JOCA REINERS TERRON
Influenciador de movimentos como o surrealismo e o "nouveau
roman", Raymond Roussel (1877-1933) deixou uma pouco lida obra de ficção,
excêntrica como ele próprio e pautada por métodos formais de origem poética.
Após voltar à cena com exposição na Europa, pela primeira vez terá livros
traduzidos no Brasil.
São tempos magnéticos para o nome, algo obscuro, de Raymond Roussel. Diversos
acontecimentos dedicados à vida e à obra do poeta, escritor e dramaturgo
francês, nascido em Paris em 1877 e morto em um hotel da Sicília em 1933,
procuram ampliar seu público reduzido --porém riquíssimo, segundo o editor
Jean-Jacques Pauvert:
"Não dá mais para contar os artigos e livros consagrados a
Roussel. Em compensação, podem-se contar facilmente seus leitores. Mas que
leitores!".
Entre os elogios feitos a Roussel por leitores ilustres, Pauvert recorda que
Marcel Proust o via como "um prodigioso conjunto de ferramentas poéticas". Entre
os surrealistas, uma tríade notória assim o definiu: "o maior magnetizador dos
tempos modernos" (André Breton); aquele que "nos mostra tudo o que não foi;
apenas essa realidade nos importa" (Paul Éluard); "a estátua perfeita do gênio"
(Louis Aragon). Por fim, resumindo, disse o escritor Jean Ferry: "Depois dele,
vem toda a literatura moderna".
A influência de Roussel sobre movimentos artísticos do século 20 foi
resumida, no ano passado, na exposição "Locus Solus "" Impressões de Raymond
Roussel", montada em conjunto pela Fundação Serralves, de Portugal, e pelo museu
espanhol Reina Sofía (passando também pela Biblioteca Nacional francesa), com
grande afluência de espectadores.
"Locus Solus" (1914) é também o título do principal romance de Roussel. O
livro protagoniza o mais recente e mais interessante --para o leitor
brasileiro-- capítulo dessa nova vaga de "rousselmania". Em tradução de Fernando
Scheibe, "Locus Solus" ganha, em novembro, edição pela Cultura & Barbárie.
Simultaneamente, a editora catarinense lança a coletânea "Como Escrevi Alguns
de Meus Livros", organizada e traduzida por Fabiano Barboza Viana (como Scheibe,
rousselmaníaco de carteirinha).
A seleção inclui o ensaio considerado seu testamento literário (e de fato
deixado com seu advogado, com orientações restritas para sua publicação
póstuma), além do conto "Entre os Negros" (que em 1910 daria origem ao volume
"Impressions d'Afrique") e do capítulo inicial do estudo "Da Angústia ao
Êxtase", do psiquiatra Pierre Janet, precursor da psicanálise, mestre de Jung e
médico de Roussel.
DIFUSÃO A dupla publicação deve ser celebrada, pois a difusão de
Roussel no Brasil é escassa e esparsa. Como antecedentes, estão os contos e
fragmentos traduzidos por Luiz Antônio de Figueiredo nos anos 1980: "A Franja de
Ouro da Pequena Eleomar", publicado nesta Folha (no "Folhetim" nº 351, de
9.out.83) e "Entre os Negros", na revista "Através" nº 1 (Martins Fontes,
setembro de 1983).
Antes destes, Figueiredo havia traduzido (como "Piparote") o conto
"Chiquenaude", que marca, na trajetória do autor, o elo entre sua obra em verso
e sua prosa --publicado no jornal "Viva Há Poesia", número único, São Paulo,
1979. E mais recentemente, encerrando as breves aparições de Roussel no panorama
nacional, o poeta Carlito Azevedo traduziu e publicou o capítulo de abertura de
"Locus Solus" na revista "Ficções" nº 9 (7Letras, 2002).
Balizando a dimensão dessa tardança, lembre-se que a primeira tradução ao
espanhol de Roussel foi feita na Argentina num longínquo 1973, a cargo de Estela
Canto, famosa namorada de Borges.
Publicado pelas Ediciones de La Flor, o romance "Impresiones de África" saiu
na Argentina dez anos após a primeira edição comercial do livro por Pauvert --em
momento posterior à recuperação do escritor impulsionada por ensaios de Michel
Foucault e Gilles Deleuze surgidos em 1963.
Por esse período, os experimentalistas do "nouveau roman" (novo romance)
adotavam, em sua ficção, técnicas descritivas de Roussel. Também as analisavam
em ensaios --há exemplos de trabalhos explicitamente devocionais assinados por
Alain-Robbe Grillet, Michel Butor e Jean Ricardou.
Suas invenções literárias, que partiam de regras formais baseadas em
trocadilhos, também foram renovadas e ampliadas por autores reunidos em torno a
Raymond Queneau no OuLiPo (sigla francesa para "Oficina de Literatura
Potencial"), como Georges Perec, Italo Calvino e Harry Matthews.
A influência de Roussel sobre Julio Cortázar tampouco é desprezível, a ponto
de a mencionada edição argentina trazer na contracapa uma sugestão que fazia
lembrar "O Jogo da Amarelinha" e suas instruções de leitura.
Evitando afugentar o leitor, a apresentação da obra traduzida por Estela
Canto dizia que a leitura podia "começar pelo 10º capítulo --o autor não previu
assim, porém é um método possível -- e retomar seu começo ao concluir a obra,
para presenciar o feérico desfile dos insólitos festejos em
Ponukelé".Antecipador das vanguardas sem querer sê-lo, Roussel se via como um
clássico e certamente não simpatizaria com a ideia.
Filho de um investidor na bolsa de valores e de uma mãe de origem burguesa
cuja excentricidade parecer ter herdado --em suas viagens, a precavida
Marguerite Moreau-Chaslon levava seu caixão, para o caso de qualquer
eventualidade--, Roussel passou a infância no boulevard Malesherbes, a poucas
casas de seu contemporâneo Marcel
Proust.
Com o incremento da riqueza paterna, mais tarde a família se mudou para um
hotel particular na rue de Chaillot (atual rue Quentin-Buchart) da capital
francesa. A essa altura, sob influência materna, Roussel começou a estudar piano
e a escrever poesia.
EXCITAÇÃO Ainda na juventude, Raymond Roussel sofreu a síncope que
ditaria os rumos de sua vida, quando aos 19 anos mergulhou em um profundo estado
de excitação ao escrever o romance em versos "La Doublure" (o forro).
Martial é um homem de 45 anos, de "existência bem singular". Ele vive "muito
isolado, de uma maneira que parece consideravelmente triste, mas que é
suficiente para o preencher de alegria, pois trabalha quase constantemente".
O psiquiatra frisa a regularidade que Martial se impõe, "com grande esforço e
muitas vezes com grande cansaço, para edificar grandes obras literárias".
"Essas obras literárias, cujo valor não me cabe estudar, não tiveram até aqui
nenhum êxito, não são lidas por ninguém, se deixamos de lado alguns ipoucos niciados
que se interessam por elas", observa Janet,
que classifica como "curiosa" a atitude do autor diante de sua produção: ele
"não só continua seu trabalho com uma incansável perseverança como também mantém
uma convicção absoluta e inquebrantável sobre seu incomensurável valor
artístico'".
Esse procedimento desenvolvido por Roussel mantinha parentesco com a rima.
Era, portanto, uma concepção poética e se baseava em sons e em jogos de
palavras. O escritor partia de duas frases iguais exceto por duas letras, uma na
abertura e outra ao final, e criava a narrativa entre as duas.
Fernando Scheibe, tradutor de "Locus Solus", explica o procedimento tomando
por exemplo a expressão "vou-me já", que, aponta, pode ser lida como "vou
mijar". "Aí se constrói toda uma intriga que permite que sua história comece com
alguém dizendo que vai embora e termine com alguém dizendo que vai urinar." Em
"Como Escrevi Alguns de Meus Livros", Roussel assim resume a estratégia: "Com as
duas frases encontradas, tratava-se de escrever um conto que pudesse começar
pela primeira e terminar pela segunda". A coisa se complica, porém, quando se
descobre que ele procurava utilizar apenas palavras de duplo sentido --no livro
inteiro.
Como Escrevi Alguns de Meus Livros
O tradutor Scheibe sublinha: "O essencial a observar é sua
capacidade de abrir um espaço em que a literatura fica nua. O procedimento a
preserva da psicologia. A partir de uma equação de fatos gerada na e pela
linguagem, trata-se de inventar uma resolução. Entramos, como se faz com
Mallarmé, no labirinto da linguagem ao infinito".
"Locus Solus" relata a visita de alguns convidados à vila de Martial
Canterel, que promove um passeio para exibir suas invenções, descritas em
detalhes no romance.
Para outro de seus admiradores, o escritor catalão Enrique Vila-Matas, "não é
fundamental conhecer o procedimento" para apreciar Roussel. Ele recorda que
Salvador Dalí amava voltar às obras do excêntrico francês. "Um dia, em uma
entrevista em Cadaqués, Dalí me contou que, em algumas noites, pedia a seu
secretário que lesse fragmentos de Impressions d'Afrique' e que, ao chegar ao
episódio do anão Filipo, que salpica de saliva os presentes, ele arregalava os
olhos e literalmente corria de prazer." A reação de seu empregado, conclui
Vila-Matas, permitiu ao artista ver a "genialidade absoluta do estranho
Roussel".
"Se Roussel é tão divertido, é, em parte, porque permite ao leitor participar
do livro, continuá-lo. É o segredo das grandes obras: seus leitores se apoderam
delas. Toda a rousselmania é maravilhosa, é um canto à imaginação extrema."
Como Vila-Matas, o tradutor Fabiano Barboza Viana ressalta o caráter de jogo
da literatura de Roussel. "O rousselianismo é um texto aberto, aberto como um
caderno de presença igual àquele no qual assinamos nosso nome quando vamos a
museu, para possíveis continuadores e descontinuadores que aceitam jogar esse
jogo da linguagem, como diria Wittgenstein."
IMAGINÁRIO Roussel só tinha olhos para seu imaginário pessoal, o que
se manifestava nas suas atitudes. Conta-se que, em 1920, ao saber que ele
empreenderia uma longa viagem à Índia, uma amiga pediu que lhe trouxesse o
suvenir mais raro que encontrasse. Roussel voltou trazendo um radiador.
Outra anedota diz que, depois de atravessar o Atlântico para conhecer a
África, vislumbrou o continente da escotilha do navio e, satisfeito, pediu ao
capitão que desse meia-volta. O episódio, se não é verdadeiro, ilustra bem uma
característica sobre a qual o próprio Roussel escreveu.
"Viajei muito. Principalmente em 1920-21 dei a volta ao mundo pelas Índias,
Austrália, Nova Zelândia, os arquipélagos do Pacifico, a China, o Japão e a
América. (Durante esta viagem fiz uma longa parada no Taiti, onde encontrei
ainda algumas personagens do admirável livro de Pierre Loti)", recorda o
escritor. "Eu já conhecia os principais países da Europa, o Egito e todo o norte
da África, e mais tarde visitei Constantinopla, a Ásia Menor e a Pérsia. Ora, de
todas viagens, nunca tirei nada para meus livros. Pareceu-me que a coisa merecia
ser assinalada por mostrar claramente que em mim a imaginação é tudo", conclui.
ACEITAÇÃO Admirador dos folhetins de Loti e Júlio Verne --assim como
seu sucessor Georges Perec, outro adepto de "procedimentos" literários--,
Roussel ansiava pela aceitação do público. Não à toa pagou consideráveis somas
de dinheiro a Lemerre, editor de obras populares, além de adaptar seus romances
ao teatro com idêntica finalidade. Essas dispendiosas adaptações, entre outras
gastanças, levaram-no à bancarrota.
As encenações de "Impressions d'Afrique" e de "Locus Solus" foram rejeitadas,
quando não ridicularizadas pela audiência. Insatisfeito, Roussel produziu, em
1925, "L'Étoile au Front" (a estrela na testa) e, dois anos mais tarde, "La
Poussière de Soleils" (a poeira de sóis) --dois textos escritos para teatro, que
serviram ao menos para que angariasse a adesão dos jovens surrealistas.
André Breton, Robert Desnos, Louis Aragon e Michel Leiris promoveram
selvagens batalhas na plateia, em defesa daquele que elegeram como "o presidente
da república dos sonhos". Raymond Roussel, porém, não lhes deu muita pelota:
ironicamente, não entendia seus livros.
Depois de fracassar no teatro, retomou a poesia na qual havia iniciado sua
carreira literária. Escreveu "Nouvelles Impressions d'Afrique" (novas impressões
da África, 1932), obra-prima em verso analisada por Leiris "como uma
transposição da técnica de múltiplos episódios de suas histórias ao patamar da
poesia".
Na opinião de outro rousseliano dos dias atuais, o norte-americano John
Ashbery, Raymond Roussel "é o único poeta francês moderno cujos experimentos com
a linguagem podem ser comparados aos de Stéphane Mallarmé".
Enquanto seu ídolo Júlio Verne encontrou na ciência a redenção de uma obra
inicialmente débil, Raymond Roussel parecia ter como musa os esforços por matar
o tempo. Criou, assim, uma obra literária
totalmente aberta meio século antes que ela pudesse ser compreendida --ou mesmo
lida.
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