Ezra Pound
http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_visual/pound_padeuma.html
[ideogramização da poesia]
Haroldo de
Campos*
* o objetivo desta introdução é a obra de
pound em si: pound, o inventor de formas.
pound no paideuma da poesia
contemporânea.
* há una cultura verbal, do mesmo modo que ha
uma cultura visual ou sonora. sob certos aspectos, pode-se falar de
pound. criador de formas verbais, com a mesma naturalidade com
que se falaria de mondrian, inventor de formas plásticas, ou de
webern, inovador do universo
sonoro.
* pound puxa paideuma. isto
quer dizer que pound teve a preocupação de levantar, para a
arte poética de nosso tempo, uma nova tradição, a margem do rango acadêmico das
histórias da literatura dessuetas e das antologias serôdias. seus ensaios, de
the spirit of romance ao guide to kulchur,
passando pelo a. b. c. of reading, sao cortes
paidêumicos : "separações drásticas" de um elenco de autores culturalmente
atuantes no momento histórico.
* pound, critico, vê a poesia
dum angulo criativo: do ponto de vista de quem esta empenhado em inventar novas
formas poéticas. pound põe "make it new" ou
seja — "culturmorfologia": transformação quaÏitativa da cuitura. determinados
autores, cuja obra era de eficácia imediata e urgente no panorama artístico onde
e. p. atuava (por exemplo : arnaut daniel e os provençais;
guido cavaicanti; os simbolistas franceses da linha
"coloquial-irônica" — laforgue e corbière;
etc.), foram chamados à linha de tiro, em
lances incisivos de estratégia intelectual,
enquanto outros, sem rodeios, foram postos fora de campo
(miiton, por exemplo, cujas construções latinizantes, segundo
pound, artificializavam a língua). a cultura necessita
dessas injeções de coramina : seu coração também
envelhece.
* pound propõe ideograma. o
método ideogrâmico, como princípio organizador dos cantos, é
tão importante para a poesia contemporânea, como o princípio serial para as
estruturas da música atual. o ideograma elimina as cortinas de fumaça do
silogismo : permite um acesso direto ao objeto. duas ou mais palavras, dois ou
mais blocos de ideias, postos em presença simultânea, criticando-se
reciprocamente, precipitam um jogo de relações com uma intensidade e uma
imediatidade que o discurso lógico não seria capaz sequer de evocar.
fenollosa & pound (a escrita
chinesa como itistrumento para a
poesia) : "neste processo de composição, duas coisas conjugadas não
produzem uma terceira, mas sugerem alguma relação fundamental entre ambas". ex.:
"sol + Ïua" = "processo de luz total" ("ming" fffj ). os
cantos,cada um deles em relação a suas partes componentes; cada
canto em particular ou cada grupo de cantos (os grecoromano-provençais ; os
malatestianos; os americanos = "jefferson/nuevo mundo" ; ,os sienenses =
"reformas leopoldinas”; os chineses; os do ciclo john adams; os pisanos; os da
"secção perfuratriz de
rochas"— 85 a 95, últimos até agora publicados)
em relação ao corpo total do poema, compõem um imenso ideograma da cosmovisão
poundiana, que se multiarticula em séries de ideogramas menores até a mínima
unidade do poema: — o verso, que é também substituído diretamente por um
ideograma ou então se constitui em membro de uma estrutura ideogrâmica
básica.
* por estranha que pareça a aproximação aos
observadores de superfície, impressionados com a exclusão de
mallarmé das preferências literárias de e. p.,
o método ideogrâmico de composição, teorizado e praticado por
pound, conota intimamente, do
ponto de vista da invenção formal, com "as subdivisões prismáticas da ideia" do
autor de un coup de dés (poema que valery —
varitéé ii — chamou de "espetáculo ideográfico duna crise ou
aventura intelectual"). hugh kenner (the poetry of ezra
pound) entreviu, embora sem descer em profundidade à comparação, esse
cam-
po de contacto: "a fragmentação da ideia
estética em imagens alotrópicas, teoria iniciada por mallarmé,
foi uma descoberta cuja importâancia para o artista corresponde a da fissão
nuclear para o físico". ambos se inspiraram em estruturas musicais :
mallarmé fala da "música ouvida em concerto", onde se encontram
"vários meios" por ele utilizados, por lhe terem parecido
"pertencer às letras"; refere-se a "motivo
preponderante, secundário e motivos adjacentes", a "contraponto prosódico", a
organização semelhante a da sinfonia (prefácio a um lance de
dados). pound compara os cantos à fuga : "tome uma
fuga : tema, resposta, contra-tema. não que eu pretenda uma exata analogia de
estrutura" (carta de 1937 a j. l. brown / the Ïetters
of e. p.).
" os cantos são uma "épica sem
enredo" (h. kenner). não se prestam ao ordenamento
lógico-cronológico de princípio-meio-fim. não possibilitam o traçado de um fio
histórico-narrativo. os elementos dos cantos, através do
ideograma (princípio que eisenstein, por sua vez, aplicou à
montagem cinematográfica), se catalizam em torno de "focos de interesse"
subordina-
dos a uma hierarquia geral de valores
(histórico-econômicos, ético-políticos, estético-críticos). o ideograma é a
forca que, como um imã, ordena "a rosa na limalha de ferro" : um estilhaço
arrancado à crônica de sigismundo malatesta, um aforisma extraído dos analectos
de confúcio, excertos da correspondência de jefferson ou de john adams,
reminiscências pessoais
do poeta como as de seu aprisionamento no campo
de pisa, interagem polarizados em cadeias de relações, desenhado o organismo
geral do poema.
* o léxico de pound é um léxico
de objetividades. pound não lida com a metáfora pura ou de
tipo gongorino. não especula com abstrações (como mallarmé).
sua linguagem é direta. tem a vivacidade do coloquial. a
partir dos cantos pisanos
(principalmente) ganha a celeridade com que os pensamentos se articulam no
cérebro : seu poema passa a ser uma épica da memória. "dichten == condensare" é
o postulado valido para o léxico poundiano: uma língua de "essências e medulas",
de "definições precisas". a extrema síntese de sua dicção pode iludir em seu
despojamento eliptico; nada mais distante, porém, do "automatismo psíquico" dos
surrealistas, da linguagem onírica, a-causal, vaga. as seqiuências mnemônicas
dos cantos pisanos se integram nas linhas de
força do poema: são coagulações de discurso direto, núcleos e cernes de dicção
objetiva, gravitando, em constelações semânticas, em torno dos eixos de ideias
mestras, cuja "vis attractiva" domina a obra
inteira.
* a obscuridade de pound não é
de palavra. é uma obscuridade de referência. o melhor intérprete de e.
p. é sua obra paralela aos cantos (seus ensaios, suas
traduções, seus panfletos, sua correspondência),
pound opõe-se à ambiguidade de
tipo surrealista.
* pound pode ser considerado um
poeta espacial. a disposição dos blocos de ideias num dado segmento dos
cantos (com especial intensidade a partir dos
pisanos) responde a uma função rítmica também visual: contribui
para a fixação sensível da estrutura ideogrâmica. através do corpo dos
cantos a composição tipográfica é invadida pela pitografia
chinesa, com função semafórica : "trazer ao foco" determinados grupos de ideias,
mediante a ativaição direta do olho (o processo — que leva os experimentos de
e. p, até o dado meramente gráfico, a textura material do poema
— recru-desce na "secção perfuratriz de rochas" — rock-drill,
cantos 85 a 95, onde aparecem, inclusive, com análoga função, hieroglifos
egípcios e, em preto e vermelho, os naipes do baralho). com razao observa
h. kenner:
"pound atingiu, durante o seu trabalho de mais
de trinta anos nos cantos, uma crescente perícia retórica,
alcançando novas altiitudes nas seqiuências mais recentes, nas quais a
disposi^ção espacial de cada palavra é funcional". e charles
madge ("a elipse nos cantos pisanos", "in" ezra pound,
simpósio coligido por peter russel) : "ademais, para pound como
para mallarmé, o aspecto visual de seus poemas é importante : o espaço através
do qual a centeiha poética tem que voar é um espaço real numa página impressa. o
que se conjuga com uma paixão pelo caligráfico ideograma chinês.
“
* pound puxa paideuma. um
trfbuto a e. p. é um tributo à vivacidade. falar numa ortodoxia
poundiana é ser anti-e. p. poand arma a jovem poesia de um
sentido qualitativo de processo. nenhum "paraíso perdido" de decoro estético.
nenhum "enxame de sentimentos inarticulados". sua presença instiga o artista
criativo a uma opção radical: ao levantamento urgente de um paideuma, com ação
instantânea sobre a conjuntura poética contemporânea, como ponto de partida para
a invenção de novas formas de cultura verbal. nesse paideuma, a obra de
e. p. será, necessariamente, uma das linhas mestras. dizer
paideuma, é dizer justaposição das partes vivas de uma cultura: — corpo de
conhecimentos que funciona— mera ortodoxia é um problema de
hipnose.
* o ideograma tem um futuro próprio, que não se
esgota no edifício "maior" dos cantos. é a linguagem adequada
para a mente contemporânea. permite a comunicação no seu grau mais rápido. entra
em conjunção
com as experiências da música e das artes
visuais realmente criativas. os cantos não fecham a poesia num
beco sem saída. representam uma tensão para um novo mundo de
formas.
* "a poesia difere da prosa pelas cores
concretas de sua dicção" (fenollosa &
pound).
Haroldo de
Campos
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*Prefácio do livro “ezra pound cantares”,
tradução de Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos. Publicação
do Serviço de Documentação do Ministério da Educação e Cultura”, sem data
(presumivelmente em 1960, pouco antes da mudança da capital do Rio de Janeiro
para Brasília). No original não aparece o subtítulo “ideogramização da poesia”,
que foi colocado para deixar mais clara a intenção do
prefácio.
Post Scriptum
CANTO 81 / Ezra Pound fragmento
Veio o visível primeiro, depois o palpável
Elísio, ainda que fosse nas câmaras do inferno,
O que amas de verdade é tua herança verdadeira
O que amas de verdade não te será arrancado
A formiga é um centauro em seu mundo de dragões.
Abaixo tua vaidade, nem coragem
Nem ordem, nem graça são obras do homem,
Abaixo tua vaidade, eu digo abaixo.
Aprende com o mundo verde o teu lugar
Na escala da invenção ou arte verdadeira,
Abaixo tua vaidade,
Paquin, abaixo!
O elmo verde superou tua elegância.
"Domina-te e outros te suportarão"
Abaixo tua vaidade
Tu és um cão surrado e largado ao granizo,
Uma pega inchada sob o sol instável,
Metade branca, metade negra
E confundes a asa com a cauda
Abaixo tua vaidade
Que mesquinhos teus ódios
Nutridos na mentira,
Abaixo tua vaidade,
Ávido em destruir, avaro em caridade,
Abaixo tua vaidade,
Eu digo abaixo.
Mas ter feito em lugar de fazer
isto não é vaidade
Ter, com decência, batido
Para que um Blunt abrisse
Ter colhido no ar a tradição mais viva
ou num belo olho antigo a flama inconquistada
Isto não é vaidade.
CANTO 81 / Ezra Pound fragmento
Veio o visível primeiro, depois o palpável
Elísio, ainda que fosse nas câmaras do inferno,
O que amas de verdade é tua herança verdadeira
O que amas de verdade não te será arrancado
A formiga é um centauro em seu mundo de dragões.
Abaixo tua vaidade, nem coragem
Nem ordem, nem graça são obras do homem,
Abaixo tua vaidade, eu digo abaixo.
Aprende com o mundo verde o teu lugar
Na escala da invenção ou arte verdadeira,
Abaixo tua vaidade,
Paquin, abaixo!
O elmo verde superou tua elegância.
"Domina-te e outros te suportarão"
Abaixo tua vaidade
Tu és um cão surrado e largado ao granizo,
Uma pega inchada sob o sol instável,
Metade branca, metade negra
E confundes a asa com a cauda
Abaixo tua vaidade
Que mesquinhos teus ódios
Nutridos na mentira,
Abaixo tua vaidade,
Ávido em destruir, avaro em caridade,
Abaixo tua vaidade,
Eu digo abaixo.
Mas ter feito em lugar de fazer
isto não é vaidade
Ter, com decência, batido
Para que um Blunt abrisse
Ter colhido no ar a tradição mais viva
ou num belo olho antigo a flama inconquistada
Isto não é vaidade.
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