domingo, 13 de outubro de 2013

O DUPLO E O ALIADO

 

 

Ana Maria Ramo y Affonso
 
Don Juan é um mestre com uma tarefa: .acomodar. o antropólogo .dentro da cognição dos xamãs do México antigo. (Castaneda EDJ: 33), dentro de um .sistema de taxinomia., de interpretação de dados sensoriais e catalogação de respostas (EDJ: 35): sistema de invenção de realidades, de constituição de compromissos e membrecias, de modos de percepção ou agenciamentos. Modos que podem variar; .fluir interminável de interpretações perceptuais. (Castaneda VI: 09) que pode ser interrompido e que aceita outros compromissos (Castaneda EDJ: 35). O ponto de vista é uma passagem, e don Juan ajuda Castaneda a escolher percorrer o caminho com coração, a preparar o Tonal da variação.



O Tonal da passagem é um guardião magnânimo. Varrendo a ilha, o guerreiro convence o seu Tonal a baixar a guarda, pois uma ilha organizada é resguardo seguro para a vida, a individuação. O guerreiro percorre um caminho com coração, onde a .vontade., a ação do desejo, e a impecável atualização do mito, formam o modo da passagem individuada.



Agenciamentos variáveis, em lugar de atos duráveis. Desvelamento do segredo, desmascaramento do ator: .o segredo de tudo está na atenção. (Castaneda RP:202). Aprender um novo .sistema de interpretação sensível. como um .processo de resocialização. é o primeiro passo para mostrar ao Tonal a possibilidade de variação (Castaneda RA: 17). Don Juan descreve a Castaneda alguns .fatos energéticos. da cognição dos xamãs do México antigo: um Cosmos com multiplicidade de matizes, de versos que são .expressões da energia., composto por .forças gêmeas. de .energia animada. pela vibração, que é a condição da consciência, da transformação da energia do universo em dados sensoriais; e .energia inanimada. (Castaneda EDJ: 34). A consciência organiza estabelecendo a .coesão e os limites. da energia animada e fabrica organismos:



os seres orgânicos que habitam a Terra (EDJ: 34). Porém, a vibração da energia conhece outras velocidades ou modos de consciência, outras .forças aglutinantes. diferentes do organismo (EDJ: 34) (outros corpos sem órgãos, diria Deleuze). São os seres inorgânicos que povoam o mundo, livres das .ataduras de um organismo. (EDJ: 34), e com os quais o guerreiro joga o jogo da variação. E para sobreviver a este jogo, o Tonal do guerreiro deve aprender a flexibilizar o poder de aglutinar, de individuar, modulando a perspectiva.



.Somos perceptores., diz o mestre, seres luminosos perceptores; .não temos solidez. (Castaneda RP: 132), nem limites (muito menos limites duráveis, estáticos). .El mundo de los objetos y la solidez es una manera de hacer nuestro paso por la tierra más conveniente. (RP: 132), uma descrição que apazigua os ânimos. A razão se contenta e compromete a totalidade variável com um corpo organizado incapaz de ir além das máscaras que delimitam seus gestos. Atuar, fazer mundo, ter uma visão de mundo, uma ilha, uma individuação, um Tonal feito com uma percepção treinada para enfocar certos elementos e constituir com eles a visão do mundo é o único modo que o homem comum conhece. A tarefa do mestre não é arrasar com essa visão, mas nomeá-la, .limpar e reordenar a ilha. e .reagrupar todos os elementos do lado da razão. (RP: 331).




.El orden en nuestra percepción es el dominio exclusivo del tonal; sólo

allí pueden nuestras acciones tener continuidad; sólo allí son como

escaleras en las que uno puede contar los peldaños. No hay nada por el

estilo en el nagual. Por ello, la visión del tonal es una herramienta, y

como tal no es sólo la mejor herramienta, sino la única que tenemos.

(Castaneda RP: 354).



A ferramenta pode ser usada de outros modos. Em lugar de atuar, agir, não-fazer. Não fazendo, o homem de conhecimento pode inventar outro mundo, que habitará com outro corpo, que passará com outra agência. (Castaneda RP: 133).



Desmascarar o ator, devolver-lhe sua visão, liberá-lo do compromisso com um modo de percepção que torna os seus olhos .intransigentes. (RP: 230): .abrir as asas da percepção. . intrincada tarefa que só com a paciência de um guerreiro é possível atingir. É preciso convencer o Tonal de que .há outros mundos que podem passar frente às mesmas janelas. (RP: 230). Percebendo outros mundos, percebendo a percepção, o modo de passar, os xamãs do México antigo aprendem a abrir a bolha, descobrem o segredo do jogo de espelhos:




.Esa burbuja es nuestra percepción. Vivimos dentro de esa burbuja toda

la vida. Y lo que presenciamos en sus paredes redondas es nuestro propio

reflejo. La cosa reflejada es nuestra visión del mundo. -dijo-. .Esa visión

es primero una descripción, que se nos da desde el instante en que

nacemos hasta que toda nuestra atención queda atrapada en ella y la

descripción se convierte en visión. La tarea del maestro consiste en

reacomodar la visión, a fin de preparar al ser luminoso para el momento

en que el benefactor abre la burbuja desde afuera.. (Castaneda RP: 329-

330).



Abrir a bolha, abrir as .assas da percepção. permite ao .ser luminoso. perceber a .totalidade de si mesmo. (Castaneda RP: 331), ir até .os mais recônditos confins do Nagual ou aos mundos inconcebíveis do Tonal. (RP: 362). O Tonal é só uma metade da bolha da percepção; é o centro máximo da razão. O Nagual é a outra metade, o centro máximo da .vontade.. Tal é a ordem que deve prevalecer para os bruxos, que sabem que .a razão é só um centro. (RP: 333) e não lhe concedem a importância que tem para os homens sábios. Para os segundos, somos sujeitos ancorados em um sistema de significação. Para os primeiros, somos seres luminosos, herdeiros da magia, guerreiros que não sabem de si. E para Deleuze e Guattari, caçadores de devires-feiticeiro, ovos energéticos plenos, Corpos sem órgãos passando em um plano de imanência. Voltemos, brevemente, à filosofia.




Há um Tonal da dobra fazendo plano, .superfície de estratificação., de organização, de significação, de subjetivação (Deleuze & Guattari 1996: 22); .plano das formas e das substâncias. (Deleuze & Guattari 1997: 48). O Tonal-Máquina dos tempos modernos instaurando intervalos e oposições, deleitado com seu jogo de espelhos. Modo do tempo de nosso Tonal Coletivo. Cronos em ação, fixando coisas e pessoas (Deleuze & Guattari 1997: 49), quebrando devires ao dobrar o homem sobre o homem (Deleuze & Guattari 1997: 45). O Plano define tempos e vibrações e impõe durações. Duração da matéria sólida . objeto durável, espelho dos sujeitos. O Plano de organização escondido que os filósofos sábios não param de fabricar nos transporta por entre os objetos, por entre os limites cartografados do cenário. Enfocamos no exterior a nossa agência, e prendemos inevitavelmente no interior o desejo: jogo de espelhos, de conter desejo imóvel. As máquinas produzem fantasmas, desejos sem agência, agências sem desejos . cortes,

intervalos; pelo menos as máquinas de produzir tempos duráveis.



Mas há devires povoando os mitos, povoando a música, o mundo e o pensamento. .Máquinas de suprimir o tempo. (Lévi-Strauss 2004: 35), .música dos micro-intervalos. (Deleuze & Guattari 1997: 61). O micro aproxima, facilita a passagem, e ainda mais o infinitesimal, como diria Tarde (2007b); ou pelo menos torna mais fácil ao pensamento percebê-la. Há um outro tempo, uma .linha flutuante que só conhece velocidades.: Aion, o tempo do devir: a cada modo de temporalidade correspondendo um modo de individuação (Deleuze & Guattari 1997: 49).



A fluidez conceitual nos aproxima do devir-imperceptível. Dentre outros, Deleuze também leu Castaneda, ou seja, escutou don Juan. Segundo o primeiro, Castaneda descreve uma longa experimentação dos afetos, dos desejos, dos agenciamentos: .devir do devir. (Deleuze & Guattari 1996: 23-24). Deleuze experimenta a flexibilização conceitual. Imaginar uma experiência: experimentar uma imaginação, outra cognição.
 
 


Promovamos o encontro no texto de possíveis conceituais, modos de passagem. Modos e operadores: um significante flutuante, uma casa-vazia, um ser-menos. Pluriversos relacionais das mônadas... Devires na zona de vizinhança: .uma noção ao mesmo tempo topológica e quântica, que marca a pertença a uma mesma molécula, independentemente dos sujeitos considerados e das formas determinadas. (Deleuze & Guattari 1997: 64). A .zona de vizinhança. é um movimento particular, um movimento de partícula (Deleuze & Guattari 1997: 64). Uma vibração, uma passagem, um modo de agenciamento, um devir molecular. Um devir é uma multiplicidade de dimensões (Deleuze & Guattari1997: 33), um pluriverso: encontro. E o Eu? O Eu é um .limiar., uma porta, .devir entre duas multiplicidades. (Deleuze & Guattari 1997: 33), variação. Só um Tonal suficientemente fluido é capaz de liberar o devir da sociedade que o caçou e o reduziu (Deleuze & Guattari 1997: 31). Saímos do jogo dos espelhos e entramos no .jogo de hecceidades., o .entre-dois., a passagem (Deleuze & Guattari 1997: 38). .Tudo aí é relação de movimento e de repouso entre moléculas ou partículas, poder de afetar e ser afetado. (Deleuze & Guattari 1997: 47). O afeto de Deleuze, a potência que subleva o Eu (Deleuze & Guattari 1997: 21), nos lembra o poder pessoal de que fala don Juan: o poder que faz variar, o poder de devir (Deleuze & Guattari 1997: 64).




É todo o agenciamento em seu conjunto individuado que é uma

hecceidade; é ele que se define por uma longitude e uma latitude (um

ponto, um corpo), por velocidades e afetos, independentemente das

formas e dos sujeitos que pertencem tão somente a outro plano (Deleuze

& Guattari 1997: 49-50).



Os Planos são modos de agenciamento do Tonal, modos de ser limite, de fazer corpo . velocidade da passagem. Um Tonal rígido perpassa o Plano dos estratos, das formas, dos sujeitos e dos organismos. Um Tonal fluido faz o Plano de Consistência; plano que é um .meio de transporte. (Deleuze & Guattari 1997: 58), um modo de passagem, de movimento veloz ou lento, por entre as dimensões temporais e espaciais das multiplicidades (Deleuze & Guattari 1997: 35 e 50) . .Máquina abstrata da qual cada agenciamento concreto é uma multiplicidade, um devir, um fragmento, uma vibração. (Deleuze & Guattari 1997: 36). Plano da variação: .infinidade das modificações que são partes umas das outras. (Deleuze & Guattari 1997: 39). Os agenciamentos se fazem e desfazem continuamente, os compromissos não são mais incontornáveis no plano de composição de hecceidades (Deleuze & Guattari 1997: 44 e 48): .a linguagem não é mais a das palavras, a matéria não é mais a das formas, a afetibilidade não é mais a dos sujeitos.(Deleuze & Guattari 1997: 44).



Agenciamentos como percepção das vibrações. Com um Tonal fluido Castaneda percebe o imperceptível, o .fim imanente do devir. (Deleuze & Guattari 1997: 72). A desterritorialização da percepção, a fluidez do Tonal perceptor é o encontro de uma linha de fuga, um devir no Plano de consistência. O devir torna o organismo, a significação e o sujeito imperceptíveis, fazendo o plano de estratificação entrar num .movimento de desterritorialização generalizada. (Deleuze & Guattari 1996: 19). Devir do devir de Castaneda, fluidez do Tonal, fabricação de um plano de imanência povoado de afetos e velocidades. O Tonal do guerreiro é o Tonal da variação, a grande máquina abstrata de agenciamentos, de fabricação de um corpo sem órgãos.




(quarto corpo ou corpo de energia)




Um Tonal rígido só permite testemunhar o mundo com a razão e a fala, eis o seu modo de agenciamento que determina hecceidades como estratos, como corpos organizados, sólidos e rígidos. O guerreiro precisa fabricar outro plano, inventar outro corpo, convencer o seu Tonal. O corpo sem órgãos que Castaneda experimenta é outro modo de corpo, de agenciamento, de individuação, de ponto; é o modo da passagem: .conexão de desejos, conjunção de fluxos, continuum de intensidades. (Deleuze & Guattari 1996: 24).




O CsO [Corpo sem Órgãos] faz passar intensidades, ele as produz e as

distribui num spatium ele mesmo intensivo, não extenso. Ele não é


espaço e nem está no espaço, é matéria que ocupará o espaço em tal ou

qual grau . grau que corresponde às intensidades produzidas. Ele é a

matéria intensa e não formatada, não estratificada, a matriz intensiva, a

intensidade = 0, mas nada há de negativo neste zero, nem existem

intensidades negativas nem contrárias. Matéria igual a energia. Produção

do real como grandeza intensiva a partir do zero. Por isso tratamos o CsO

como o ovo pleno anterior à extensão do organismo e à organização dos

órgãos, antes da formação dos estratos, o ovo intenso que se define por

eixos e vetores, gradientes e limiares, tendências dinâmicas com mutação

de energia, movimentos cinemáticos com deslocamento de grupos,

migrações, tudo isto independentemente das formas acessórias


(Deleuze & Guattari 1996: 13-14).



Interior e exterior não são mais perceptíveis: a bolha da percepção foi aberta, e o reflexo da descrição desaparece junto com o espelho. Mudança de jogo: o desejo do guerreiro é variar. O seu corpo já não é só a organização da vibração em órgãos. O guerreiro deseja chegar a ser vibração consciente sem organismo, chegar à totalidade de si mesmo. O CsO, o ovo pleno, é o seu modo, a sua individuação: fabricando um CsO o guerreiro se prepara para a experimentação da totalidade de si mesmo. O CsO é um modo de experimentação das margens, a entrada na zona de vizinhança . ele próprio .um limite. . um .conjunto de práticas. (Deleuze & Guattari 1996: 09). O CsO é desejo (Deleuze & Guattari 1996: 28), assim como o desejo do guerreiro, que o guia no .caminho com coração.; caminho impecavelmente agenciado. Desejo afinado na vibração, na velocidade do movimento que se escolheu percorrer. O guerreiro possui desejo . eis seu modo do haver. E o desejo é o

poder impecavelmente caçado e guardado: um sentir.



Há uma afinação do ânimo do guerreiro com o poder, pois um guerreiro possui um Tonal fluido que permite à percepção variar o modo, a velocidade, perceber o imperceptível. Pois, para um Tonal fluido, guardião em lugar de guarda, o limite e suas fronteiras são margens, brechas fissuras, povoadas de multiplicidades e atualizadas por modos de agenciamento, de individuação, de pontos de vista, de corpos. O modo da sensação, o limite-tensão, a passagem do afeto.




A cada relação de movimento e repouso, de velocidade e lentidão, que

agrupa uma infinidade de pares, corresponde um grau de potência. Às

relações que compõem um indivíduo, que o decompõem ou modificam,

correspondem intensidades que o afetam, aumentando ou diminuindo sua

potência de agir, vindo das partes exteriores ou de suas próprias partes.

Afetos são devires (Deleuze & Guattari 1997: 42).



Afetos se encontram no corpo, ou melhor, afetos fazem corpo, individuando, pontuando a perspectiva (Viveiros de Castro 1996). O guerreiro possui uma perspectiva impecável, afinada. Um guerreiro é um caçador de poder, e o poder é a possibilidade de variar a perspectiva (a moduladora de velocidades), um puxão, um nocaute no Tonal do sentido que repousa, imóvel, no lugar que inventamos para ele. O poder des-loca o Tonal(Castaneda RP: 214); o poder pessoal que o guerreiro se esforça por guardar provém de uma multiplicidade de .intencionalidades extra-humanas. de perspectivas variáveis, com as quais o guerreiro escolhe entrar em relação (Viveiros de Castro 1996: 119). Relação que o altera, entendendo por alteração a .diferenciação intensiva. (Viveiros de Castro 1996: 10); alteração que é preciso não atualizar demais, de modo a conhecer o caminho de volta, a permanecer individuado até o momento necessário.




Desfazer o organismo (temporariamente) nunca foi matar-se, mas abrir o corpo a conexões que supõem todo um agenciamento, circuitos, conjunções, superposições e limiares, passagens e distribuições de intensidade, territórios e desterritorializações medidas à maneira de um agrimensor (Deleuze & Guattari 1996: 22).



Só como guerreiro sobrevive-se ao caminho do conhecimento, pois o encontro com as forças abre o corpo do guerreiro à variação e, portanto, à morte (Castaneda RA: 247). O guerreiro sabe como preencher a sua abertura, e com a potência do seu desejo e a impecabilidade de sua crença, de seu agenciamento, ele caça o poder da relação ao sobreviver à perspectiva alheia . até que chegue a sua hora. O guerreiro convence o seu Tonal a percorrer as margens, fortalecendo-o para não sucumbir.




As margens são bordas movediças: vibração do movimento ou movimento da

vibração (Deleuze & Guattari 1997: 36). O CsO é uma borda, ou uma multiplicidade de bordas, um limite. E as bordas são lugares que operam passagens . limites imanentes ou limites-tensão. Os limites-tensão, ou os sentidos, traduzindo as diferentes velocidades das perspectivas em ação, para .coordenadas perceptivas do espaço-tempo. (Deleuze & Guattari 1997: 32). Os sentidos são bordas, margens, zonas de vizinhança, de afeto. Lugares de tradução, de passagem entre multiplicidades. Também interplanos. Dimensão extrema (intensa) que define a natureza da multiplicidade. As próprias multiplicidades e seus devires são definidos e transformados por bordas que funcionam como Anômalo (Deleuze & Guattari 1997: 35). Para Deleuze, a borda é o anômalo com o qual se faz aliança para devir (Deleuze & Guattari 1997: 28), pois o anômalo conduz à transformação, à passagem na linha de fuga (Deleuze & Guattari 1997: 33), operando uma transformação dimensional. Mudar de dimensões é mudar de multiplicidade (Deleuze & Guattari 1997: 27). O anômalo desdobra as bordas (multiplicação extensiva e intensiva das margens) e .conduz as transformações de devir ou as passagens de multiplicidades cada vez mais longe na linha de fuga. (Deleuze & Guattari 1997: 33). Ele é ao mesmo tempo ameaça e treinador (Deleuze & Guattari 1997: 28), o que o coloca conceitualmente muito próximo ao Aliado de Castaneda.



.Um aliado é um veículo. (Castaneda EDJ: 259), como o plano. Na redefinição das margens e dos limites, o aliado veicula a passagem, o movimento, a permutação de perspectiva. O aliado, para don Juan, é uma ajuda indispensável ao saber, .um poder capaz de levar um homem além de seus próprios limites. (EDJ: 90), meio de transporte a .mundos inconcebíveis. (EDJ: 109) que só pode ser testemunhado pela .vontade.. A .característica distintiva. do bruxo é a possessão de um aliado (EDJ: 273). Dentre as possíveis atualizações, individuações, perspectivas ou posições, o bruxo é aquele que fez aliança com o aliado, ocupando a partir daí uma posição anômala. Ele se situa na borda, na margem, na zona de vizinhança, no modo da variação (Deleuze & Guattari 1997: 28).



Os bruxos, aqueles que fizeram aliança, são as testemunhas do Nagual. O modo de testemunhar o Nagual não é o mesmo modo de testemunhar o Tonal. O centro de percepção do Nagual é a .vontade., um modo de ação, de relação, de variação, de afeto . uma sensação, um poder. A .vontade. não é uma idéia; a vontade é um modo de percepção, um modo de .agarrar as coisas. (Castaneda RA: 170-171), um modo de matéria. A vontade é o modo de relação do guerreiro cujo corpo é uma abertura por onde a própria vontade agarra o mundo (Castaneda RA: 171). Trata-se de um .poder dentro de nós mesmos. (nem pensamento, nem objeto, nem desejo), de uma força que é nossa .liga. com o mundo, da própria relação entre nós e o mundo (RA: 170). Mundo que pode ser percebido com os sentidos, mas também com a vontade, pois a vontade é uma .força que provêm de dentro e se prende ao mundo de fora. (RA: 171).




.Digamos que un guerrero aprende a entonar su voluntad, a dirigirla a un punto directo, a enfocarla donde quiere. Es como si su voluntad, que sale de la parte media de su cuerpo, fuera una sola fibra luminosa, una fibra que él puede dirigir a cualquier sitio concebible. Esa fibra es el camino al nagual. O también yo podría decir que el guerrero se hunde en el nagual a través de esa sola fibra. (Castaneda RP: 237).



As .fibras largas e poderosas. do guerreiro .guiam. a sua percepção do Nagual (Castaneda RP: 337). Um homem de conhecimento produz linhas que o unem às coisas, e pode fazê-las com as mãos, com os olhos, ou com a parte média de seu corpo, que são as mais duradouras (Castaneda VI: 268). Fibras .como tentáculos. que lhe dão estabilidade e equilíbrio (Castaneda RA: 124). Estas linhas são modos de percepção do mundo, que é um sentir, e para produzi-las, para senti-las, é necessário parar de fazer, ou seja, não fazer. Quando o guerreiro não faz, está .sentindo o mundo e se sente através de suas linhas. (Castaneda VI: 268). Um guerreiro é um homem que desenvolve a sua .vontade., que controla o poder da .vontade. (Castaneda RA: 169). Eis o seu modo de agenciamento, o seu devir: o .movimento pelo qual a linha libera-se do ponto, e torna os pontos indiscerníveis. (Deleuze & Guattari 1997: 92).



O movimento do CsO guerreiro é um devir, uma aceleração (Deleuze & Guattari 1997: 91); um modo de percepção, de velocidade e lentidão, de movimento e repouso (Deleuze & Guattari 1997: 39); um movimento particular de aceleração que transforma a própria relação entre as partículas, entre as últimas partes infinitamente pequenas de um infinito atual (Deleuze & Guattari 1997: 91) . o movimento relacional e vibracional das mônadas, a operação de uma passagem.




O movimento está numa relação essencial com o imperceptível, ele é por

natureza imperceptível. É que a percepção só pode captar o movimento

como uma translação de um móvel ou o desenvolvimento de uma forma.

Os movimentos e os devires, isto é, as puras relações de velocidade e

lentidão, os puros afetos, estão abaixo ou acima do limiar de percepção

(Deleuze & Guattari 1997: 74).



O aliado é o que permite a .desterritorialização da percepção., o que dá à percepção .potência molecular., possibilidade de variar a velocidade, instaurando um momento no qual .desejo e percepção se confundem. (Deleuze & Guattari 1997: 77). Neste momento o guerreiro desfaz o seu compromisso com um modo de estar no espaço e ser no tempo. Varrendo a ilha, ou, como diria Deleuze, .suprimindo de si o que o impedia de deslizar entre as coisas., o guerreiro se transforma em hecceidade, entrando numa linha de fuga que é a ligação entre o .indiscernível., o .imperceptível. e o .impessoal. (Deleuze & Guattari 1997: 74). Como o cavaleiro da fé, o guerreiro confronta a percepção com seu próprio limite (Deleuze & Guattari 1997: 76).



Os efeitos do aliado sobre a percepção consistem em que "el aliado se llevaba el cuerpo de uno" (Castaneda RA: 13). Ele retira a solidez organizacional do corpo, a subjetivação pesada que prende o desejo no interior de um corpo perfeitamente limitado e imobiliza o movimento, detendo a passagem, instaurando a duração, pois o mundo de múltiplas forças e modos de agenciamento que o guerreiro procura perceber está longe de ser durável: trata-se de um .mundo fugaz. que requer certa velocidade de percepção para poder testemunhá-lo.




.El mundo, cuando ves, no es como ahora piensas que es. Es más bien un

mundo fugaz que se mueve y cambia.(Castaneda RA: 129).



Ao retirar o corpo sólido, a diferença extensiva e duradoura, o aliado permite ao guerreiro a metamorfose, e também o possibilita atravessar as coisas (Castaneda EDJ: 270). Desta forma, o guerreiro pode acessar outro modo de agenciamento, o Ver, um modo de atravessar as coisas (Castaneda RA: 171), de passar por entre os limites, de povoar as bordas, de variar. Modo de agenciamento do homem de conhecimento, junto com a sua vontade e o seu sentir (RA: 172). .Ver. é "responder a los estímulos perceptuales de un mundo fuera de la descripción que hemos aprendido a llamar realidad" (Castaneda VI: 16).



Ver é a grande façanha de um homem de conhecimento, de alguém que foi além da bruxaria, pois a bruxaria consiste unicamente, segundo don Juan, em .aplicar uma conjuntura clave., em interferir (Castaneda RA: 229), enquanto que para ver é necessário parar de fazer, parar o mundo e se descomprometer com qualquer tipo de descrição, seja a dos homens comuns ou a dos bruxos (Castaneda VI: 15). Para Ver é necessário passar por entre as descrições, permitir ao corpo perceber a .insignificância. das descrições (Castaneda RA: 194). Mas primeiro o aprendiz deve aprender uma nova descrição, diferente daquela com a qual está comprometido, de modo a compreender a existência de várias descrições. Uma vez que o guerreiro percebe a relatividade do objetivo, e não só do subjetivo, ele é capaz de passar pela fissura, de se enfiar por entre as descrições. Percorrer a linha de fuga, o entre-dois, passar pelo meio, na .velocidade absoluta do movimento. (Deleuze & Guattari 1997: 91). .Ver é o ato de perceber a energia diretamente como flui no universo. (Castaneda EDJ: 33).

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