terça-feira, 25 de junho de 2013

O que é um vândalo?


Bill Buford conviveu com os hooligans por cerca de quatro anos. O resultado dessa experiência está no livro "Entre os Vândalos", texto que apresenta uma espécie de exercício de sociologia do comportamento.

 
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Os Vândalos eram uma tribo germânica oriental que penetrou no Império Romano durante o século V e criou um estado no norte da África ocupando a cidade de Cartago, antiga cidade fenícia que fora ocupada pelos romanos desde o fim das Guerras Púnicas.1 A localização de Cartago às margens do Mediterrâneo era estratégica para os Vândalos. Ali centralizaram seu Estado, e logo após se estabelecerem, saquearam Roma no ano de 455, destruindo muitas obras primas de arte que se perderam para sempre. 2

 

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Trecho do livro ''Entre os Vândalos'':
Algum tempo atrás, voltei do País de Gales para casa de trem. A estação era a de um vilarejo nos arredores de Cardiff e cheguei cedo ao local. Comprei uma xícara de chá. Era uma noite fria de sábado e havia apenas outros três ou quatro passageiros na plataforma. Um homem lia um jornal, balançando-se para a frente e para trás apoiado nos pés. Em meio à nossa espera ouviu-se um aviso pelo alto-falante com respeito a um trem não programado. Pouco depois, outro aviso: o trem não programado estava prestes a chegar e todos deveriam colocar-se à distância de três metros do limite da plataforma. Era uma instrução inusitada, que levou o homem do jornal a erguer uma sobrancelha. Imaginei que talvez se tratasse de um trem militar. Alguns minutos depois, apareceram policiais, despontando das escadarias próximas.
O trem era um especial para dias de futebol e estava tomado por torcedores. Vinham de Liverpool e havia centenas deles - jamais eu vira um trem tão abarrotado de pessoas - cantando em uníssono: "Liverpool, la-la-la, Liverpool, la-la-la". A letra parece tola agora, mas não o pareceu então. Um minuto antes houvera um silêncio virtual: uma noite galesa de inverno, enevoada e sonolenta. E então aquela cantoria, disparada em crescente ferocidade, ressoando pelas paredes da estação. Um guarda fora ferido e, quando o trem parou, ele foi empurrado para fora, as mãos encobrindo o rosto. Alguém no interior do trem procurava arrebentar uma janela com uma perna de mesa, mas a janela não se quebrava. Um homem gordo, de rosto vermelho, tropeçou para fora de um dos vagões e seis policiais acorreram em sua direção, derrubaram-no ao chão e dobraram-lhe o braço violentamente às costas. A reação da polícia era exagerada - o trem estava tão abarrotado que o homem gordo havia pipocado para fora através de uma porta aberta -, mas os policiais estavam assustados. Eu também estava assustado (lembro-me de meus braços estupidamente cruzados à frente do peito), assim como todos os demais na plataforma. Era uma situação peculiar: estava numa estação ferroviária onde todos à minha volta falavam galês; eu estava ali para apanhar um trem; então, aquela súbita demonstração. Imaginei que ela se dirigia a nós, que aquele canto violento era uma forma de mostrar que eles, os torcedores, estavam em posição de fazer o que desejassem.
O trem partiu. Fez-se silêncio.
Cheguei em casa à uma e meia da manhã, e a região parecia consistir num extenso cordão policial. Na estação de Paddington, duzentos policiais aguardavam para acompanhar cada passageiro da plataforma até o metrô. Troquei quatro vezes de trem; três haviam sido ocupados por torcedores. Um deles estava em destroços: os assentos haviam sido rasgados, enquanto o bar, fechado de antemão, fora arrombado, sua porta metálica em pedaços, a bebida ao alcance de qualquer um que por ali passasse. Eu não sabia o que era mais espantoso, se o vandalismo, gratuito e implacável, ou o fato de que, com tantos policiais, ninguém parecia capaz de detê-lo: a coisa simplesmente prosseguia. Na esperança de evitar confusão, acomodei-me num assento de primeira classe, na parte mais dianteira de um vagão, defronte a um homem que havia pago por seu bilhete de primeira classe. Ele era esbelto e elegante, com um bigode fino, usava um terno de lã e sapatos lustrosos e caros: um tipo civilizado de camarada lendo um tipo civilizado de livro - um romance de capa dura com sobrecapa. Um torcedor o estava fitando havia um bom tempo. Um torcedor que estava embriagado. Vez por outra acendia um fósforo e atirava-o em direção aos reluzentes sapatos do homem civilizado, na esperança de atear-lhe fogo às calças. O homem civilizado ignorava-o, porém o torcedor, bufando irritado, persistia. Era uma imagem eloquente: um dos desprivilegiados, ignorando os códigos de conduta civilizados, pondo em chamas, displicentemente, um membro da classe mais privilegiada.
Era óbvio que a violência representava um protesto. Fazia sentido que assim o fosse: as partidas de futebol ofereciam uma válvula de escape para frustrações de natureza profunda. Muitos jovens estavam desempregados ou jamais haviam conseguido colocação alguma. A violência, por conseguinte, era uma espécie de rebelião - rebelião social, rebelião de classe, alguma coisa. Eu queria conhecer melhor aquilo. Já tinha lido sobre a violência e, até onde havia refletido sobre o assunto, presumia tratar-se de um fenômeno isolado ou misterioso, no sentido em que a violência das multidões é tida como misteriosa: imprevisível, espontânea, a turba. Minha viagem iniciada no País de Gales sugeriu que esta violência poderia ser mais proposital, mais voluntária. Ela proporcionava uma visão do sábado inglês, o dia das compras, diferente daquela que eu conhecera: a de que nos vilarejos e cidades você podia encontrar centenas de policiais, militares com todo o seu aparato, a postos para conter jovens do sexo masculino aficionados pelo esporte que, após comparecerem a uma competição esportiva, estavam determinados a quebrar ou destruir tudo aquilo que encontrassem pelo caminho. Era difícil de acreditar.
Contei a história de minha viagem a alguns amigos, mas fiquei espantado ao ver quão pouco eles se surpreendiam. Alguns agiam como que tomados de repulsa; outros achavam divertido; ninguém considerava aquilo extraordinário. Tratava-se de uma das coisas com as quais já se contava: que todos os sábados jovens rapazes arrasassem trens, quebrassem as janelas dos pubs, destruíssem carros ou promovessem depredações em centros urbanos. Não engoli aquilo, mas parecia ser assim. Na verdade, a única ocasião em que senti ter dito algo surpreendente foi quando revelei que, apesar de eu agora já ter visto uma multidão de torcedores de futebol, jamais presenciara uma partida de times ingleses. Isso sim, aparentemente, era estarrecedor.
Assim, expliquei-me: embora tivesse vindo à Inglaterra como estudante, em 1977, e permanecido no país, comparecera a uma única partida de futebol, e isso anos antes, quando me encontrava na Cidade do México: a seleção mexicana, que não era lá muito boa, enfrentava minha seleção natal, a equipe visitante dos Estados Unidos, que era terrível. Talvez houvesse umas duzentas pessoas assistindo. O México venceu por oito a zero. Nos subúrbios de Los Angeles, onde me criei, o soccer (como chamávamos o futebol) não era passatempo de rapazes.
Meus amigos estavam impressionados. Nunca ter comparecido a uma partida? Mostraram-se incrédulos. A implicação aparente era a de que por isso o comportamento dos torcedores me parecia tão extravagante e difícil de compreender.
Não são muitas as lembranças que tenho de minha ida aocampo do Tottenham Hotspur, em White Hart Lane, para onde dois amigos me levaram a fim de assistir à minha primeira partida inglesa de futebol, nas finais do campeonato de 1983. Não me lembro se algum gol foi marcado. Não me lembro do outro time. Lembro-me de que nos atrasamos e levamos vinte minutos de empurrões, agarramentos, apertões, gemidos, avanços lentos, esforços imensos e disputas corporais até que conseguíssemos finalmente garantir nosso lugar, a minúscula fatia de um degrau de concreto, esmagados entre uma porção de garotos - de que outra forma descrevê-los? - dez anos mais jovens do que eu e trinta quilos mais pesados, cuja paixão por se expressarem raramente ultrapassava a frase simples mas eficientemente direta (e repetida com frequência): "Seu filho da puta". Lembro-me da euforia que acompanhou o espetáculo do indivíduo abaixo de nós que, detectando uma precipitação na parte traseira do pescoço, voltou-se para trás e descobriu que estavam urinando nele do alto. Lembro-me também da inquietação que senti ao me dar conta de que os dois jovens próximos ao meu lado exibiam emblemas do National Front - um de meus amigos era indiano e o outro, um latino- -americano moreno. Os dois jovens e seus amigos começaram a gritar - "Fora, negrada!" -, o que era repetido num volume cada vez mais alto até ser interrompido por uma briga, por sua vez interrompida pelos policiais, cujo deslocamento até o local, entre empurrões, agarramentos, apertões, gemidos, avanços lentos, esforços imensos, disputas corporais e porretadas, foi inibido quando seus capacetes foram arrancados e atirados em direção ao gramado.
 

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