Por: Peter
Pál Pelbart
Uma
constatação trivial é evocada com insistência por vários autores contemporâneos,
entre eles Giorgio Agamben, Jean-Luc Nancy, Toni Negri ou mesmo Maurice
Blanchot. A saber, de que vivemos hoje uma crise do ‘comum’.
As formas
que antes pareciam garantir aos homens um contorno comum, e asseguravam alguma
consistência ao laço social, perderam sua pregnância e entraram definitivamente
em colapso, desde a esfera dita pública, até os modos de associação consagrados,
comunitários, nacionais, ideológicos, partidários, sindicais. Perambulamos em
meio a espectros do comum: a mídia, a encenação política, os consensos
econômicos consagrados, mas igualmente as recaídas étnicas ou religiosas, a
invocação civilizatória calcada no pânico, a militarização da existência para
defender a ‘vida’ supostamente ‘comum’, ou, mais precisamente, para defender uma
forma-de-vida dita ‘comum’.
No entanto,
sabemos bem que esta ‘vida’ ou esta ‘forma-de-vida’ não é realmente ‘comum’, que
quando compartilhamos esses consensos, essas guerras, esses pânicos, esses
circos políticos, esses modos caducos de agremiação, ou mesmo esta linguagem que
fala em nosso nome, somos vítimas ou cúmplices de um seqüestro. Se de fato há
hoje um sequestro do comum, uma expropriação do comum, ou uma manipulação do
comum, sob formas consensuais, unitárias, espetacularizadas, totalizadas,
transcendentalizadas, é preciso reconhecer que, ao mesmo tempo e paradoxalmente,
tais figurações do ‘comum’ começam a aparecer finalmente naquilo que são, puro
espectro.
Num outro
contexto, Gilles Deleuze lembra que a partir sobretudo da segunda guerra
mundial, os clichês começaram a aparecer naquilo que são, meros clichês, os
clichês da relação, os clichês do amor, os clichês do povo, os clichês da
política ou da revolução, os clichês daquilo que nos liga ao mundo – e é quando
eles assim, esvaziados de sua pregnância, se revelaram como clichês, isto é,
imagens prontas, pré-fabricadas, esquemas reconhecíveis, meros decalques do
empírico, somente então pôde o pensamento liberar-se deles e abrir-se para
outras dimensões do comum.
Ora, hoje, tanto a percepção do sequestro do comum como a revelação do caráter espectral desse comum transcendentalizado se dá em condições muito específicas. A saber, precisamente num momento em que o comum, e não a sua imagem, está apto a aparecer de maneira imanente, dado o contexto produtivo atual. Trocando em miúdos: diferentemente de algumas décadas atrás, em que o comum era definido mas também vivido como aquele espaço abstrato, que conjugava as individualidades e se sobrepunha a elas, seja como espaço público ou como política, hoje o comum pode ser pensado como o espaço produtivo por excelência.
O contexto
contemporâneo trouxe à tona, de maneira inédita na história, pois no seu núcleo
propriamente econômico, a prevalência do ‘comum’. O trabalho dito imaterial, a
produção pós-fordista, o capitalismo cognitivo, todos eles são fruto da
emergência do comum: eles todos requisitam faculdades vinculadas ao que nos é
mais comum, a saber a linguagem, e seu feixe correlato, a inteligência, os
saberes, a cognição, a memória, a imaginação, e por conseguinte a inventividade
comum. Mas também requisitos subjetivos vinculados à linguagem, tais como a
capacidade de comunicar, de relacionar-se, de associar, de cooperar, de
compartilhar a memória, de forjar novas conexões e fazer proliferar as redes.
Nesse
contexto de um capitalismo em rede ou conexionista, que alguns até chamam de
rizomático, pelo menos idealmente aquilo que é comum é posto para trabalhar em
comum. Nem poderia ser diferente: afinal, o que seria uma linguagem privada? O
que viria a ser uma conexão solipsista? Que sentido teria um saber
exclusivamente autoreferido? Pôr em comum o que é comum, colocar para circular o
que já é patrimônio de todos, fazer proliferar o que está em todos e por toda
parte, seja isto a linguagem, a vida, a inventividade. Mas essa dinâmica assim
descrita só parcialmente corresponde ao que de fato acontece, já que ela se faz
acompanhar pela expropriação do comum, privatização, cristalização do comum,
empreendida pelas diversas empresas, máfias, estados, instituições, com
finalidades que o capitalismo biopolítico não pode dissimular, mesmo em suas
versões mais rizomáticas.
Livre uso
A partir desse panorama por demais geral, caberia acompanhar o modo em que Agamben ao mesmo tempo compartilha e bifurca dessa abordagem, imprimindo aí a sua marca inconfundível. Partamos de Heráclito, que poderia servir de epígrafe a esse tema: Para os despertos um mundo único e comum é, mas aos que estão no leito cada um se revira para o seu próprio. Ora, o Comum para Heráclito era o Logos. A expropriação do Comum numa sociedade do espetáculo é a expropriação da linguagem. Quando toda a linguagem é sequestrada por um regime democrático-espetacular, e a linguagem se autonomiza numa esfera separada, de modo tal que ela já não revela nada e ninguém se enraiza nela, quando a comunicatividade, aquilo que garantia o comum, fica exposta ao máximo e entrava a própria comunicação (1), atingimos um ponto extremo do niilismo. Mas a essa avaliação lapidar, que mais adiante tentaremos aprofundar, Agamben parece acrescentar um contraponto surpreendente. Se na sociedade do espetáculo nossa natureza linguística avança em direção a nós como que de costas, esse mesmo espetáculo carrega uma possibilidade positiva, a ser revirada contra ele, a saber, a possibilidade mesma desse bem comum.
"A época que nós vivemos é com efeito também a primeira onde
pela primeira vez torna-se possível para os homens fazer a experiência de sua
essência linguística mesma – não de tal ou qual conteúdo de linguagem, de tal ou
qual proposição verdadeira, mas do fato mesmo que se fala." (2)
Ora, do que se trata, mais precisamente? Do acontecimento de
linguagem, dessa experiência que concerne a matéria mesma do pensamento, a
potência do pensamento, o intelecto, a liberdade. Para que tal possibilidade
apareça em toda sua amplitude, não cabe pensar em termos dialéticos de uma
reapropriação disso que foi expropriado, pois a linguagem não pode ser
reapropriada, como se fosse um objeto roubado a ser reavido, é preciso pensar
esse gesto em outros termos, a saber, a possibilidade e as modalidades de um
livre uso da linguagem. Não subordiná-la a qualquer fim mais elevado, mesmo que
seja a comunicação, como querem algumas filosofias recentes, não fazer dela um
meio para uma finalidade outra – mas fazer a experiência política do
ser-na-linguagem como "medialidade pura", o "ser-num-meio" como condição
genérica irredutível dos homens. Trata-se de tornar visível esse meio enquanto
tal, como um campo de ação e de pensamento.
O Comum seria precisamente esse "algo" inapropriável, que não
pode ser pensado em termos de próprio ou impróprio, de apropriação ou
expropriação, mas somente em termos de uso livre, de modo que o problema
político essencial, segundo Agamben, se tornaria: Como fazer uso de um Comum? É
com estas palavras que ele termina seu livro Moyens sans fin:
"Apenas se conseguirem articular o lugar, os modos e os
sentidos dessa experiência do acontecimento da linguagem como uso livre do Comum
e como esfera dos puros meios, as novas categorias do pensamento político - quer
se trate da "comunidade inoperante", de "comparution", de "igualdade", de
"fidelidade", de "intelectualidade de massa", de "povo por vir, de
"singularidade qualquer" – poderão dar uma forma à matéria política que está
diante de nós" (3).
Ora, há algumas indicações esparsas daquilo que Agamben entende por uso livre da língua, e mesmo de uma língua pura, como dizia Benjamin, irredutível a uma gramática e a uma língua particular, ou como Wittgenstein, quando se refere à experiência da pura existência da linguagem. Por vezes tem-se a impressão que Agamben tenta pensar a linguagem desvinculando-a de sua associação histórica com o Estado, assim como se trata de desvincular a vida do direito.
Como diz ele numa entrevista, onde resume parte da direção do
seu pensamento nos últimos anos: "O que está realmente em questão é, na verdade,
a possibilidade de uma ação humana que se situe fora de toda relação com o
direito, ação que não ponha, que não execute ou que não transgrida simplesmente
o direito.
Trata-se do que os franciscanos tinham em mente quando, em
sua luta contra a hierarquia eclesiástica, reivindicavam a possibilidade de um
uso de coisas que nunca advém direito, que nunca advém propriedade. E talvez
‘política’ seja o nome desta dimensão que se abre a partir de tal perspectiva, o
nome de livre uso do mundo. Mas tal uso não é algo como uma condição natural
originária que se trata de restaurar. Ela está mais perto de algo de novo, algo
que é resultado de um corpo-a-corpo com os dispositivos do poder que procuram
subjetivar, no direito, as ações humanas. Por isto, tenho trabalhado
recentemente sobre o conceito de ‘profanação’, que, no direito romano, indicava
o ato por meio do qual o que havia sido separado na esfera da religião e do
sagrado voltava a ser restituído ao livre uso do homem”(4).
Infância
É possível que se deva ler sua reflexão sobre a linguagem nesse mesmo diapasão, e até de sua obra como um todo, na direção desse uso livre que se explicita agora. No prefácio à edição francesa de Enfance et Histoire, ele lembra: "Nos meus livros publicados, assim como naqueles que eu não escrevi, vem à luz uma única reflexão obstinada: o que significa "há linguagem", o que significa "eu falo"?" E Agamben se refere então à pura exterioridade da linguagem, esse "desdobramento da linguagem em seu ser bruto" que Foucault abordava quando aludia à contribuição de Blanchot a um pensamento do fora. Ele insiste em que todo autor num certo momento de seu trajeto se depara com esse experimentum, que não consiste em recuar para aquela esfera do indizível em que as palavras nos faltam ou se quebram em nossos lábios, como diria Heidegger, porém aponta numa outra direção, a da infância (5).
A infância não é algo que se deveria buscar antes da
linguagem e independente dela, numa realidade psíquica primeva da qual a
linguagem seria a expressão. É inconcebível um sujeito pré-linguístico, visto
ser a linguagem o lugar incontornável de constituição do sujeito. Se a infância
não é um paraíso do qual teríamos sido definitivamente expulsos ao nos tornarmos
falantes, é porque a infância coexiste com a linguagem, ela se constitui através
de um de seus movimentos que a expulsa para produzir a cada vez o homem enquanto
sujeito (6).
Um pouco como a raiz indo-européia, que serve como indicativo
de origem mas que é presente e continuamente operante, língua nunca falada mas
não menos real, e que garante a inteligibilidade da história linguística. Não se
trata de uma origem localizável num segmento anterior do tempo, mas algo que não
cessa de advir. É o que Agamben chama de história transcendental, limite e
estrutura a priori de todo conhecimento histórico. Ora, o autor parece dar um
estatuto similar à infância, que não deveria ser reduzida a um período
localizado no tempo cronológico, nem a um estado psicossomático independente da
linguagem, mas a uma dimensão-limite interior à linguagem. Aliás, só se pode
falar de experiência, no homem, a partir dessa distância, interior à linguagem,
entre ela e a infância. Caso contrário, a linguagem seria o lugar da totalidade
e da verdade, porém não o lugar da experiência. Por exemplo, os animais não são
desprovidos de linguagem, ao contrário, eles coincidem com ela, estão nela
absolutamente, sem interrupção nem fratura. Eles porém não tem acesso a ela. O
homem, ao contrário, que não é "o animal dotado de lingagem", mas antes o animal
que dela está privado (7), enquanto tem uma infância, enquanto não é desde
sempre falante, através da infância introduz justamente nela a discontinuidade e
a diferença entre língua e discurso. "É a infância, é a experiência
transcendental da diferença entre língua e fala que, pela primeira vez, abre à
história seu espaço próprio" (8).
O alcance dessa tese, enunciada em 1979, não é totalmente claro, à primeira vista, embora ressoe com as conclusões do ensaio sobre A Linguagem e a Morte, de 1982. No texto publicado alguns anos depois, em 1985, Agamben parece colher mais alguns frutos dessa maturação.
Ao relatar a obstinada meditação de Damasceno, no século VI,
Agamben revela sua conclusão:
"Damasceno levantou um instante a mão e olhou a tabuleta em
que ia anotando seus pensamentos. De repente, lembrou-se da passagem do livro
sobre a alma em que o filósofo compara o intelecto em potência a uma tabuleta
sobre a qual não há nada escrito. Como não havia pensado nisso antes? Era isso
que tinha tentado agarrar, inutilmente, dia após dia, isto era o que sem
descanso tinha perseguido por trás da cintilância daquela auréola indiscernível,
ofuscante. O limite último que o pensamento pode alcançar não é um ser, não é um
lugar ou uma coisa, por mais livre que esteja de toda qualidade, porém a
absoluta potência, a pura potência da representação mesma: a tabuleta para
escrever. Aquilo que até então tinha pensado como o Uno, como o absolutamente
Outro do pensamento era em contrapartida só a matéria, só a potência do
pensamento. E todo o extenso volume que a mão do copista ia preenchendo de
caracteres, não era mais do que a tentativa de representar aquela tábua
perfeitamente rasa, sobre a qual ainda não tinha sido escrito nada. Por isso não
conseguia concluir sua obra: aquilo que não podia cessar de escrever-se era a
imagem daquilo que nunca cessava de não escrever-se" (9).
Talvez pudessemos associar esse relato com o problema da
infância da linguagem, ao mesmo tempo um vazio e uma potência, interior à
própria linguagem, sua condição de possibilidade, transcendental...
Numa outra passagem, intitulada justamente infância, o autor
refere-se à curiosa espécie de salamandra albina, com seu aspecto infantil,
quase fetal. Esse tenaz infantilismo, acrescenta o autor, não indica uma
regressão na evolução, nem uma derrota da vida, mas uma hipótese de que o
próprio homem teria descendido não de indivíduos adultos, porém de crias de um
primata com prematura capacidade de reprodução – o que explicaria certos traços
que são transitórios, nos outros animais, porém que no homem se tornaram
definitivos. Com isto Agamben trata de imaginar um infante tão pouco
especializado e tão "totipotente, a ponto de declinar qualquer destino
específico e qualquer ambiente determinado, para ater-se unicamente a sua
própria imaturidade e a sua própria privação" (10). Diferentemente dos animais
submetidos à Lei do código genético, o infante em questão estaria atento às
possibilidades somáticas arbitrárias e não codificadas, como que expulso de si e
aberto a um mundo... "E sua voz, ainda livre de toda prescrição genética, não
tendo ele absolutamente nada para dizer nem expressar, poderia, único animal,
nomear em sua língua, como Adão, as coisas. No nome o homem se liga à infância,
se ancora para sempre numa fenda que transcende todo destino específico e toda
vocação genética" (11).
Reencontramos a língua adâmica, o poder de nomear como sendo
o mais próprio da infância. O que significa, porém, a nomeação? Agamben recorda
que os antigos distinguiam com cuidado o plano do nome (onoma) e o do discurso
(logos). Antístenes, ainda antes de Platão, havia insistido pela primeira vez
que das substâncias simples e primeiras não pode haver logos, apenas nome. Nesse
sentido, o indizível não é de modo algum aquilo que não pode ser demonstrado na
linguagem, mas aquilo que na linguagem pode apenas ser nomeado. Dizível, em
contrapartida, é aquilo de que se pode falar num discurso definitório, embora
enventualmente lhe falte um nome próprio. Entre o dizível e o indizível, a
fronteira se dá no interior da linguagem, e não fora dela (12).
Esta dimensão de desconhecido que o nome preserva e resguarda
em nada fere a potência da linguagem, e da relação mesma com o desconhecido.
Como o diz Agamben, sobre o amor: "Viver na intimidade de um ser estranho, e não
para aproximá-lo, para fazê-lo conhecido, porém para mantê-lo estranho,
distante, e mais: inaparente – tão inaparente que seu nome o contenha inteiro."
(13)
A vocação infantil da linguagem significa essa "inlatência", que não deveria ser reduzida a valores imortais ou codificados, fechados em qualquer tradição específica. Como diz Agamben, em algum lugar de nós o garoto aturdido neotênico (14) prossegue seu jogo real. É através desse jogo que os inúmeros povos e línguas da terra buscam manter aberta essa inesgotável inlatência, ao mesmo tempo que a diferem. Pois cada línga e povo, ao mesmo tempo, tentam afirmar o inafirmável, tornar a eterna criança, adulta.
"Só no dia em que a originária inlatência infantil fosse
verdadeiramente, vertiginosamente assumida como tal, o tempo alcançado e a
criança Aion despertasse de seu jogo e para o seu jogo, então os homens poderiam
ao final construir uma história e uma língua universais não diferíveis, e deter
seu vagar nas tradições. Este autêntico reevocar o soma infantil da humanidade
se chama: o pensamento, isto é, a política" (15).
Contingência e possibilidade
Ora, talvez seja o momento de tentar juntar esses fios soltos – da linguagem, da infância, do pensamento, da política, para ao final retomar o tema na perspectiva biopolítica. Talvez nos ajude, primeiramente, a figura de Bartleby (Nota ao final deste texto).
Já no Idea de la prosa Agamben se refere ao limbo,
onde estão também as crianças não batizadas, mortas unicamente com o pecado
original, ao lado dos dementes e os pagãos justos. O limbo impõe uma pena
privativa, não aflitiva – ali se carece da visão de Deus, mas eles sequer sabem
dessa privação. É, diz Agamben, essa a natureza secreta de Melville, a mais
antitrágica das figuras de Melville, embora aos olhos humanos não exista destino
mais desolador do que o dele. É aí, em todo caso, que reside a raiz de seu
"preferiria não". É uma espécie de inocência que desbanca a lógica humana e
divina, e que equivale a um suplemento de potência. Ao retomar de maneira mais
detida esse personagem, alguns anos depois, Agamben insiste em pensar a potência
não apenas em relação ao ato que a realiza e a esgota, necessariamente, mas
também como potência de não, potência de não (fazer ou pensar alguma coisa),
pela qual se afirma a tabuleta em branco não apenas como estágio prévio à
escrita, mas como sua descoberta última. Como no entanto pensar uma potência de
não pensar (16)?
Se a tradição aristotélica nos habituou a fazer com que o
pensamento não se subordine ao seu objeto (que também pode ser vil), mas pense a
sua pura potência, e portanto seja pensamento do pensamento, fica resguardada a
potência de não. Mas como poderia a teologia endossar tal impotência? O ato de
criação poderia ser a descida de Deus a esse abismo da potência e da impotência?
Segundo certa tradição, o homem alcança sua capacidade de criar, de tornar-se
poeta, justamente quando ele também faz essa experiência da impotência.
Ora, Bartleby é a figura dessa reivindicação do poder não,
desse abismo da possibilidade. Através de sua fórmula, ele instaura, como diria
Deleuze, uma zona de indiscernabilidade entre a potência de ser (ou de fazer) e
a potência de não ser (ou de não fazer), suspensão, epoché, deslocamento da
linguagem do dizer para o puro anúncio, com o que Bartleby se torna um
mensageiro, um anjo. Nessa zona, já não vale o princípio da razão suficiente
enunciado por Leibniz ("há uma razão pela qual algo existe em vez de não
existir"), já que é justamente o em vez de, o plutôt, o "de preferência" que
está posto em xeque e evacuado, emancipando, diz Agamben, a potência tanto da
razão como da vontade (17).
Talvez a experiência dessa zona de indiscernabilidade entre o
ser e o não ser, nas antípodas do príncipe da Dinamarca, seja a marca de nosso
contemporâneo niilismo, que já não consegue apenas corroborar a positividade do
ser de nossa tradição ontoteológica. Talvez seja, como o diz o autor, uma outra
ontologia que aí se anuncia, antes mesmo de Nietzsche: talvez Bartleby tenha
sido o laboratório da potência destacada do princípio de razão e emancipada do
ser assim como do não ser, lançada na absoluta contingência...(18)
É em Duns Scot que Agamben encontra a prefiguração de
Bartleby, quando o filósofo concebe, ao mesmo tempo, o ato e a potência de não
ser ou de ser de outro modo. "Por contingente eu entendo não algo que não é nem
necessário nem eterno, porém algo cujo oposto poderia advir no momento mesmo em
que aquele advém". Assim, alguém poderia agir de certa maneira e no mesmo
instante poder agir de outro modo, ou não agir. A liberdade humana residiria
precisamente, por parte daquele que quer, no poder de não querer, já que a
vontade seria a única esfera que escapa ao princípio da contradição. Ao criticar
os que negam a contingência, Duns Scot propõe a solução de Avicenas, que eles
fossem torturados até o ponto de admitirem que poderiam não ser torturados...
Em todo caso, a solução de Bartleby, ao interromper as cópias que lhe dita o patrão, é interpretada por Agamben como uma maneira de renunciar à Lei. Como um novo Messias (Deleuze dizia: um novo Cristo), ele não vem para redimir aquilo que foi, mas para salvar o que não foi, para atingir da Criação aquele momento de indiferença entre a potência e a impotência, que não consiste em recriar, nem em repetir, mas em des-criar, isto é, onde aquilo que foi e poderia não ter sido se esfumace naquilo que poderia ter sido e não foi (19). É todo um tema benjaminiano presente no autor.
Mas recuemos ainda um passo, na direção daquela potência (de não ser), de que Bartleby é o anti-herói, e que serve a Agamben para pensar o estatuto do sujeito em situações políticas extremas, como a do campo. Em Ce qui reste d´Auschwitz Agamben refere-se, no interior da língua, a essa dupla potência: possibilidade de dizer, e impossibilidade de dizer, potência e impotência. A possibilidade de dizer deve trazer em si, para ter lugar, a impossibilidade de dizer, isto é, seu poder-não-ser, isto é, sua contingência.
"Essa contingência, essa maneira pela qual a língua vem a um
sujeito, não se reduz à sua proferição ou não proferição de um discurso em ato,
ao fato de que ele fala ou então se cala, que ele produz ou não produz um
enunciado. Ela diz respeito, no sujeito, ao seu poder de ter ou de não ter a
língua. O sujeito, portanto, é essa possibilidade que a língua não seja, não
aconteça – ou, melhor, que ela não aconteça senão através de sua possibilidade
de não ser, sua contingência. O homem é o falante, o vivente que tem a
linguagem, porque ele pode não ter a língua, porque ele pode a in-fantia, a
infância. ... A contingência... é um acontecimento (contingit) considerado do
ponto de vista da potência, como emergência de uma cesura entre um poder-ser e
um poder-não-ser. Essa emergência toma, na língua, a forma de uma subjetividade.
A contingência é o possível experimentado por um sujeito" (20).
Um mundo desprovido da contingência, onde tudo é necessidade
e impossibilidade, é um mundo sem sujeito, pura substancialidade. Se o sujeito é
o campo de forças sempre atravessado pelas "correntes impetuosas, historicamente
determinadas, da potência e da impotência, do poder-não-ser e do
não-poder-não-ser", Auschwitz designa precisamente a ruína histórica e
traumática pela qual a necessidade foi "introduzida à força no real. Ele é a
existência do impossível, a negação a mais radical da contingência – portanto a
necessidade a mais absoluta." Aqueles prisioneiros que tinham desistido, que
tinham renunciado a sobreviver, que tinham entregue suas vidas à fatalidade, e
que por isso eram chamados de muçulmanos, representam a catástrofe do sujeito,
sua supressão como lugar da contingência, eles encarnam a existência do
impossível. É onde a frase de Goebbels parece ganhar seu sentido: a política
como a arte de tornar possível o que parecia impossível.
Nas condições da pós-política contemporânea, dado o controle biopolítico da vida, assistimos, como no campo de concentração, ao "apagamento do sujeito como local de contingência", ao seu desabamento no reino da necessidade, testemunhamos a redução da subjetividade à condição da mais crua objetividade dessubjetivada. No contexto contemporâneo, a vida nua dá a ler-se nesse rebaixamento da vida à sua mera atualidade, de onde foi evacuada a própria possibilidade. Se a reflexão sobre a linguagem tem na obra de Agamben papel tão relevante, é porque um outro "uso" desse Comum poderia restituir à subjetividade essa dimensão de "infância", contingência, possibilidade, revelando a tarefa eminentemente política aí embutida, sob o signo do messianismo, a saber – subtrair-se à cronologia, sem saltar para um além.
O mesmo pode ser dito da imagem, ou do cinema. Num curto artigo sobre Guy Debord (21), Agamben lembra que a mídia nos oferece os fatos desprovidos de sua possibilidade, ela nos dá portanto um fato "em relação ao qual somos impotentes. A mída gosta do cidadão indignado, mas impotente", o homem do ressentimento. Já um certo cinema projeta sobre aquilo que foi (o passado, o impossível) a potência e a possibilidade. Repetir uma imagem no cinema teria essa função, restituir a possibilidade daquilo que foi, torná-la novamente possível, a exemplo da memória, que restitui ao passado sua possibilidade. Mas o cinema também exerce a potência da interrupção, e ao subtrair uma imagem ao fluxo de sentido para exibí-la enquanto tal, como o fazem Godard ou Debord, introduzem uma hesitação entre a imagem e o sentido, a exemplo do que faz a poesia. O cinema, em todo caso, reintroduz a possibilidade, des-cria a realidade, na contramão da mídia e da publicidade.
É onde intervém uma curiosa interpretação da frase dita por Deleuze numa conferência sobre o cinema ("O que é o ato de criação?"), a saber, de que criar é resistir. Para o filósofo italiano, essa criação que equivale a uma resistência deve ser entendida como o ato de des-criação da realidade. "Mas o que significa resistir? É antes de tudo ter a força de des-criar o que existe, des-criar o real, ser mais forte do que o fato que aí está. Todo ato de criação é também um ato de pensamento, e um ato de pensamento é um ato criativo, pois o pensamento se define antes de tudo por sua capacidade de des-criar o real" (22).
Não é nosso propósito aqui pôr em questão uma interpretação
tão singular, embora não faltem elementos para tanto, dada a dimensão
eminentemente afirmativa da filosofia de Deleuze, sorvida em Bergson ou
Nietzsche, onde a aposta na diferença desloca inteiramente o lugar da
negatividade. Mas, insisto, não se trata aqui de contestar ou subscrever o
trajeto teórico de Agamben, com suas fontes filosóficas tão peculiares, e que
dariam margem a comparações interessantes com outras concepções de linguagem, de
pensamento, de potência (de não), mesmo de criação. Preferimos, mais do que
polemizar, compreender de que modo, em paralelo com o diagnóstico cruel sobre o
contexto biopolítico contemporâneo que se lê em suas últimas obras, vários de
seus textos, mesmo anteriores, deixam entrever uma linha quebrada que permite
pensar o avesso da vida nua tal como ele a concebe. Se percorremos algumas
dessas vias sinuosas, como o são sempre em Agamben, para sondar, na contramão da
expropriação da linguagem, que é por definição o Comum, o que seria o seu uso
livre, sua dimensão de infância, de contingência, de potência (de não), de
subjetividade, foi para cercar mais de perto o que para ele se poderia entender
por política, nesse contexto em que o campo tornou-se o paradigma por
excelência.
Nota
Bartleby, o escrivão -
Uma história de Wall Street, Herman Melville
Para ler a nova edição deste clássico de 1853, o leitor começa pelo desafio de descosturar a capa (puxando para baixo a linha vermelha que a lacra) e cortar as páginas não refiladas do livro (com a espátula plástica que acompanha o livro). Só assim, aos poucos, poderá desemparedar este personagem enigmático da ficção moderna que, no dizer do filósofo francês Gilles Deleuze, "desafia toda a psicologia e a lógica da razão". A famosa fórmula de resistência que o personagem oferece às ordens do advogado-patrão - "Acho melhor não" - e, mais tarde, de recusa ao próprio trabalho de escrivão e copista para o qual foi contratado, desperta uma sucessão tragicômica de acontecimentos. A cada resposta evasiva de Bartleby abre-se a fresta para a entrada do insólito nas atitudes e sentimentos despertados no dono do escritório, nos colegas de trabalho e até mesmo nas vizinhanças de Wall Street. Eleito por Jorge Luis Borges como uma das obras mais importantes para a humanidade e precursora de Kafka, a nova edição da novela de Melville reabre o caso do escrivão de Wall Street, investigado pela filosofia e pela crítica literária de todos os tempos.
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