sexta-feira, 22 de novembro de 2013

John Dos Passos e o falar do povo


 

Foi a escritora norte-americana Gertrude Stein quem batizou de geração perdida o grupo de escritores dos Estados Unidos que se auto-exilou em Paris na década de 1930. Contrariando as previsões negativas, no entanto, a geração perdida produziu alguns dos maiores escritores da literatura universal, dentre eles Ernest Hemingway, F. Scott Fitzgerald e John dos Passos. Este último teve, e ainda tem, muitos leitores no Brasil, onde esteve várias vezes, e sempre revelou simpatia pelo nosso país. John dos Passos (1896/1970) foi um romancista inovador, adotando novo estilo e novas técnicas romancísticas, além de ter produzido uma obra ambiciosa em que se destaca a trilogia “USA”, que compreende os romances “Paralelo 42”, “1919” e “O Grande Capital.” Embora o primeiro, ao que parece, seja o mais lido entre nós, o último é o mais amplo e que maior esforço exigiu de seu autor na elaboração. Trata-se de um espesso romance com 700 páginas, na edição brasileira, publicado pela Benvirá/Saraiva (S. Paulo – 2012), em caprichada tradução de Marcos Santarrita. Segundo a crítica, o Autor ouviu a voz do povo americano e a gravou em páginas modelares, registrando com precisão o próprio sentimento popular.
 

“O Grande Capital” é um romance impressionante. Nele o Autor procurou romancear a formação e a consolidação da riqueza americana e o surgimento da plutocracia econômica naquele país. Revela a repressão implacável contra qualquer reivindicação de natureza social ou trabalhista, talvez a mais severa de todo o mundo, mesmo quando os trabalhadores padeciam da maior miséria. As greves, jamais toleradas, por justas que fossem, eram reprimidas à bala, semelhando verdadeiras guerras. Os grevistas, alijados do mercado de trabalho, se viam forçados a engrossar a marginalidade, o chamado lumpemproletariado. Por outro lado, o Ford Bigode proliferava, enquanto Henry Ford, seu criador, encetava campanhas antissemitas, atribuindo aos judeus todas as desgraças do mundo. E o taylorismo, adotado nas linhas de montagem, tudo cronometrava, chegando ao extremo absurdo de fixar até o tempo concedido para que o trabalhador frequentasse o sanitário (três minutos). Por ironia do destino – segundo ele – Frederick Winslow Taylor, mais conhecido como Speedy Taylor, o inventor da eficiência na indústria e que dobrara a produção, faleceu na madrugada de seu 59º. aniversário. “Quando a enfermeira entrou no quarto para olhá-lo às quatro e meia, ele estava morto com o relógio na mão” (p. 37). Estaria, talvez, cronometrando o tempo que a morte levaria para chegar
.
 

 Mas o poder do dinheiro como expressão avassaladora do capitalismo tinha suas exigências. O sucesso individual deveria ser comprovado de forma pública, como afirmação pessoal e de ascensão social, através da exibição do luxo, dos jantares regados a champanhe, dos carrões, das vestimentas caras. Modelo, afinal, copiado pelo mundo todo e que vigora até hoje. Como exemplo, o Autor biografa a bailarina Isadora Duncan, oriunda da classe pobre e que se tornou uma diva internacional, adorada em todo o mundo, inclusive no Brasil (Gilberto Amado descreve num de seus livros a visita dela ao nosso país). Mas ela pagou seu preço à modernidade e à vida vertiginosa: morreu estrangulada quando a cauda de sua echarpe se enrolou na roda do carro esportivo em que se encontrava. Outra exigência se constituía na necessidade de ter heróis, fossem eles reais ou fabricados. Assim, um dos personagens, tenente do exército que retornara da I Guerra Mundial e durante a qual pouco havia lutado, sentia-se constrangido quando lhe exigiam a postura do herói. Tentavam torná-lo herói, ainda que à força, mas o plano não funcionou, tendo ele se entregado à boemia desbragada e ao alcoolismo, morrendo num estúpido acidente. Muito rico.

A galeria de personagens do romance é imensa. Eles se cruzam e entrecruzam nas mais diversas atividades e situações. O Autor exibe ao longo dele profundo conhecimento de seu país e sua gente. Aplaudido pelo povo como expressão da realidade nacional e pela crítica como um dos mais ambiciosos projetos realizados por um escritor americano, os homens do dinheiro torceram os narizes a não tardaram a inscrever o Autor no vasto rol dos “comunas”, ainda que não o fosse. Na visão deles, foi uma má ação revelar as intimidades do país. Melhor seria escondê-las sob o manto da hipocrisia.

Enéas Athanázio

(22 de março/2013)
CooJornal nº 832


Post Scriptum

Capital, Trabalho e Alienação, segundo Karl Marx

Segundo Marx, a relação capital, trabalho e alienação promovem a coisificação ou reificação do mundo, tornando-o objetivo, sendo que suas regras devem ser seguidas passivamente pelos seus componentes

 
 
De acordo com Marx, capital e trabalho apresentam um movimento constituído de três momentos fundamentais:
 
Primeiro, “a unidade imediata e mediata de ambos”; significa que num primeiro momento estão unidos, separam-se depois e tornam-se estranhos um ao outro, mas sustentando-se reciprocamente e promovendo-se um ao outro como condições positivas;
 
Em segundo lugar, “a oposição de ambos”, já que se excluem reciprocamente e o operário conhece o capitalista como a negação da sua existência e vice-versa;
 
Em terceiro e último lugar, “a oposição de cada um contra si mesmo”, já que o capital é simultaneamente ele próprio e o seu oposto contraditório, sendo trabalho (acumulado); e o trabalho, por sua vez, é ele próprio e o seu oposto contraditório, sendo mercadoria, isto é, capital.
 
Já a alienação ou estranhamento é descrita por Marx sob quatro aspectos:
 
1. O trabalhador é estranho ao produto de sua atividade, que pertence a outro. Isto tem como consequência que o produto se consolida, perante o trabalhador, como um “poder independente”, e que, “quanto mais o operário se esgota no trabalho, tanto mais poderoso se torna o mundo estranho, objetivo, que ele cria perante si, mais ele se torna pobre e menos o mundo interior lhe pertence”;
 
2. A alienação do trabalhador relativamente ao produto da sua atividade surge, ao mesmo tempo, vista do lado da atividade do trabalhador, como alienação da atividade produtiva. Esta deixa de ser uma manifestação essencial do homem, para ser um “trabalho forçado”, não voluntário, mas determinado pela necessidade externa. Por isso, o trabalho deixa de ser a “satisfação de uma necessidade, mas apenas um meio para satisfazer necessidades externas a ele”. O trabalho não é uma feliz confirmação de si e desenvolvimento de uma livre energia física e espiritual, mas antes sacrifício de si e mortificação. A consequência é uma profunda degeneração dos modos do comportamento humano;
 
3. Com a alienação da atividade produtiva, o trabalhador aliena-se também do gênero humano. A perversão que separa as funções animais do resto da atividade humana e faz delas a finalidade da vida, implica a perda completa da humanidade. A livre atividade consciente é o caráter específico do homem; a vida produtiva é vida “genérica”. Mas a própria vida surge no trabalho alienado apenas como meio de vida. Além disso, a vantagem do homem sobre o animal – isto é, o fato de o homem poder fazer de toda natureza extra-humana o seu “corpo inorgânico” – transforma-se, devido a esta alienação, numa desvantagem, uma vez que escapa cada vez mais ao homem, ao operário, o seu “corpo inorgânico”, quer como alimento do trabalho, quer como alimento imediato, físico;
 
4. A consequência imediata desta alienação do trabalhador da vida genérica, da humanidade, é a alienação do homem pelo homem. “Em geral, a proposição de que o homem se tornou estranho ao seu ser, enquanto pertencente a um gênero, significa que um homem permaneceu estranho a outro homem e que, igualmente, cada um deles se tornou estranho ao ser do homem”. Esta alienação recíproca dos homens tem a manifestação mais tangível na relação operário-capitalista.
 
É dessa forma, portanto, que se relacionam capital, trabalho e alienação, promovendo a coisificação ou reificação do mundo, isto é, tornando-o objetivo, sendo que suas regras devem ser seguidas passivamente pelos seus componentes.

Por João Francisco P. Cabral

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