de estilo? Acho que é sim. A composição de um livro é
algo que não se resolve previamente. Ela se faz ao mesmo
tempo em que o livro se faz. Por exemplo, vejo em livros
que eu escrevi, se me permite citar o que eu fi z... Há
dois livros meus que me parecem compostos. Sempre dei
importância à composição. Penso em um livro chamado
Lógica do sentido que é composto por séries. Para mim, é
verdadeiramente uma composição serial. E Mil platôs é
uma composição por platôs. Para mim, são duas composições
quase musicais, sim. A composição é um elemento
fundamental do estilo.
Em ambos os casos, a organização linear, hierárquica, sugerida
pela separação em capítulos, cede lugar a uma composição horizontalizada,
de partes que parecem correr em paralelo, quase como em
um "jogo da amarelinha" cortazeano. É como se cada série, ou cada
platô, funcionasse como uma peça independente, vinda cada uma de
um quebra-cabeças diferente; ao mesmo tempo, como se essas peças
fossem "violentamente inseridas" umas nas outras, forçando novos
encaixes (DELEUZE; GUATTARI, 1972, p.51).
As séries e os platôs
podem ser lidos em diferentes ordens, criar diferentes trajetos entre
si e, a cada vez que um deles participa da leitura, a paisagem geral do
livro se modifi ca, ainda que se mantendo numa relativa independência
em relação a suas partes e vice-versa.
No caso do livro com Guattari, diz Deleuze, os platôs foram
concebidos como "anéis quebrados", penetrando uns nos outros,
sendo que: "Cada anel, ou cada platô, deveria ter seu clima próprio,
seu próprio tom ou seu timbre" (1992, p.37). Cada um dos platôs,
explica ele, seria uma espécie de mapa, traçando seu próprio trajeto:
"[...] os platôs são zonas de variação contínua, são como torres que
vigiam ou sobrevoam, cada uma, uma região, e que emitem signos
umas às outras" (1992, p.177). Para quem teve contato com a obra na
tradução brasileira, um elemento a mais participa dessa construção
fragmentária: por questões editoriais, a obra, formada por um único
tomo no original, foi dividida em cinco volumes. Assim, o leitor que
não teve contato com a obra em francês vive uma sensação ainda
mais concreta da independência entre os platôs e uma outra experiência
da leitura dos Mille plateaux: cada volume da edição brasileira
constitui um livro, um todo, cada um por sua vez com seu "timbre",
seu "tom", cada um constituindo um mapa (variando de dois a quatro
platôs), um plano de consistência próprio. O que aqui se coloca
em questão não é se as consequências dessa circunstância de publicação
são boas ou ruins, mas a observação do quanto ela pode acarretar
uma mudança na leitura da obra e o quanto o próprio formato da
obra, em platôs com uma autossufi ciência relativa, possibilitou que
essa divisão fosse realizada.
Há uma lição aprendida com Proust, que Deleuze e Guattari
não escondem. A ideia acerca do estilo proustiano aparece em O
anti-Édipo, em 1972, e é retomada por Deleuze em Proust e os signos,
de 1976, como a constituição de um todo da obra como efeito de
fragmentos que não se unifi cam nesse todo. Ou seja, partes que permanecem
com suas devidas autonomias, sem se dissolverem em uma
unidade comum, sem perderem sua independência, sua singularidade,
em prol de um unifi cador – seja ele de ordem simbólica, interpretativa
ou do signifi cante. As partes são peças rearranjáveis, que permitem
percursos diversos de leitura e, a cada percurso, um efeito de leitura
diferenciado. O todo é então um todo modulável, que se dá como
efeito "ao lado" das partes, é uma "pincelada fi nal", como diz Proust
acerca do estilo de Balzac (DELEUZE, 1987, p.165). Vale transcrever
o trecho em que Deleuze e Guattari narram o movimento dessas
peças:
E é notável, na máquina literária de Em busca do tempo perdido,
até que ponto todas as partes são produzidas como lados
dissimétricos, direções quebradas, caixas fechadas, vasos
não comunicantes, compartimentações, nas quais mesmo
as contiguidades são distâncias e as distâncias, afi rmações,
pedaços de quebra-cabeça que não são do mesmo mas de
diferentes quebra-cabeças, violentamente inseridos uns nos
outros, sempre locais e nunca específi cos, e com suas bordas
discordantes, sempre forçadas, profanadas, imbricadas umas
nas outras, e sempre com restos (1972, p.51).1
A autonomia relativa dessas partes – séries ou platôs, conceitos
ou imagens – não signifi ca que elas não se comuniquem, que não
constituam trânsitos diversos entre si, pelo contrário: o estilo proustiano,
que Deleuze e Guattari tanto admiram, seria justamente esta
possibilidade de criar um todo múltiplo, que é efeito de fragmentos
não totalizáveis, porém extremamente ressoantes entre si. Há linhas
que se tecem a todo momento, em direções diversas, entre elementos
que constituem um texto, um livro. Relações que se fazem necessárias,
ligando o que pareceria solto, criando uma fl uência entre
fragmentos, forçando trajetos intensivos. Dessa lição estilística com
Proust, tem-se a constituição de uma obra que retira sua possibilidade
de ser "uma" obra, de ter sua unidade, justamente por efeito de
ressonâncias internas entre suas peças. Há um fl uxo que se cria por
força das distâncias entre os elementos, pela ausência de relação dada
(preestabelecida, causal, extensiva, atual) entre eles.
Como vimos no trecho citado anteriormente de L’Abécédaire,
a composição do livro é um elemento importante na elaboração do
estilo para Deleuze e não é algo preconcebido, mas que se faz "ao
mesmo tempo em que o livro se faz". Deleuze cita pontualmente
aí Lógica do sentido e Mil platôs, como dois bons exemplos em que
se tem uma preocupação composicional, "duas composições quase
musicais". Mas, embora não seja em todas as obras de Deleuze que
a estruturação do livro atue assim tão ativa ou experimentalmente,
pode-se dizer que a composição, e portanto o trabalho com o estilo,
é muito presente no interior dos textos mesmos – em verdade, ele
nunca está ausente.
E, ainda que se fale em composição serial ou por platôs de
modo mais explícito nesses dois casos, mantém-se nos outros livros
de Deleuze, em geral, uma fragmentação bastante próxima à operação
que viemos descrevendo acerca de Proust. Além de capítulos
geralmente mais breves, nota-se uma relação entre eles não hierarquizada,
não linear, não centralizada. O que poderíamos traduzir, em
termos dessa fi losofi a, na opção por sistemas a-centrados, isto é, a recusa
de livros que seguiriam os modelos da árvore ou da raiz, com
um tronco principal, galhos derivados, apenas uma porta de entrada e
uma de saída, os capítulos servindo de organizadores a esta hierarquia
e linearidade que se dão sempre em vista de um Uno transcendente.
No lugar disto, pode-se notar a busca por livros com todo um outro
tipo de composição, mais horizontalizada, que opta por uma maior
mobilidade e trânsito entre os capítulos. O livro parece ir se montando
diante dos olhos do leitor, ao invés de oferecer uma unidade
pronta de antemão.
Essa constituição mais quebradiça seria um dos procedimentos
utilizados por Deleuze no seu esforço de tratar a escrita como um
fl uxo e não um código, tal vemos em suas falas em Conversações. A
fragmentação e o modo não hierarquizado de criar conexões entre
os fragmentos, no entanto, não se restringem à estruturação dos livros,
mas apontam para um movimento interiorizado em sua escrita
de forma generalizada, nos elementos e movimentos menores que a
compõem. A organização do livro é então somente um desdobramento
maior, uma reverberação de um movimento que já se dá nas
dimensões menores e mais subterrâneas de sua escrita
(...)
Anéis partidos ou "anéis quebrados", como se refere Deleuze
acerca dos platôs, em seus modos de se enganchar e se engatar uns
nos outros mantendo, no entanto, uma relativa autonomia. Ou ainda,
anéis abertos, como dizem ele e Guattari quando, ao falarem da escrita
de Kleist, parecem descrever a própria dinâmica que buscavam
em sua composição: "Kleist inventou uma escrita deste tipo, um encadeamento
quebradiço de afetos com velocidades variáveis, precipitações
e transformações, sempre em correlação com o fora. Anéis
abertos" (1995a, p.18, grifo meu). Cada fragmento do texto, conceito,
frase, oração, constitui uma espécie de todo que gira sobre si, mas
que sempre se mantém aberto em algum ponto, permitindo encaixes
múltiplos com outros elementos (sejam eles internos ou externos ao
texto). Não se trata de um acaso, pelo contrário: o esforço composicional
de Deleuze ao escrever parece ir neste sentido: "interessa-me
que uma frase fuja por todos os lados, e no entanto que esteja bem
fechada sobre si mesma, como um ovo" (DELEUZE, 1992, p.24).
Como criar uma frase que "fuja por todos os lados" e que, ao
mesmo tempo, se baste em si mesma? Problema de estilo. Uma frase
que fuja por todos os lados é uma frase, como a de Kleist, "sempre
em correlação com o fora", é uma frase-anel-aberto, conectada com
aquilo que não é apenas linguístico, não é apenas código e não se efetua
apenas ali, entre as palavras. É uma espécie de frase-isca: por um
lado, "a palavra pescando o que não é palavra", se roubarmos os termos
de Clarice Lispector (1999, p. 385); por outro, a palavra também
sendo pescada por este limite não linguageiro, sendo arrastada por ele
– sons e imagens "inomináveis", sopros, gritos, cantos, epifanias.
Assim, é como se, para fugir por todos os lados, para alcançar
ou ser alcançada por essas visões e audições que estão no limite da
língua, a frase precisasse possuir contornos e membranas bem delimitados,
como um ovo. Mas, notemos, o ovo aqui pode não ser apenas
o que está hermeticamente lacrado, mas ser simultaneamente este duplo
aspecto: estar fechado em si e, ainda, fugir por todos os lados. Isso
porque o ovo é energia potencial, condensação pura de intensidades,
a serem futuramente atualizadas, conectadas, formadas, desdobradas,
encarnadas. O ovo é "matéria intensa e não formada, não estratifi
cada, a matriz intensiva" (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p.13),
distinguindo apenas gradientes, tonalidades, migrações, zonas de vizinhança.
Ele é pré-formal, é anterior às formalizações, o que não
signifi ca ser indiferenciado, mas sim possuir um potencial de relações
ainda não atualizado.
Uma frase-ovo é então essa que possuiria uma perfeita autonomia,
estando muito bem fechada sobre si mesma, e ao mesmo tempo
uma abertura incontida ao fora, às conexões que poderiam se dar no
futuro das leituras – sendo no encontro da leitura que se dão as visões
e audições, que as palavras podem sussurrar, gritar, fazer ver. Aqui,
um ponto crucial: essas são conexões não previstas, não preestabelecidas,
embora delimitadas pelo campo intensivo da frase. A frase-ovo,
como matriz intensiva, possui sua plena distinção, sua singularidade,
e sua leitura não pode ser confundida com ideias aparentemente semelhantes,
tais como: de que o leitor criaria o texto que quisesse (o
equívoco da abertura plena, que recai no caos), ou de que ele decodifi
caria expectativas previstas, tal chaves de leitura deixadas pelo
autor (o equívoco da falsa abertura). É, antes,
como se a frase-ovo fosse constituída de fi os soltos, a serem ligados na
leitura. Ela se atualiza, ela acontece, na leitura; ou ainda, cada leitura
efetuaria uma atualização da frase, diferenciando-a a cada vez. "É do
tipo ligação elétrica" (DELEUZE, 1992, p.17).
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