quinta-feira, 28 de novembro de 2013
quarta-feira, 27 de novembro de 2013
Pound paideuma
Ezra Pound
http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_visual/pound_padeuma.html
[ideogramização da poesia]
Haroldo de
Campos*
* o objetivo desta introdução é a obra de
pound em si: pound, o inventor de formas.
pound no paideuma da poesia
contemporânea.
* há una cultura verbal, do mesmo modo que ha
uma cultura visual ou sonora. sob certos aspectos, pode-se falar de
pound. criador de formas verbais, com a mesma naturalidade com
que se falaria de mondrian, inventor de formas plásticas, ou de
webern, inovador do universo
sonoro.
* pound puxa paideuma. isto
quer dizer que pound teve a preocupação de levantar, para a
arte poética de nosso tempo, uma nova tradição, a margem do rango acadêmico das
histórias da literatura dessuetas e das antologias serôdias. seus ensaios, de
the spirit of romance ao guide to kulchur,
passando pelo a. b. c. of reading, sao cortes
paidêumicos : "separações drásticas" de um elenco de autores culturalmente
atuantes no momento histórico.
* pound, critico, vê a poesia
dum angulo criativo: do ponto de vista de quem esta empenhado em inventar novas
formas poéticas. pound põe "make it new" ou
seja — "culturmorfologia": transformação quaÏitativa da cuitura. determinados
autores, cuja obra era de eficácia imediata e urgente no panorama artístico onde
e. p. atuava (por exemplo : arnaut daniel e os provençais;
guido cavaicanti; os simbolistas franceses da linha
"coloquial-irônica" — laforgue e corbière;
etc.), foram chamados à linha de tiro, em
lances incisivos de estratégia intelectual,
enquanto outros, sem rodeios, foram postos fora de campo
(miiton, por exemplo, cujas construções latinizantes, segundo
pound, artificializavam a língua). a cultura necessita
dessas injeções de coramina : seu coração também
envelhece.
* pound propõe ideograma. o
método ideogrâmico, como princípio organizador dos cantos, é
tão importante para a poesia contemporânea, como o princípio serial para as
estruturas da música atual. o ideograma elimina as cortinas de fumaça do
silogismo : permite um acesso direto ao objeto. duas ou mais palavras, dois ou
mais blocos de ideias, postos em presença simultânea, criticando-se
reciprocamente, precipitam um jogo de relações com uma intensidade e uma
imediatidade que o discurso lógico não seria capaz sequer de evocar.
fenollosa & pound (a escrita
chinesa como itistrumento para a
poesia) : "neste processo de composição, duas coisas conjugadas não
produzem uma terceira, mas sugerem alguma relação fundamental entre ambas". ex.:
"sol + Ïua" = "processo de luz total" ("ming" fffj ). os
cantos,cada um deles em relação a suas partes componentes; cada
canto em particular ou cada grupo de cantos (os grecoromano-provençais ; os
malatestianos; os americanos = "jefferson/nuevo mundo" ; ,os sienenses =
"reformas leopoldinas”; os chineses; os do ciclo john adams; os pisanos; os da
"secção perfuratriz de
rochas"— 85 a 95, últimos até agora publicados)
em relação ao corpo total do poema, compõem um imenso ideograma da cosmovisão
poundiana, que se multiarticula em séries de ideogramas menores até a mínima
unidade do poema: — o verso, que é também substituído diretamente por um
ideograma ou então se constitui em membro de uma estrutura ideogrâmica
básica.
* por estranha que pareça a aproximação aos
observadores de superfície, impressionados com a exclusão de
mallarmé das preferências literárias de e. p.,
o método ideogrâmico de composição, teorizado e praticado por
pound, conota intimamente, do
ponto de vista da invenção formal, com "as subdivisões prismáticas da ideia" do
autor de un coup de dés (poema que valery —
varitéé ii — chamou de "espetáculo ideográfico duna crise ou
aventura intelectual"). hugh kenner (the poetry of ezra
pound) entreviu, embora sem descer em profundidade à comparação, esse
cam-
po de contacto: "a fragmentação da ideia
estética em imagens alotrópicas, teoria iniciada por mallarmé,
foi uma descoberta cuja importâancia para o artista corresponde a da fissão
nuclear para o físico". ambos se inspiraram em estruturas musicais :
mallarmé fala da "música ouvida em concerto", onde se encontram
"vários meios" por ele utilizados, por lhe terem parecido
"pertencer às letras"; refere-se a "motivo
preponderante, secundário e motivos adjacentes", a "contraponto prosódico", a
organização semelhante a da sinfonia (prefácio a um lance de
dados). pound compara os cantos à fuga : "tome uma
fuga : tema, resposta, contra-tema. não que eu pretenda uma exata analogia de
estrutura" (carta de 1937 a j. l. brown / the Ïetters
of e. p.).
" os cantos são uma "épica sem
enredo" (h. kenner). não se prestam ao ordenamento
lógico-cronológico de princípio-meio-fim. não possibilitam o traçado de um fio
histórico-narrativo. os elementos dos cantos, através do
ideograma (princípio que eisenstein, por sua vez, aplicou à
montagem cinematográfica), se catalizam em torno de "focos de interesse"
subordina-
dos a uma hierarquia geral de valores
(histórico-econômicos, ético-políticos, estético-críticos). o ideograma é a
forca que, como um imã, ordena "a rosa na limalha de ferro" : um estilhaço
arrancado à crônica de sigismundo malatesta, um aforisma extraído dos analectos
de confúcio, excertos da correspondência de jefferson ou de john adams,
reminiscências pessoais
do poeta como as de seu aprisionamento no campo
de pisa, interagem polarizados em cadeias de relações, desenhado o organismo
geral do poema.
* o léxico de pound é um léxico
de objetividades. pound não lida com a metáfora pura ou de
tipo gongorino. não especula com abstrações (como mallarmé).
sua linguagem é direta. tem a vivacidade do coloquial. a
partir dos cantos pisanos
(principalmente) ganha a celeridade com que os pensamentos se articulam no
cérebro : seu poema passa a ser uma épica da memória. "dichten == condensare" é
o postulado valido para o léxico poundiano: uma língua de "essências e medulas",
de "definições precisas". a extrema síntese de sua dicção pode iludir em seu
despojamento eliptico; nada mais distante, porém, do "automatismo psíquico" dos
surrealistas, da linguagem onírica, a-causal, vaga. as seqiuências mnemônicas
dos cantos pisanos se integram nas linhas de
força do poema: são coagulações de discurso direto, núcleos e cernes de dicção
objetiva, gravitando, em constelações semânticas, em torno dos eixos de ideias
mestras, cuja "vis attractiva" domina a obra
inteira.
* a obscuridade de pound não é
de palavra. é uma obscuridade de referência. o melhor intérprete de e.
p. é sua obra paralela aos cantos (seus ensaios, suas
traduções, seus panfletos, sua correspondência),
pound opõe-se à ambiguidade de
tipo surrealista.
* pound pode ser considerado um
poeta espacial. a disposição dos blocos de ideias num dado segmento dos
cantos (com especial intensidade a partir dos
pisanos) responde a uma função rítmica também visual: contribui
para a fixação sensível da estrutura ideogrâmica. através do corpo dos
cantos a composição tipográfica é invadida pela pitografia
chinesa, com função semafórica : "trazer ao foco" determinados grupos de ideias,
mediante a ativaição direta do olho (o processo — que leva os experimentos de
e. p, até o dado meramente gráfico, a textura material do poema
— recru-desce na "secção perfuratriz de rochas" — rock-drill,
cantos 85 a 95, onde aparecem, inclusive, com análoga função, hieroglifos
egípcios e, em preto e vermelho, os naipes do baralho). com razao observa
h. kenner:
"pound atingiu, durante o seu trabalho de mais
de trinta anos nos cantos, uma crescente perícia retórica,
alcançando novas altiitudes nas seqiuências mais recentes, nas quais a
disposi^ção espacial de cada palavra é funcional". e charles
madge ("a elipse nos cantos pisanos", "in" ezra pound,
simpósio coligido por peter russel) : "ademais, para pound como
para mallarmé, o aspecto visual de seus poemas é importante : o espaço através
do qual a centeiha poética tem que voar é um espaço real numa página impressa. o
que se conjuga com uma paixão pelo caligráfico ideograma chinês.
“
* pound puxa paideuma. um
trfbuto a e. p. é um tributo à vivacidade. falar numa ortodoxia
poundiana é ser anti-e. p. poand arma a jovem poesia de um
sentido qualitativo de processo. nenhum "paraíso perdido" de decoro estético.
nenhum "enxame de sentimentos inarticulados". sua presença instiga o artista
criativo a uma opção radical: ao levantamento urgente de um paideuma, com ação
instantânea sobre a conjuntura poética contemporânea, como ponto de partida para
a invenção de novas formas de cultura verbal. nesse paideuma, a obra de
e. p. será, necessariamente, uma das linhas mestras. dizer
paideuma, é dizer justaposição das partes vivas de uma cultura: — corpo de
conhecimentos que funciona— mera ortodoxia é um problema de
hipnose.
* o ideograma tem um futuro próprio, que não se
esgota no edifício "maior" dos cantos. é a linguagem adequada
para a mente contemporânea. permite a comunicação no seu grau mais rápido. entra
em conjunção
com as experiências da música e das artes
visuais realmente criativas. os cantos não fecham a poesia num
beco sem saída. representam uma tensão para um novo mundo de
formas.
* "a poesia difere da prosa pelas cores
concretas de sua dicção" (fenollosa &
pound).
Haroldo de
Campos
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*Prefácio do livro “ezra pound cantares”,
tradução de Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos. Publicação
do Serviço de Documentação do Ministério da Educação e Cultura”, sem data
(presumivelmente em 1960, pouco antes da mudança da capital do Rio de Janeiro
para Brasília). No original não aparece o subtítulo “ideogramização da poesia”,
que foi colocado para deixar mais clara a intenção do
prefácio.
Post Scriptum
CANTO 81 / Ezra Pound fragmento
Veio o visível primeiro, depois o palpável
Elísio, ainda que fosse nas câmaras do inferno,
O que amas de verdade é tua herança verdadeira
O que amas de verdade não te será arrancado
A formiga é um centauro em seu mundo de dragões.
Abaixo tua vaidade, nem coragem
Nem ordem, nem graça são obras do homem,
Abaixo tua vaidade, eu digo abaixo.
Aprende com o mundo verde o teu lugar
Na escala da invenção ou arte verdadeira,
Abaixo tua vaidade,
Paquin, abaixo!
O elmo verde superou tua elegância.
"Domina-te e outros te suportarão"
Abaixo tua vaidade
Tu és um cão surrado e largado ao granizo,
Uma pega inchada sob o sol instável,
Metade branca, metade negra
E confundes a asa com a cauda
Abaixo tua vaidade
Que mesquinhos teus ódios
Nutridos na mentira,
Abaixo tua vaidade,
Ávido em destruir, avaro em caridade,
Abaixo tua vaidade,
Eu digo abaixo.
Mas ter feito em lugar de fazer
isto não é vaidade
Ter, com decência, batido
Para que um Blunt abrisse
Ter colhido no ar a tradição mais viva
ou num belo olho antigo a flama inconquistada
Isto não é vaidade.
CANTO 81 / Ezra Pound fragmento
Veio o visível primeiro, depois o palpável
Elísio, ainda que fosse nas câmaras do inferno,
O que amas de verdade é tua herança verdadeira
O que amas de verdade não te será arrancado
A formiga é um centauro em seu mundo de dragões.
Abaixo tua vaidade, nem coragem
Nem ordem, nem graça são obras do homem,
Abaixo tua vaidade, eu digo abaixo.
Aprende com o mundo verde o teu lugar
Na escala da invenção ou arte verdadeira,
Abaixo tua vaidade,
Paquin, abaixo!
O elmo verde superou tua elegância.
"Domina-te e outros te suportarão"
Abaixo tua vaidade
Tu és um cão surrado e largado ao granizo,
Uma pega inchada sob o sol instável,
Metade branca, metade negra
E confundes a asa com a cauda
Abaixo tua vaidade
Que mesquinhos teus ódios
Nutridos na mentira,
Abaixo tua vaidade,
Ávido em destruir, avaro em caridade,
Abaixo tua vaidade,
Eu digo abaixo.
Mas ter feito em lugar de fazer
isto não é vaidade
Ter, com decência, batido
Para que um Blunt abrisse
Ter colhido no ar a tradição mais viva
ou num belo olho antigo a flama inconquistada
Isto não é vaidade.
terça-feira, 26 de novembro de 2013
A composição de uma obra aberta
de estilo? Acho que é sim. A composição de um livro é
algo que não se resolve previamente. Ela se faz ao mesmo
tempo em que o livro se faz. Por exemplo, vejo em livros
que eu escrevi, se me permite citar o que eu fi z... Há
dois livros meus que me parecem compostos. Sempre dei
importância à composição. Penso em um livro chamado
Lógica do sentido que é composto por séries. Para mim, é
verdadeiramente uma composição serial. E Mil platôs é
uma composição por platôs. Para mim, são duas composições
quase musicais, sim. A composição é um elemento
fundamental do estilo.
Em ambos os casos, a organização linear, hierárquica, sugerida
pela separação em capítulos, cede lugar a uma composição horizontalizada,
de partes que parecem correr em paralelo, quase como em
um "jogo da amarelinha" cortazeano. É como se cada série, ou cada
platô, funcionasse como uma peça independente, vinda cada uma de
um quebra-cabeças diferente; ao mesmo tempo, como se essas peças
fossem "violentamente inseridas" umas nas outras, forçando novos
encaixes (DELEUZE; GUATTARI, 1972, p.51).
As séries e os platôs
podem ser lidos em diferentes ordens, criar diferentes trajetos entre
si e, a cada vez que um deles participa da leitura, a paisagem geral do
livro se modifi ca, ainda que se mantendo numa relativa independência
em relação a suas partes e vice-versa.
No caso do livro com Guattari, diz Deleuze, os platôs foram
concebidos como "anéis quebrados", penetrando uns nos outros,
sendo que: "Cada anel, ou cada platô, deveria ter seu clima próprio,
seu próprio tom ou seu timbre" (1992, p.37). Cada um dos platôs,
explica ele, seria uma espécie de mapa, traçando seu próprio trajeto:
"[...] os platôs são zonas de variação contínua, são como torres que
vigiam ou sobrevoam, cada uma, uma região, e que emitem signos
umas às outras" (1992, p.177). Para quem teve contato com a obra na
tradução brasileira, um elemento a mais participa dessa construção
fragmentária: por questões editoriais, a obra, formada por um único
tomo no original, foi dividida em cinco volumes. Assim, o leitor que
não teve contato com a obra em francês vive uma sensação ainda
mais concreta da independência entre os platôs e uma outra experiência
da leitura dos Mille plateaux: cada volume da edição brasileira
constitui um livro, um todo, cada um por sua vez com seu "timbre",
seu "tom", cada um constituindo um mapa (variando de dois a quatro
platôs), um plano de consistência próprio. O que aqui se coloca
em questão não é se as consequências dessa circunstância de publicação
são boas ou ruins, mas a observação do quanto ela pode acarretar
uma mudança na leitura da obra e o quanto o próprio formato da
obra, em platôs com uma autossufi ciência relativa, possibilitou que
essa divisão fosse realizada.
Há uma lição aprendida com Proust, que Deleuze e Guattari
não escondem. A ideia acerca do estilo proustiano aparece em O
anti-Édipo, em 1972, e é retomada por Deleuze em Proust e os signos,
de 1976, como a constituição de um todo da obra como efeito de
fragmentos que não se unifi cam nesse todo. Ou seja, partes que permanecem
com suas devidas autonomias, sem se dissolverem em uma
unidade comum, sem perderem sua independência, sua singularidade,
em prol de um unifi cador – seja ele de ordem simbólica, interpretativa
ou do signifi cante. As partes são peças rearranjáveis, que permitem
percursos diversos de leitura e, a cada percurso, um efeito de leitura
diferenciado. O todo é então um todo modulável, que se dá como
efeito "ao lado" das partes, é uma "pincelada fi nal", como diz Proust
acerca do estilo de Balzac (DELEUZE, 1987, p.165). Vale transcrever
o trecho em que Deleuze e Guattari narram o movimento dessas
peças:
E é notável, na máquina literária de Em busca do tempo perdido,
até que ponto todas as partes são produzidas como lados
dissimétricos, direções quebradas, caixas fechadas, vasos
não comunicantes, compartimentações, nas quais mesmo
as contiguidades são distâncias e as distâncias, afi rmações,
pedaços de quebra-cabeça que não são do mesmo mas de
diferentes quebra-cabeças, violentamente inseridos uns nos
outros, sempre locais e nunca específi cos, e com suas bordas
discordantes, sempre forçadas, profanadas, imbricadas umas
nas outras, e sempre com restos (1972, p.51).1
A autonomia relativa dessas partes – séries ou platôs, conceitos
ou imagens – não signifi ca que elas não se comuniquem, que não
constituam trânsitos diversos entre si, pelo contrário: o estilo proustiano,
que Deleuze e Guattari tanto admiram, seria justamente esta
possibilidade de criar um todo múltiplo, que é efeito de fragmentos
não totalizáveis, porém extremamente ressoantes entre si. Há linhas
que se tecem a todo momento, em direções diversas, entre elementos
que constituem um texto, um livro. Relações que se fazem necessárias,
ligando o que pareceria solto, criando uma fl uência entre
fragmentos, forçando trajetos intensivos. Dessa lição estilística com
Proust, tem-se a constituição de uma obra que retira sua possibilidade
de ser "uma" obra, de ter sua unidade, justamente por efeito de
ressonâncias internas entre suas peças. Há um fl uxo que se cria por
força das distâncias entre os elementos, pela ausência de relação dada
(preestabelecida, causal, extensiva, atual) entre eles.
Como vimos no trecho citado anteriormente de L’Abécédaire,
a composição do livro é um elemento importante na elaboração do
estilo para Deleuze e não é algo preconcebido, mas que se faz "ao
mesmo tempo em que o livro se faz". Deleuze cita pontualmente
aí Lógica do sentido e Mil platôs, como dois bons exemplos em que
se tem uma preocupação composicional, "duas composições quase
musicais". Mas, embora não seja em todas as obras de Deleuze que
a estruturação do livro atue assim tão ativa ou experimentalmente,
pode-se dizer que a composição, e portanto o trabalho com o estilo,
é muito presente no interior dos textos mesmos – em verdade, ele
nunca está ausente.
E, ainda que se fale em composição serial ou por platôs de
modo mais explícito nesses dois casos, mantém-se nos outros livros
de Deleuze, em geral, uma fragmentação bastante próxima à operação
que viemos descrevendo acerca de Proust. Além de capítulos
geralmente mais breves, nota-se uma relação entre eles não hierarquizada,
não linear, não centralizada. O que poderíamos traduzir, em
termos dessa fi losofi a, na opção por sistemas a-centrados, isto é, a recusa
de livros que seguiriam os modelos da árvore ou da raiz, com
um tronco principal, galhos derivados, apenas uma porta de entrada e
uma de saída, os capítulos servindo de organizadores a esta hierarquia
e linearidade que se dão sempre em vista de um Uno transcendente.
No lugar disto, pode-se notar a busca por livros com todo um outro
tipo de composição, mais horizontalizada, que opta por uma maior
mobilidade e trânsito entre os capítulos. O livro parece ir se montando
diante dos olhos do leitor, ao invés de oferecer uma unidade
pronta de antemão.
Essa constituição mais quebradiça seria um dos procedimentos
utilizados por Deleuze no seu esforço de tratar a escrita como um
fl uxo e não um código, tal vemos em suas falas em Conversações. A
fragmentação e o modo não hierarquizado de criar conexões entre
os fragmentos, no entanto, não se restringem à estruturação dos livros,
mas apontam para um movimento interiorizado em sua escrita
de forma generalizada, nos elementos e movimentos menores que a
compõem. A organização do livro é então somente um desdobramento
maior, uma reverberação de um movimento que já se dá nas
dimensões menores e mais subterrâneas de sua escrita
(...)
Anéis partidos ou "anéis quebrados", como se refere Deleuze
acerca dos platôs, em seus modos de se enganchar e se engatar uns
nos outros mantendo, no entanto, uma relativa autonomia. Ou ainda,
anéis abertos, como dizem ele e Guattari quando, ao falarem da escrita
de Kleist, parecem descrever a própria dinâmica que buscavam
em sua composição: "Kleist inventou uma escrita deste tipo, um encadeamento
quebradiço de afetos com velocidades variáveis, precipitações
e transformações, sempre em correlação com o fora. Anéis
abertos" (1995a, p.18, grifo meu). Cada fragmento do texto, conceito,
frase, oração, constitui uma espécie de todo que gira sobre si, mas
que sempre se mantém aberto em algum ponto, permitindo encaixes
múltiplos com outros elementos (sejam eles internos ou externos ao
texto). Não se trata de um acaso, pelo contrário: o esforço composicional
de Deleuze ao escrever parece ir neste sentido: "interessa-me
que uma frase fuja por todos os lados, e no entanto que esteja bem
fechada sobre si mesma, como um ovo" (DELEUZE, 1992, p.24).
Como criar uma frase que "fuja por todos os lados" e que, ao
mesmo tempo, se baste em si mesma? Problema de estilo. Uma frase
que fuja por todos os lados é uma frase, como a de Kleist, "sempre
em correlação com o fora", é uma frase-anel-aberto, conectada com
aquilo que não é apenas linguístico, não é apenas código e não se efetua
apenas ali, entre as palavras. É uma espécie de frase-isca: por um
lado, "a palavra pescando o que não é palavra", se roubarmos os termos
de Clarice Lispector (1999, p. 385); por outro, a palavra também
sendo pescada por este limite não linguageiro, sendo arrastada por ele
– sons e imagens "inomináveis", sopros, gritos, cantos, epifanias.
Assim, é como se, para fugir por todos os lados, para alcançar
ou ser alcançada por essas visões e audições que estão no limite da
língua, a frase precisasse possuir contornos e membranas bem delimitados,
como um ovo. Mas, notemos, o ovo aqui pode não ser apenas
o que está hermeticamente lacrado, mas ser simultaneamente este duplo
aspecto: estar fechado em si e, ainda, fugir por todos os lados. Isso
porque o ovo é energia potencial, condensação pura de intensidades,
a serem futuramente atualizadas, conectadas, formadas, desdobradas,
encarnadas. O ovo é "matéria intensa e não formada, não estratifi
cada, a matriz intensiva" (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p.13),
distinguindo apenas gradientes, tonalidades, migrações, zonas de vizinhança.
Ele é pré-formal, é anterior às formalizações, o que não
signifi ca ser indiferenciado, mas sim possuir um potencial de relações
ainda não atualizado.
Uma frase-ovo é então essa que possuiria uma perfeita autonomia,
estando muito bem fechada sobre si mesma, e ao mesmo tempo
uma abertura incontida ao fora, às conexões que poderiam se dar no
futuro das leituras – sendo no encontro da leitura que se dão as visões
e audições, que as palavras podem sussurrar, gritar, fazer ver. Aqui,
um ponto crucial: essas são conexões não previstas, não preestabelecidas,
embora delimitadas pelo campo intensivo da frase. A frase-ovo,
como matriz intensiva, possui sua plena distinção, sua singularidade,
e sua leitura não pode ser confundida com ideias aparentemente semelhantes,
tais como: de que o leitor criaria o texto que quisesse (o
equívoco da abertura plena, que recai no caos), ou de que ele decodifi
caria expectativas previstas, tal chaves de leitura deixadas pelo
autor (o equívoco da falsa abertura). É, antes,
como se a frase-ovo fosse constituída de fi os soltos, a serem ligados na
leitura. Ela se atualiza, ela acontece, na leitura; ou ainda, cada leitura
efetuaria uma atualização da frase, diferenciando-a a cada vez. "É do
tipo ligação elétrica" (DELEUZE, 1992, p.17).
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