domingo, 24 de novembro de 2013

Ford de Bigode, por John Dos Passos


 
''O homem do automóvel Sr. Ford'', escreveu o articulista em 1900.
 
O Sr. Ford começou por dar três ou quatro fortes puxões em seu corcel, com a alavanca do lado direito do assento; isto é, puxou com força a alavanca para cima e para baixo, a fim de, como disse, misturar ar e gasolina e dirigir a carga para dentro do cilindro de explosão... O Sr. Ford virou o pequeno cabo de um comutador elétrico e seguiu-se um puf puf puf... o puf puf atingiu um tom mais alto... A máquina voava a cerca de treze quilômetros por hora. A estrada tinha buracos fundos mas a máquina naturalmente rodava numa maciez de sonho. Não se sentia nenhum dos solavancos comuns mesmo num vapor... A essa altura havia-se chegado ao bulevar, e o homem do automóvel, deixando cair um pouco uma alavanca, soltou-a. Zás! A máquina ganhou velocidade com infinita rapidez. Enquanto corria, ouvia-se um chocalhar atrás, o novo barulho do automóvel.

Durante vinte anos ou mais,
desde que deixara a fazenda do pai aos dezesseis anos para pegar um emprego numa fábrica de máquinas em Detroit, Henry Ford fora maluco por maquinaria. Primeiro foram relógios, depois desenhou um trator a vapor, depois construiu uma carruagem sem cavalos com um motor adaptado de uma máquina Otto a gás, sobre a qual lera em O Mundo da Ciência, depois uma charrete mecânica com um motor de um cilindro e quatro ciclos, que andava para frente mas não para trás;
finalmente, em noventa e oito, sentiu que já avançara o bastante para largar o emprego na Detroit Edison Company, onde ascendera de foguista noturno á engenheiro-chefe, e dedicar todo o seu tempo ao trabalho num novo motor a gasolina
(em fins da década de oitenta conhecera Edison numa reunião dos funcionários da empresa de iluminação elétrica de Atlantic City. Aproximara-se de Edison, quando ele acabara seu discurso, e perguntara-lhe se a gasolina era prática como combustível de motor. Edison dissera que sim. Se Edison o dissera, era verdade. Edison foi a maior admiração da vida de Henry Ford);
e dirigir sua charrete mecânica, ali sentado junto á alavanca, vestindo elegantemente um paletó abotoado, colarinho duro e um chapéu-coco, de um lado para outro das ruas planas e mal pavimentadas de Detroit,
assustando os grandes cavalos das cervejarias, os magrelos matungos e os trotadores de ancas lisas com as altas explosões do motor,
buscando homens malucos o bastante para investir dinheiro numa fábrica de automóveis.
Era o filho mais velho de um imigrante irlandês que durante a Guerra Civil se casara com a filha de um próspero fazendeiro holandês da Pensilvânia e se instalara como fazendeiro perto de Dearbone, no condado de Wayne, Michigan;
como muitos outros americanos, o jovem Henry Ford criou-se detestando o interminável chapinhar na lama de suas tarefas, recolher e espalhar estrume, as lanternas de querosene para limpar, o tédio, o suor e a solidão da fazenda.

Era um rapazinho esguio e ativo, bom patinador, hábil com as mãos; o que gostava era de cuidar da maquinaria e deixar aos outros o trabalho pesado. A mãe dissera-lhe que não bebesse, não fumasse, não jogasse e não fizesse dívidas, e ele nunca fez nada disso.
Quando tinha vinte e poucos anos, o pai tentara traze-lo de volta de Detroit, onde ele trabalhava como mecânico na Drydock Engine Company, que fabricava máquinas para vapores, dando-lhe vinte hectares de terra.
O jovem Henry construiu ele mesmo uma casa moderna, quadrada e branca, com um falso telhado de mansarda, e instalou-se como fazendeiro;
mas mandava os empregados cuidarem da terra;
comprou um serra circular, alugou uma máquina fixa e cortava a madeira dos bosques.
Era um jovem econômico que jamais bebia nem fumava nem jogava nem cobiçava a mulher do próximo, mas não suportava viver numa fazenda.
Mudou-se para Detroit, e no galpão de tijolos atrás da casa mexeu durante anos, em suas horas de folga, numa charrete mecânica que fosse leve o bastante para andar pelas esburacadas estradas de Wayne, Michigan.
Em 1900, tinha um carro viável para vender.
Só quando ele fez quarenta anos a Ford Motor Company foi inaugurada e a produção começou a andar.
Velocidade era a primeira coisa que os primeiros fabricantes de automóveis buscavam. Corridas promoviam as marcas dos carros.
O próprio Ford bateu vários records na pista de Grosse Point e sobre o gelo do lago St. Clair. Em seu .999, fez uma milha (1.609km) em trinta e nove segundos e quatro quintos.
Mas sempre fora seu costume contratar outras pessoas para fazer o trabalho pesado. A velocidade com que se ocupava era a da produção, e os recordes, os da eficiência. Contratou Barney Oldfield, um ciclista acrobata de Salt Lake City, para correr por ele.
Henry Ford tinha idéias sobre outras coisas além de projetos de motores, carburadores, magnetos, guias e bitolas, buris e moldes; tinha idéias sobre vendas:
pois o dinheiro graúdo estava na produção econômica de grandes quantidades, no rápido escoamento, peças baratas intercambiáveis ''defácilsubstituição'' padronizadas;
só em 1909, após dez após dez anos de discussões com os sócios, Ford lançou o primeiro modelo T.
Henry Ford tinha razão.
Naquela temporada vendeu mais de dez mil Fords de Bigode, dez anos depois estava vendendo quase um milhão por ano.
Naqueles anos o Plano Taylor agitava os gerentes de fábricas e fabricantes de todo o país. Eficiência era a palavra de ordem. A mesma engenhosidade que entrava na melhoria do desempenho de uma máquina podia entrar na melhoria do desempenho dos operários que produziam a máquina.
Em 1913, estabeleceram a linha de montagem na Ford. Naquela época, os lucros foram algo em torno de vinte milhões de dólares, mas tinham problemas para manter os homens no serviço, os mecânicos pareciam não gostar da Ford.
Henry Ford tinha idéias sobre outras coisas além de produção.
Era o maior fabricante de automóveis do mundo; pagava altos salários, talvez se os trabalhadores fixos achassem que estavam recebendo uma fatia (bem pequena) dos lucros, isso desse ao pessoal qualificado um incentivo para ficar no emprego,
operários bem-remunerados podiam economizar dinheiro suficiente para comprar um Ford de Bigode, no primeiro dia em que Ford anunciou que operários americanos de cabelo cortado e bem casados tinham oportunidade de faturar cinco dólares por dia (é claro que havia certas condições; sempre havia certas condições)
juntou-se uma multidão tão enorme do lado de fora da fábrica de Highland Pak
durante toda uma noite de janeiro a zero grau
que houve um tumulto quando os portões se abriram; policiais quebraram cabeças, candidatos a emprego jogaram tijolos; destruíram-se propriedades, propriedades de Henry Ford. A segurança da empresa precisou ligar as mangueiras de incêndio para fazer recuar a multidão.
O Plano Americano; prosperidade automotiva vazando de cima para baixo; só que havia certas condições.
Mas aqueles cinco dólares por dia
pagos a operários americanos bons e limpos
que não bebiam nem fumavam cigarros nem liam nem pensavam,
e que não cometiam adultério
e cujas esposas não recebiam pensionistas,
fizeram mais uma vez da América o Yukon dos suados operários do mundo;
fizeram todos os Fords de Bigode e a era automobilística, e incidentalmente,
fizeram do homem do automóvel Henry Ford, o admirador de Edison, o amante dos pássaros,
o grande americano de sua época.

Mas Henry Ford tinha idéias sobre outras coisas além das linhas de montagem e dos hábitos de vida de seus empregados.
Vivia cheio de idéias. Em vez de ir para a cidade fazer fortuna, ali estava um garoto da roça que fizera sua fortuna levando a cidade á fazenda. Os preceitos que aprendera no McGuffey´s Reader, os preconceitos e discriminações de sua mãe, ele os preservava limpos e conservados como cédulas recém-impressas no cofre de um banco.
Queria que as pessoas conhecessem suas idéias, e por isso comprou o Dearborn Independent e iniciou uma campanha contra o consumo de cigarros.
Quando a guerra estourou na Europa, tinha suas idéias também sobre isso. (A desconfiança em relação ao pessoa do exército e á profissão de soldado fazia parte da tradição rural do Meio-Oeste, como a popupança, a perseverança e a perspicácia em questão de dinheiro.) Qualquer mecânico americano inteligente via logo que, se os europeus não fossem um bando de estrangeiros ignorantes e mal pagos, que bebiam, fumavam, tinham moral frouxa com as mulheres e eram relaxados nos hábitos de produção, talvez jamais tivesse havido guerra,
ele respondeu que sem dúvida iam contratar um navio e tirar os rapazes da tricheira até o Natal.
Contratou um vapor, o Oscar II, e encheu-o de pacifistas e assistentes sociais,
para ir lá explicar aos principecos da Europa
que o que estavam fazendo era ruim e tolo.
Não era sua culpa se o senso prático do homem comum não mais governava o mundo e se a maioria dos pacifistas era maluca,
apalermada pelas manchetes.
Quando William Jennings Bryan foi a Hoboken despedir-se dele, alguém entregou-lhe um esquilo numa gaiola; William Jennings Bryan fez um discurso com o esquilo debaixo do braço. Henry Ford jogou rosas para a multidão. A banda tocou I Didn´t Raise my Boy to Be a Soldier. Gaiatos soltaram mais esquilos. Um casal de namorados fugitivos foi casado por um pelotão de pastores no cabaré, e o Sr. Zero, o humanitário dos cortiços, que chegou ao cais tarde demais para embarcar,
mergulhou no North River e nadou atrás do navio.
O Oscar II foi descrito como um Chautauqua flutuante; Henry Ford disse que parecia uma aldeia do Meio-Oeste, mas quando alcançaram Christiansand, na Noruega, os repórteres já o tinham ridicularizado tanto que ele se intimidou e foi para a cama. O mundo era louco demais fora de Wayne, Michigan. A Sra. Ford e a administração mandaram atrás dele um deão episcopal que o trouxe para casa ás escondidas,
e os pacifistas tiveram de fazer seu discurso sem ele.
Dois anos depois Ford estava fabricando munições, lanchas Eagle; Henry Ford planejava tanques individuais, e submarinos individuais como o testado durante a Guerra Revolucionária. Anunciou á imprensa que entregaria seus lucros com a guerra ao Governo,
mas não há registro de que algum dia tenha feito isso.
Uma coisa que trouxe de volta de sua viagem
foram os Protocolos dos Sábios de Sião.
Iniciou uma campanha para esclarecer o mundo no Dearborn Independent; os judeus eram o motivo de o mundo não ser como Wayne, Michigan, nos velhos tempos dos cavalos e charretes;
os judeus tinham iniciado a guerra, o bolchevismo, o darwinismo, o marxismo, Nietzsche, as saias curtas e o batom. Estavam por trás de Wall Street e dos banqueiros internacionais, e do tráfico de escravas brancas e do cinema e da Suprema Corte e do ragtime e do comércio ilegal de bebidas.
Henry Ford denunciou os judeus e concorreu ao Senado e processou o Chicago Tribune por calúnia,
e foi motivo de chacota da imprensa metropolitana;
mas quando os banqueiros metropolitanos tentaram entrar em seus negócios,
ele se mostrou mais esperto do que todos eles.
Em 1918 fez empréstimos com promissórias para comprar a parte de seus acionistas minoritários pela ninharia de setenta e cinco milhões de dólares.
Em fevereiro de 1920 precisou de dinheiro para pagar algumas dessas promissórias que iam vencer. Supõe-se que um banqueiro o visitou e lhe ofereceu todas as facilidades, se o representante do banqueiro fosse admitido na diretoria. Henry Ford entregou o chapéu do banqueiro
e foi levantar fundos sozinhos, á sua maneira;
embarcou todos os carros e peças que tinha na fábrica para seus agentes e exigiu pagamento imediato em dinheiro. Deixar aos outros fazer os empréstimos sempre fora seu princípio básico. Fechou a produção e cancelou todas as encomendas aos fornecedores. Muitas agências se arruinaram, muitos fornecedores faliram, mas quando ele reabriu sua fábrica,
era dono absoluto dela,
como alguém é dono de uma fazenda sem hipotecas e com todos os impostos pagos.
Em 1922 teve início a campanha de Ford para a presidência (altos salários, energia elétrica, a indústria disseminada pelas pequenas cidades) habilmente minada nos bastidores
por outro filósofo de barrica,
Calvin Coolidge;
mas em 1922 Henry Ford vendeu um milhão trezentos e trinta e dois mil duzentos e nove Fords de Bigode; era o homem mais rico do mundo.
Boas estradas seguiram-se aos buracos feitos na lama pelo Modelo T. O grande surto automotivo estava em marcha. Na Ford, a produção melhorava sem parar; menos desperdício, mais cronometradores, testas-de-ferro, alcaguetes (quinze minutos para o almoço, três minutos para ir ao banheiro, por toda parte a aceleração taylorizada, ''pegaembaixo'', ajustaruela, apertaparafuso, pegaembaixoajustaruelapertaparafusoajustaembaixo, até que cada grama de vida era sugado para a produção e á noite os operários voltavam para casa como cascas cinzentas e trêmulas).
Ford tinha cada detalhe do processo, das montanhas de minério até que o carro saía no fim da linha de montagem, sob seu poder pessoal; as fábricas eram racionalizadas até o último décimo de milésimo de polegada, segundo a medição da balança Johansen;
em 1926, o cilco de produção foi reduzido para oitenta toneladas-hora no processo desde o minério na mina até o carro acabado e vendável sob seu poder pessoal,
mas o Modelo T. estava obsoleto.
A Nova Era e o Plano Americano
(havia certas condições, sempre havia certas condições)
tinham matado o Ford de Bigode.
A Ford era apenas mais uma entre muitas fábricas de automóveis.
Quando a bolha do mercado de ações estourou,
o Sr. Ford , filósofo de barrica, disse jubilante:
''Eu avisei a vocês.
Vocês merecem, por jogarem e contraírem dívidas.
O país está bem''.
Mas quando o país, de sapatos rasgados, calças puídas, cintos apertados em barrigas vazias,
mãos ociosas rachadas e fendidas com o frio daquele friíssimo dia de março de 1932,
se pôs em marcha de Detroit a Dearborn, exigindo trabalho e o Plano Americano, na Ford só se conseguiu pensar em metralhadoras.
O país estava bem, mas ceifaram os manifestantes.
Mataram quatro homens a bala.
Velho, Henry Ford
é um apaixonado antiquário
(vive sitiado na fazenda de seu pai, incrustrada numa propriedade de milhares de hectares milionários, protegido por um exército de soldados, secretários, agentes secretos, detetives sob as ordens de um ex-lutador de boxe inglês,
sempre com medo dos pés com sapatos furados nas estradas, com medo de que alguma quadrilha sequestre seus netos,
que um maluco lhe dê um tiro,
que a Mudança e os braços ociosos desempregados rompam os portões e as altas cercas;
protegido por um exército particular contra
a nova América de crianças famintas e barrigas vazias e sapatos furados batendo no chão nas filas de sopa,
que engoliu as velhas terras agrícolas econômicas de Wayne, Michigan,
como se elas nunca tivessem existido).
Velho, Henry Ford
é um apaixonado antiquário.
Reconstruiu a casa da fazenda de seu pai e a pôs de volta exatamente nas condições que lembrava da infância. Construiu uma aldeia de museus para charretes, trenós, diligências, velhos arados, rodas d´agua, modelos obsoletos de carros motorizados. Vasculhou o país em busca de rabequistas para tocarem quadrilhas antigas.
Até as velhas tabernas ele comprou e pôs de volta em sua forma original, além dos primeiros laboratórios de Thomas Edison.
Quando comprou a Wayside Inn perto de Sudbury, Massachusetts, fez com que a nova rodovia onde os novos modelos de carros passava roncando e deslizando e zunindo maciamente ( o novo barulho do automóvel)
fosse afastada da porta,
pôs de volta a velha estrada ruim,
para que tudo fosse
como era antes,
nos dias dos cavalos e charretes.

O GRANDE CAPITAL, John Dos Passos

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