Por: Claudine Haroche
Diretora de Pesquisas do CNRS; Membro do Cetsah (Centro de Estudos Interdisciplinares: Sociologia, Antropologia e História), na École d'Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris. 85 rue d'Assas, Paris 75006. clharoche@aol.com
Fonte: (Ágora (Rio J.) vol.7 no.2 Rio de
Janeiro July/Dec. 2004)
RESUMO
RESUMO
A fluidez das sociedades contemporâneas, intrinsecamente destituídas de limites, provoca modificações das estruturas, suscetíveis de colocar em causa a possibilidade mesma de estruturação, até mesmo da existência do eu. Indaga-se, aqui, se as maneiras – mais fundamentalmente a capacidade de sentir –, declinaram "em se sentir", separadas doravante do fato de experimentar sentimentos, não seriam agora sinônimo de sensação.
Palavras-chave: Indivíduo, sentido, sentimento.
"Quando nos preocupamos, como eu há meio século, com o problema da relação entre indivíduo e sociedade, revela-se de forma evidente que esta relação não é fixa." (N. ELIAS, La société des individus )
Em 1938, Mauss publica "Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa, a noção de 'eu'", texto fundador, que foi lido, comentado e criticado e fomentou numerosos outros escritos.1
Marcel Mauss
Interessado na história social da "noção de pessoa e da noção
de eu", Mauss formulou o problema em toda sua extensão, mas de forma muitas
vezes imprecisa, intuitiva – será criticado por isso –, e profundamente
estimulante.
Escreve:
"Desculpem-me se, resumindo certo número de pesquisas pessoais e inúmeras opiniões de que podemos traçar a história, adianto mais idéias do que provas [...]. É evidente, sobretudo para nós, que jamais existiu um ser humano que não tenha tido o sentido não apenas do seu corpo, mas também de sua individualidade ao mesmo tempo espiritual e corporal." (MAUSS, 1950/1983, p.359)2
Mauss afirma que "a noção de pessoa, longe de ser uma idéia
primordial, inata e claramente inscrita [...] no mais profundo de nosso ser,
[...] é ainda hoje imprecisa, necessitando de maior elaboração, [que] ela se
constrói lentamente, se clarificando, se especificando, se identificando com o
conhecimento de si, com a consciência psicológica [...]" E prossegue, formulando
um questionamento extremamente contemporâneo: "Quem sabe se esta 'categoria' que
todos acreditamos fundada será sempre reconhecida como tal?" (1950, p.359/362).
Uma observação preliminar: neste texto não distinguiremos o eu das noções de pessoa, personalidade, caráter, indivíduo, individualidade. Todos estes termos referem-se a um mesmo campo paradigmático, relativamente impreciso e movediço, conforme encontramos em vários autores, por exemplo (para citar apenas alguns) em Mauss (1950/1983), Durkheim (1894/1988), Simmel (1908/1999) ou Elias (1987/1991).3
O que interessa aqui é a existência de um desengajamento, fato sublinhado de forma reiterada em relação às sociedades contemporâneas: levanto a hipótese de que este desengajamento – este descompromisso resultante das sensações contínuas exercidas sobre o eu – influencia profundamente e de maneira insidiosa as relações entre sensação, percepção, consciência, reflexão e sentimentos, levando ao esmaecimento das fronteiras entre objetos materiais reais e imagens virtuais. Desengajamento este que toca os limites do eu,4 com efeitos sobre as maneiras de sentir e sobretudo sobre a capacidade mesma de sentir.5
As sociedades contemporâneas, sob o impacto da globalização, tendem a se tornar sociedades que se transformam de maneira contínua, sociedades flexíveis, sem fronteiras e sem limites, sociedades fluidas, sociedades líquidas. Essas condições têm conseqüências sobre os traços de personalidade que estimulam, desde os mais contingentes e superficiais aos mais profundos, os tipos de personalidade que permitem sejam desenvolvidos, e mesmo encorajados, e finalmente sobre a natureza das relações entre os indivíduos.6
A fluidez intrinsecamente destituída de limites acarreta
modificações nas estruturas, sendo suscetível de colocar em questão a
possibilidade de estruturação e mesmo de existência do eu.7
Pode-se pensar imerso na fluidez, sob a pressão permanente e
ininterrupta do fluxo? O indivíduo hipermoderno pode, privado de tempo, da
duração exigida pelos sentimentos, experimentar outra coisa além de sensações?
Pretendo aqui discutir certos traços de personalidade do
indivíduo contemporâneo – ligados e mesmo atribuídos à flexibilidade e à fluidez
– através das maneiras de ser, de se comportar e, também, ainda que esta seja
uma questão problemática, das maneiras de sentir, de exprimir e da capacidade
mesma de vivenciar sentimentos.8
Retomo, nessa perspectiva, uma hipótese conjetural difícil de
discutir, aquela que Lasch (1979/2000), entre outros, que fala do declínio dos
sentimentos, de uma dificuldade e, mesmo, de uma relativa incapacidade de
experimentar sentimentos nas formas extremas de individualismo, nas sociedades
narcisistas.
Christopher
Lasch
É oportuno, portanto, que nos detenhamos tanto nos escritos
de Durkheim como nos de Simmel para recolocar questões que dizem respeito às
categorias, às classificações, às próprias condições de observação nas
sociedades contemporâneas: essas sociedades conhecem uma sobreposição de
referências, uma tendência à confusão, ao esmaecimento das fronteiras do íntimo,
do privado e do público e, de maneira geral, uma psicologização das relações
(HAROCHE, 2001).
Durkheim, ao estabelecer que "a condição de toda objetividade é a existência de um ponto de referência, constante e idêntico, ao qual a representação pode ser reportada e que permite eliminar tudo o que ela tem de variável, partindo do subjetivo" (1894/1988, p.137), nos deixa apreender a extraordinária dificuldade das condições de observação das sociedades contemporâneas: o variável, que era para Durkheim próprio da subjetividade, tornou-se uma dimensão específica das sociedades contemporâneas em seu conjunto. A variabilidade confunde-se, hoje, com a flexibilidade, levando pouco a pouco à fluidez.
Mas, quando Durkheim enuncia as condições liminares, indispensáveis à observação, nos possibilita compreender que, face à aceleração e fluidez dos mecanismos nas sociedades contemporâneas, a possibilidade mesma de observação é colocada em causa: "se os únicos pontos de referência dados são eles mesmos variáveis – escreve –, se são continuamente diversos em relação a si mesmos, toda medida comum está ausente e não temos nenhum meio de distinguir em nossas impressões o que depende do exterior e o que vem de nós" (1894/1988, p.137).
Preocupado com o equilíbrio nós-eu, com a interação e com o sentimento 'do eu' que aí se exprime, Simmel (1908/1999) coloca, ao descrever os processos presentes na modernidade, um conjunto de questões desenvolvidas igualmente por Elias e Fromm. Percebendo na fluidez um estado estrutural fundamental, mas algo limitado, um estado comensurável, Simmel nos permite entender alguns dos elementos essenciais dos processos em ação na fluidez ulterior das sociedades contemporâneas. Reconhece a existência de uma imprecisão das interações devido ao seu caráter intrinsecamente instável. Coloca que as interações oscilam entre a continuidade e a descontinuidade, a certeza e a incerteza e, através do conceito de interação, questiona a suposta nitidez presente na fronteira entre indivíduo e sociedade. Simmel (1908/1999) releva o movimento incessante, a mobilidade permanente, restritos à esfera do indivíduo, anunciando assim as questões mais atuais das sociedades contemporâneas: as que se referem aos limites, às fronteiras, às capacidades e atributos, aos traços característicos do indivíduo.
Valendo-se da noção de interação, Simmel (1908/1999) enfatiza
algo de essencial no que se refere ao vínculo social, sua permanência ou
declínio, e também quanto os modelos de comportamento, a forma como se
estruturam e influenciam os sentimentos. Sublinha aquilo com que os sociólogos
pouco se preocuparam: a natureza, a fraqueza ou intensidade dos vínculos, a
qualidade das interações, apontando que ela é função da duração: é a duração que
permite medir sua qualidade.9
Simmel (1998) toma o exemplo da fidelidade, vendo-a mais como um efeito dos modos de vida, das maneiras de ser do que como a conseqüência de elementos originais e indizíveis: assim nos leva a concluir que são os comportamentos que, por seu turno, provocam os sentimentos.10
Necessário se faz, portanto, pensar o que acontece com a qualidade das interações quando a flexibilidade e a fluidez dos sistemas econômicos contemporâneos impõem o imediatismo, o instantâneo nas relações, deixando de lado a eventualidade a até a capacidade de engajamento e de inscrição no tempo.11
No final dos anos 1980, Elias resume e formula com concisão extrema todo um conjunto de itens antes abordado por Mauss e por Simmel e que permanece problemático: a questão do equilíbrio nós-eu, da pertença, dos vínculos entre comunidade e sociedade, da alternância entre os processos de integração e de desintegração, a questão da instabilidade. Sintetiza os questionamentos atuais sobre a gênese e a definição problemática de indivíduo, percebendo alguns dos problemas maiores da contemporaneidade. Reiteradamente insiste na necessidade de se superar a idéia de uma oposição entre "indivíduo" e "sociedade".
Escreve: "Neste século XX, tudo leva a pensar que não se trata
de um problema pontual e individual, mas [...] de um traço fundamental da
estrutura da personalidade social dos indivíduos da época mais recente."
Acrescentando: "...a tônica do vínculo modificou-se de forma decisiva com a
modificação estrutural mais profunda da relação do indivíduo com todas as formas
de grupo sociais" (ELIAS, 1987/1991, p.208, 261, 262, 263),
Elias retraça e explica a gênese, as origens de uma insegurança
psíquica profunda, seus efeitos sobre as estruturas da personalidade social dos
indivíduos. Insiste sobre a auto-reflexividade contínua, que nasce das relações
não permanentes, "a grande variabilidade das relações entre os indivíduos", o
que "os força constantemente [...] a um exame de suas relações que é ao mesmo
tempo um exame de si mesmo" (ELIAS, 1987/1991, p.264). Traz à tona os processos,
as estruturas, mas também os efeitos psicológicos que provocam.
Em Fear of freedom (O medo à liberdade), Fromm (1972) se
debruça precisamente sobre estes efeitos psicológicos, elaborando reflexões que
permanecem decisivas sobre os traços de personalidade, de caráter, os modelos de
comportamento encorajados por um tipo específico de sociedade. (FROMM, 1994).12
Enquanto Elias (1987/1991) preocupa-se essencialmente com o domínio e controle dos afetos, Fromm, ao focar os processos subjacentes na emergência do indivíduo, situa-se de certa forma como pioneiro: sua atenção se volta para a gênese desses afetos – a dúvida, o medo, a ansiedade e o declínio concomitante da espontaneidade dos vínculos.
Posto que a personalidade autoritária é fortemente integrada,
são os processos presentes nas estruturas da personalidade autoritária – mais do
que os traços de personalidade respectivos – que podem contribuir para a
compreensão do indivíduo contemporâneo. A personalidade autoritária, assim como
a personalidade contemporânea, ameaça a idéia de individualidade, a autonomia, a
singularidade, o não-conformismo e mesmo a própria idéia de personalidade.
Lembrando que a estrutura da sociedade e da personalidade modifica-se profundamente no final da Idade Média, Fromm enfatiza que o indivíduo se libertou dos vínculos pessoais tradicionais de indivíduo a indivíduo: esta emancipação afetará de modo radical a estrutura do caráter.
Fromm (1941/1994) traz assim à tona os processos que levam ao
isolamento e à impotência do indivíduo, a falta de proteção das condições novas
que provoca efeitos psicológicos maiores: a liberdade do indivíduo faz nascer a
dúvida, a incerteza, um sentimento de impotência e de insegurança; esta
autonomia acompanha a emergência de um sentimento problemático, complexo e que é
fonte de angústia, o sentimento do eu, o medo de perder o eu.13
Fromm insiste, então, sobre a importância decisiva de se compreender a questão da dúvida, da incerteza, e também os tipos de respostas que lhe foram dadas. O autoritarismo constitui um dos dois mecanismos psíquicos através do qual o homem procura escapar do isolamento e do sentimento de impotência, de confusão engendrados pelo mundo moderno. O outro modo de reação constitui o que Fromm chama de "conformismo compulsivo", que evita o autoritarismo. Ele observa que é o "conformista" e não o autoritário quem tem condições de responder às necessidades das sociedades industriais avançadas (FROMM, 1941/1994).
Este conformismo, em nosso ponto de vista, ainda que interiorizando o autoritarismo sob formas particularmente insidiosas, pode muito bem integrar o movimento e a atividade incessante e compulsiva, encarnando-se nos tipos de personalidade contemporâneos.
Alguns trabalhos recentes – consagrados sobretudo à família, às telas, à Internet, ao trabalho, à psicologia contemporânea e, de maneira mais geral, aos efeitos do mercado e da globalização sobre o indivíduo – centraram-se na questão do eu, do indivíduo, da personalidade, do caráter contemporâneo: Lasch (1979/2000 e 1984), Turckle (1995), assim como Castel (2001), Haroche (2003), Enriquez (1991, 2002), Sennet (1998, 2000), Bauman (1999, 2001), Gauchet (1998) e Kauffman (2001, 2002, 2003) interessaram-se pela personalidade contemporânea, pela maneira de ser um indivíduo nas formas extremas do individualismo contemporâneo. Atentos a diferentes dimensões, eles se detiveram sobre os traços de comportamento e de caráter específicos, tais como a indiferença, o desinteresse, o desengajamento, a falta de elã, a ausência de espontaneidade, o cálculo permanente, a instrumentalização de si e do outro, os comportamentos fugidios, o desvencilhar-se.
Lasch (1979/2000) atribui as modificações conhecidas pelo indivíduo contemporâneo à evolução da família. A família burguesa, observa, citando Horkheimer (1972), "tinha como função fabricar um certo tipo de personalidade, um tipo de caráter autoritário" (LASCH, 1979/2000, p.91), mas hoje a família educa, constrói um tipo de personalidade radicalmente diferente, um tipo de personalidade descomprometida, adaptada à flexibilidade, sem engajamento com a duração. Lasch sublinha que os pais se abstêm hoje em dia de inculcar em seus filhos preceitos e normas inúteis em um mundo em constante transformação; a família, portanto, forma o indivíduo para vínculos que não engajem: "a flexibilidade na educação tornou-se uma necessidade absoluta" (1979/2000, p.134-141).
Sherry Turckle (1995), em trabalhos que incidem sobre os efeitos produzidos na identidade pela presença contínua das telas, interessou-se pela flexibilidade e a fragmentação do eu. Chama a atenção para a profunda evolução ocorrida entre o período em que falávamos de "forjar a personalidade", considerada como um todo, e o presente, quando não cessamos de construir e reconstruir identidades múltiplas, o que leva a um tipo de personalidade flexível. Corroborando, de certa maneira, o que dizia Lasch, Turckle enfatiza aquilo sobre o qual insistirá também Sennet: "a estabilidade era outrora social e culturalmente valorizada (...). O que é agora decisivo é a flexibilidade, a capacidade de adaptação e de mudança", privilegiadas em detrimento da estabilidade, considerada como rígida (TURCKLE, 1995, p.255).
Estudando a questão do trabalho, Sennet percebe uma "erosão
do caráter" que leva à flexibilidade do sistema. Vê na idéia de "carreira",
atualmente abandonada em proveito do job, a encarnação desta flexibilidade.
Sennet lembra, então, que no inglês do século XIV "um job era um fragmento ou um
pedaço de qualquer coisa", o que é traduzido no presente pelo caráter
descontínuo, a atividade fragmentada e fracionada – psiquicamente fragmentária –
do trabalho" (SENNET, 1998).14
Sennet se questiona sobre como "preservar aquilo que tem um
valor durável em uma sociedade [...] que se interessa apenas pelo imediato?"
(1998, p.11). Interroga-se, também, quanto a "como cultivar engajamentos a longo
termo no seio de instituições que são constantemente deslocadas ou perpetuamente
reelaboradas?" (1998, p.11). O fluxo contínuo, provocando efeitos de alienação
profunda e destruição do eu, leva Sennet a insistir sobre a necessidade de se
"salvar o sentimento de si do fluxo sensorial" (1998, p.61).15
Gauchet (1992), desenvolvendo trabalhos próximos aos de Lasch
e Sennet e vendo no "desengajamento da pessoa" um fenômeno inédito, esboçou um
quadro de conjunto da psicologia contemporânea, no qual observa o
desaparecimento da distância na relação com o outro e na relação consigo mesmo,
uma "aderência a si", que se transforma em traço característico da personalidade
contemporânea. Desenha, então, um modelo de personalidade paradoxalmente
irrefletida e imersa na auto-reflexividade permanente, na qual "ser eu mesmo"
não significa mais "saber o que leva a agir com vontade e liberdade interior",
não é estar paralisado mas poder movimentar-se, deslocar-se constantemente
(GAUCHET, 1992, p.177).
O movimento contínuo entrava a possibilidade de reflexão, a
eventualidade de uma hesitação, a possibilidade de distanciamento, os processos
de elaboração das percepções a partir das sensações. A personalidade
hipermoderna aparece como sendo sem engajamentos – o indivíduo está "ligado, mas
distante". Experimenta "a necessidade da presença dos outros, mas afastado
desses outros" (GAUCHET, 1992, p.179), abstratos, inconsistentes, permutáveis,
inexistentes. Sem continuidade, sem aspirações afirmadas na duração,
desengajado, o indivíduo hipermoderno, "na aderência a si" e no deslocamento
incessante, consegue ser ele mesmo apenas "na medida que pode se desprender de
todo modelo ou adesão qualquer que seja" (p.179). Ele se comunica ou se vincula
apenas sob o modo da prudência, do controle de si, da dominação: "ele se afirma
não ao se comprometer", observa ainda, "mas ao se destacar" (GAUCHET, 1992,
p.172).16
Bauman (2001) vai enfatizar, em termos similares, um desengajamento análogo nos comportamentos, vendo na mobilidade, no deslocamento incessante, a quintessência do poder nas sociedades contemporâneas.
Z. Baumann
Descrevendo a atmosfera do funcionário e seu modo de vida, o
trabalho, a cidade, Bauman percebe que "nada permanece parecido, imutável,
durante muito tempo, nada dura o suficiente para se tornar familiar, acolhedor e
tranqüilo" (BAUMAN, 2001, p.46), nada responde às aspirações de vínculo e à
necessidade de pertencimento. As lojas desaparecem, os rostos atrás dos balcões
não cessam de mudar. Em resumo, observa Bauman, esmaece, desaparece "tudo o que
é contínuo, estável e sólido [...] o que sugeria a existência de um quadro
social durável, seguro, pacífico e pacificador. Esmaece, ainda, a certeza de
poder se rever regularmente, com freqüência e durante muito tempo" (BAUMAN,
2001, p.47).
Todas essas observações constituem, pode-se dizer, "os fundamentos epistemológicos da experiência da comunidade. Ficamos tentados a dizer de uma comunidade estreitamente unida" (BAUMAN, 2001, p.47). É tal experiência que agora faz falta, é sua ausência que explica o declínio da comunidade: a falta de expectativas, de elãs; os vínculos da comunidade tornaram-se pouco a pouco consumíveis, "perecíveis" (2001, p.48).
Dick Pountain e David Robins pensam que o descomprometimento, o desengajamento, o frio, definem no presente o espírito do tempo. "Cool significa a capacidade de fugir, de escapar dos sentimentos, de viver em um mundo fácil, que questiona e recusa os vínculos possessivos" (BAUMAN, 2001, p.51-52).17
Os engajamentos duráveis, que constroem vínculos, em que a
individualidade é valorizada pela exigência, foram substituídos por encontros
breves, banais e intercambiáveis, encontros em que as relações começam tão
rápido quanto terminam.
Os vínculos são mais frágeis e efêmeros. Hoje, o estar junto tende a ser breve, de curta duração e desprovido de projetos: o desengajamento aparece assim como um novo modo de poder e dominação. O comportamento das elites aparece imediata e fundamentalmente como "a capacidade de escapar da comunidade" (BAUMAN, 2001, p.57).
Em artigo recente, Dany Robert Dufour (2003) chama a atenção
para a existência de uma estupefação profunda e mesmo de um niilismo, explicados
pela aceleração da difusão do modelo de mercado. Ao descrever os processos
presentes no niilismo contemporâneo que respondem a imperativos econômicos
funcionais, Dufour esclarece as razões da fluidez fundamental das sociedades de
mercado contemporâneas, quando se necessita de "tudo menos do que se possa
entravar a circulação das mercadorias" (2003, 168), assim como seus efeitos
psicológicos sobre o indivíduo, "efeitos desestruturantes que provocam uma
profunda redefinição da forma moderna do sujeito" (2003, p.163).
Dufour afirma que o mercado esforça-se em suprimir as
resistências do sujeito, as hesitações, as indecisões, as reflexões: "o mercado
acomoda-se mal com um traço específico da forma sujeito", observa, "o
livre-arbítrio crítico que leva, com efeito, a discutir tudo, a constantemente
retardar a decisão de compra". O mercado procura "suprimir os vínculos, os elos,
os sentimentos que não podem ser convertidos em valores mercantis": o mercado
procura, assim, estimular continuamente as sensações para desenvolver o consumo
e dispor, como diz Dufour, "de indivíduos definidos por nada além do que a
necessidade de consumo sempre ampliada" (2003, p.170).18
Lasch falou do "porto" que significa a família para os
indivíduos isolados em um mundo indiferente, sem coração, um mundo duro e frio.
Elias, de forma mais genérica, discutiu a "necessidade elementar de calor direto
e de espontaneidade que todo indivíduo experimenta e suas relações com os
outros".19
Ora, a fluidez isola, entrava e evita os vínculos, os elos e
os elãs: tende a produzir vínculos formais e superficiais, um falso vínculo e,
até mesmo, a ausência de vínculo; ela se acompanha do medo do vínculo, dos
outros.20
Penso ser relevante, então, que nos interroguemos sobre a
imbricação, o papel respectivo das sensações e dos sentimentos no indivíduo
contemporâneo; é importante que retomemos os questionamentos gerais presentes em
trabalhos seminais, tanto em filosofia política e sociologia quanto em
psicologia social: obras que questionaram a maneira como exprimimos os
sentimentos, os momentos, a qualidade e a natureza daquilo que exprimimos e,
também, daquilo que – deliberada ou involuntariamente – não exprimimos, aquilo
que calamos ou recalcamos de maneira permanente e, além disso, obras que
pensaram sobre a ausência e mesmo a incapacidade de vivenciar sentimentos
espontâneos.21
Mauss, em texto de 1921 dedicado à "expressão obrigatória dos
sentimentos", esboçou questões que se colocam hoje com insistência. Urge que o
retomemos, pois sua leitura permite repensar a questão da pessoa e as maneiras
de ser e de sentir do indivíduo contemporâneo (1950/1983).22
Observava então Mauss:
"Toda espécie de expressão oral dos sentimentos [...] é em
essência não um fenômeno exclusivamente psicológico, ou fisiológico, mas
fenômenos sociais, marcados eminentemente pelo signo da não espontaneidade e da
mais perfeita obrigação" (1950/1983, p.269). Se Mauss admitia que os ritos mais
simples que estudara "não têm um caráter completamente público e social",
notava, no entanto, que "lhes falta em alto grau todo caráter de expressão
individual do sentimento experimentado de forma puramente individual"
(1950/1983, p.272).
Afastando a questão da espontaneidade individual, Mauss
abordou os sentimentos através de modelos, de rituais, da ritualização dos
sentimentos, sublinhando que "é preciso que eles sejam ditos, mas se é preciso
dizê-los é porque todo o grupo os compreende" (1950/1983, p.277). Insistiu,
assim, que "fazemos, portanto, mais do que manifestar nossos sentimentos, nós os
manifestamos aos outros, pois é preciso manifestá-los. Manifestamos a nós mesmos
exprimindo-os aos outros e em virtude dos outros" (1950/1983, p.278). Este é o
sentido que apreendeu das convenções e regularidades que despertavam sua
atenção.
Faz-se necessário agora abordar o estudo dos sentimentos pelo
viés da relação ao tempo e buscar pensar as duas dimensões presentes na
ritualização dos sentimentos: a ausência de duração e a ausência de sentido. A
falta de tempo precede atualmente a expressão dos sentimentos? Fato
desconcertante para nossa maneira de conceber os sentimentos como pertencendo à
esfera do irracional e mesmo do indizível: a inteligibilidade, a perda do
sentido na relação consigo e com o outro revela um entrave, um declínio e mesmo
uma incapacidade não tanto de exprimir sentimentos, mas de experimentá-los, de
senti-los?
Pode-se conceber e imaginar uma sociedade sem afetos, sem
sentimentos; não se pode concebê-la sem rituais discerníveis, inteligíveis,
reconhecidos.
A capacidade de sentir estaria declinando nas formas extremas
de individualismo? A ininteligibilidade provocada pelas sensações contínuas
teria ao mesmo tempo afastado a expressão dos sentimentos em relação aos outros
e a si mesmo, a capacidade de vivenciar sentimentos? O sentir tenderia hoje a se
atrelar e a se confundir com a sensação, o fluxo? Sentir pode ainda ser
considerado como sendo da ordem do sentido e do sentimento inscrito na duração?
São questões que, de meu ponto de vista, se situam no cerne da problemática do
indivíduo hipermoderno
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