuito. Joyce avança com expressividade reinventada. Invenções só falam a receptores inventivos.
A investigação comanda a elaboração dos capítulos. Em vez de responder a perguntas, o narrador compromete o leitor na perquirição de inquietações várias, complexas, indefinidas. O romance recebeu o nome de Finnegans Wake só em 1938, ao nascer. No período de gestação Joyce o designava de Work in Progress, "Obra em Andamento", caráter que a obra nunca perdeu.
A paródia e o trocadilho são os instrumentos da obra. Afetam palavras e frases, entorpecidas pela embriaguez e o sono. Núcleos narrativos vivem, transfiguram-se, acasalam-se, geram, rompem vínculos para entrar em combinações imprevistas, sementeira de linhagens insuspeitas. O substrato verbal conquista autonomia longe dos referentes. Até nomes arrancados de personalidades históricas entram na forja da invenção.
Seja contestável o percurso balizado por Campell-Robinson. Contribuiu, entretanto, para desfazer a impressão de caos. Traçaram-se outros. Joyce deixou indefinidos etapas e capítulos, certo de que nasceriam da experiência de leitura. A contínua sobreposição de acontecimentos e de espaços torna precárias todas as tentativas de organização. Avançamos sem que sejamos autorizados a esquecer as etapas já percorridas. Vencida a vertigem ante freqüentes abismos, somos estimulados a criar roteiros próprios. Caleidoscópico é o exercício da leitura. Lemos Joyce e uma plêiade de leitores de Joyce. Joyce exigia que a leitura de Finnegans Wake tomasse, ao menos, tanto tempo quanto a elaboração. O congraçamento de leitores nos poupa trabalho. Os leitores estamos empenhados na elaboração de um livro maior que o Finnegans Wake, um que abranja outros tempos, outras línguas, outras culturas, tarefa superior à duração de uma vida.
Quem traduz Joyce não se pode abster da obrigação de criar similares aos da língua de origem. Distanciamo-nos com freqüência da literalidade para captar efeitos que ultrapassam significados. Joyce não é nada austero. Tivemos o cuidado de não destruir a jocosidade (para não dizer joycosidade). Como não dispomos em português do aparato crítico que se formou ao longo das décadas em torno do texto original, procuramos manter-nos no âmbito da língua portuguesa e de línguas muito próximas ao português ao ensaiar jogo verbal joyciano . Não se espere, nem assim, inteligibilidade completa do texto. Num discurso deliberadamente onírico, luminosidade intensa não se atingirá nunca. Poderá ser recomendável, numa primeira leitura, passar pelo texto sem a preocupação de explorar o que ele esconde. Quem se confia a jogos sonoros, ao ludismo de imagens e idéias, pode ler Joyce com prazer. O retorno assíduo ao texto revelará a gradativa decifração de obscuridades. O texto explica-se a si mesmo. A reflexão nasce aos poucos. Para os interessados, oferecemos análises breves que não pretendem mais do que suscitar o debate. Descobrir Joyce será sempre aventura de cada um.
Esta é a introdução do romance FINNEGANS WAKE /FINNICIUS REVÉM, de James Joyce, traduzido por Donaldo Schüler. São, Paulo, Ateliê (atelie@atelie.com.br /Telefone:0xx51.7922-9666). Os capítulos publicados (01-12) estão distribuídos em quatro volumes. A edição bilíngüe vem acompanhada de notas. O último volume sairá em agosto de 2003.
 


Nenhum comentário:

Postar um comentário