A Ética Samurai no
Japão Meiji
Gabriel Pinto Nunes
http://www.academia.edu/1111530/A_Etica_Samurai_no_Japao_Meiji
No final do século
XIX, os movimentos conservadores que se proliferavam com o intuito de manter o
poder político exaltavam o tradicionalismo dos camponeses como um comportamento
necessário para barrar a modernização que destruía o velho sistema de subordinação.
Entretanto, o Japão foi um exemplo de país que sofreu um processo de modernização
econômico e político mantendo as relações sociais praticamente intocáveis. Foi um
exemplo de país que conseguiu abolir o sistema de produção feudal adotando o capitalismo
sem abandonar a estratificação social concebida durante os anos de domínio
político dos samurais, conhecido como Período Tokugawa ou Edo (1603-1868).
“Teoricamente, era
possível conceber uma ‘modernização’ que mantivesse a velha organização social
(possivelmente com um pouco de invenção ponderada de tradições), mas fora o
Japão, é difícil encontrar outro exemplo de sucesso na prática”. (Hobsbawm,
2008, p. 274)
Até 1852, o Japão
utilizou uma política isolacionista (
Sakoku
), fechando seus
portos a todos os povos, com exceção dos chineses e holandeses, com quem
continuaram a manter laços comerciais por mais de duzentos anos (JANSEN, 2000).
Tal isolamento do mundo fez com que o poder político do xogunato e a estrutura
social se mantivessem por tanto tempo sem que sofresse nenhum tipo de ataque de
movimentos políticos interessados na reestruturação social do país. No Japão,
ao contrário da Europa, o comércio que originou o capitalismo como o conhecemos
não teve elementos suficientes para surgir, o que justifica ofato de, às portas
do século XX, este ser um dos poucos países do mundo no qual ainda resistia um
sistema de produção similar ao feudal. Juntamente com a abertura dos portos e a
entrada massiva de estrangeiros, chamados de
oyatoi gaikokujin
, para ensinar aos
japoneses as novas técnicas ocidentais a serem utilizadas na nascente
indústria, houve a propagação de missionários protestantes e ideias que não
tiveram um desenvolvimento natural dentro do pensamento nipônico como ocorreu
na Europa. Podemos afirmar que a produção acadêmica japonesa no início do
século XX foi uma cópia daquilo que era feito na Europa, tanto que muito dos
intelectuais que trocaram o confucionismo em favor das filosofias ocidentais as
usavam sem muita preocupação, como senão houvesse problemas em utilizar
argumentos de escolas antagônicas de pensamento. Isso não ocorria por desleixo
ou incompreensão por parte dos japoneses, mas por haver uma ânsia em assimilar
o máximo possível de informações e tentar aplicá-las ao mundo em que viviam. Somente
com Nishida e a Escola de Kyoto houve uma verdadeira estruturação da pesquisa
científica em filosofia no Japão, de maneira organizada baseada principalmente
nos estudos de Heidegger. Até então, tínhamos o desenvolvimento de diversas
doutrinas de pensamento sem que houvesse continuidade posteriormente. Neste
período imediatamente anterior ao de Nishida existiram diversos intelectuais
que tentaram utilizar as filosofias ocidentais como sustentação de pretensões
governamentais, entre as quais podemos destacar a preocupação de unificação
nacional em torno de uma identidade japonesa autêntica. Essa preocupação com a
unificação se devia ao fato de o Japão sempre ter sido um arquipélago composto
de diversos povos com particularidades culturais que os diferenciavam. A aparente
unidade política era mantida por meio de tratados políticos e acordos firmados
ao final de guerras, ajudados pela política isolacionista. Rapidamente, os
japoneses aprenderam com os europeus a importância da unificação como
instrumento de crescimento econômico e
político,
principalmente se existiam interesses na ampliação da influência política na
região ou na dominação militar de outros territórios. O nacionalismo que
pairava sobre a Europa também havia lançado suas garras sobre o Japão, havendo
todo um esforço político para o seu sucesso. Desta forma, o Período Meiji
(1868-1912) ficou conhecido como a época histórica na qual os japoneses
preocuparam-se em reescrever a própria história e reestruturar-se de forma a
abarcar o novo nacionalismo baseado nos modelos europeus. Dos processos
iniciados no Período Meiji com esse propósito nacionalista, podemos destacar: a
elevação do xintoísmo ao patamar de religião oficial do Estado, a releitura do
confucionismo para se readequar ao aparato estatal e social divulgado através
da educação universalizada, a aplicação das ciências exatas ocidentais com o
intuito de modernizar rapidamente o país e o sistema industrial e a extinção da
classe dos samurais com a criação de uma imagem heroicizada deles com o intuito
de desenvolver uma identidade nacional. Em certa medida, tal pretensão
governamental justificava a postura dos primeiros intelectuais nipônicos em
realizar uma cópia, mesmo que às vezes confusa, do que era desenvolvido no
campo da filosofia na Europa. A famigerada Restauração Meiji
(1866-1869),oficialmente, é entendida como a volta do poder político às mãos do
Imperador após mais de duzentos anos de domínio político por parte do Xogum,
enquanto que na prática foi a adaptação do Japão ao novo modelo
econômico-político mundial que privilegiava a continuidade da classe política
que já possuía poder político durante os últimos anos do Xogunato
II
A filosofia no Japão
antes do Período Meiji era em sua maioria decorrente diretamente do confucionismo
chinês. Diversos pensadores desenvolveram trabalhos intelectuais baseados nas
vertentes do confucionismo chinês, do qual hodiernamente ainda há resquícios.
Confúcio viveu entre 551 a 479 a.C., onde encontra-se a atual China, e dedicou
parte de sua vida ao estudo e ensinamentos dos chamados clássicos, livros que
continham a base do conhecimento intelectual da época. Aos olhos dos
ocidentais, como Hegel, o confucionismo era uma filosofia moral (HEGEL, 2001,
p. 182) por não possuir uma parte especulativa. Não podemosnos esquecer de que
Hegel pertencia a uma tradição de pensamento focado no pensamento
metódico e
científico, sem grandes relações com o pensamento mitológico, enquanto que Confúcio,
e boa parte dos pensadores do extremo leste asiático, desenvolveram seus
sistemas de pensamento sem a necessidade dessa cisão.
It fell to the lot of
Confucius (b.c.551 to B.C. 479), at the end of the Shudynasty, to elucidate and
epitomize this great scheme of synthetic labour,worthy of study by every modern
sociologist. He devotes himself to therealization of a religion of ethics, the
consecration of Man to Man. To him,Humanity is God, the harmony of life his
ultimate. Leaving the Indian soultosoar and mingle with its own infinitude of
the sky; leaving empiric Europeto investigate the secrets of Earth and matter,
and Christians and Semites to be wafted in mid-air through a Paradise of
terrestrial dreams — leaving allthese, Confucianism must always continue to
hold great minds by the spellof its broad intellectual generalizations, and its
infinite compassion for thecommon people. (OKAKURA: 1905, p. 27)
Dentro do
confucionismo surge uma concepção que será muito aproveitada durante o Período
Meiji, segundo a qual o homem atingiria a sua consagração como divindade se seguisse
uma vida harmoniosa baseada na ética. Nas mentes ocidentais essa ideia de homem
superior remete imediatamente à obra de Nietzsche, o qual tem em Zaratustra a
figura daquele que procura continuamente o homem superior. A presença da ética
no pensamento confucionista nos revela uma preocupação com a vida em sociedade,
ou seja, parte do princípio de que o homem é por excelência um homem social que
se completa no convívio com o outro. Não muito diferente do proposto pelos
pensadores da Grécia antiga, como Aristóteles, que entendia o homem como um
animal político (
zoon politikon
). Contudo, a diferença
entre o pensamento confucionista e o aristotélico se dá com o uso do mito,
enquanto Confúcio enfatizava a conotação deífica que o homem poderia vir adquirir,
mais sublime e menos terrestre, Aristóteles preferia o entendimento do homem
como animal político, mais terrestre e menos sublime.
2
No Japão, podemos
destacar duas correntes do confucionismo que se sobrepuseram as demais desde o
Período Tokugawa e que influenciaram profundamente o pensamento ético no Período
Meiji: (a)
Chu Hsi
ou
Zhu Xi
(1130-1200) a qual
ficou conhecida no Japão como Sorai por ter sido difundida principalmente por
Ogyû Sorai
(1666-1728) e a (b)
Wang Yang
Ming
(1472-1529) chamada
de Ôyômei e difundida no arquipélago por
Motoori Norinaga
(1730-1801).
It’s very attitude,
that of inquiry, prevents it from crystallizing into anysingle solution of
Confucianism. Some of its adherents, like Sorai, go as far as to maintain that
Confucius was purely a political philosopher and not ateacher of ethics. Some,
on the other hand, like Yamaga-Soko, to whom weowe the development of the
Samurai Code on a Confucian basis, found inJapanese institutions the expression
of the moral law of the Chinese sage.Yet however they differed individually in
their conclusions, they united in being heretical toward the orthodox Tokugawa
notions, and all were objectsof disapprobation to the authorities,—Yamaga-Soko,
who commanded aconsiderable following, being banished from Yedo to the distant
andinsignificant daimiate of Akho. Yet even during his confinement there his
personality inspired the well-known Forty-seven Ronins to attempt their
memorable feat of loyalty, remarkable not only as revealing a new ideal of
samurai-hood, but eloquent in its silent protest against the Tokugawa
regime.(OKAKURA: 1904, pp. 72-73)
A corrente
confucionista Sorai defendia dois princípios básicos: o
Qi
como força vital e o
Li
como princípio
racional. O desenvolvimento delas se daria a partir da ação do homemno mundo.
Por exemplo, a bondade era entendida como inata aos homens e o culto à moral trazia
clareza ao
Qi
. Uma atitude humana
somente pode ser entendida como boa ou má por meio de um sistema ético. Como
visto anteriormente, a ética no confucionismo era algo necessário para a
existência do homem que apenas vive e existe em comunidade ou sociedade.
Atitudes que resultassem em atos de bondade seriam benéficas ao homem, pois
limparia a força vital (
Qi
) de qualquer
impureza, aproximando o homem de atingir o seu ideal de homem superior. Nessa
vertente era admitido que mesmo os que agissem imoralmente não poderiam ter
suas atitudes julgadas como más, pois o princípio supremo regulador é bom, ou seja,
por pior que fosse a atitude, o motivado de tudo residia no bem. Para que isso
pudesse se concretizar, assumiam que o conhecimento e a ação eram componentes
indivisíveis da atividade verdadeiramente inteligente do homem, sendo a ação
mais importante. Porém, o conhecimento deveria vir em primeiro lugar na ordem
natural das coisas porque a moral aos homens era inata.
Yamaga Soko
(1622-1685) foi um
filósofo e estrategista militar japonês que baseou todo o seu pensamento na
corrente Sorai. Com o objetivo de possibilitar aos samurais que atingissem a
condição de homem superior, acabou por ser o primeiro a ‘compilar’ o primeiro código
de normas, ou sistema ético, para a classe dos guerreiros japoneses, que
conhecemos hodierna como
bushidô
. Foi mestre de
Daidoji Yuzan
(1639-1730), autor de
uma obra sobre o
bushidô dos samurais
na qual encontramos a busca do equilíbrio entre o militar
e a cultura
4
.Foi escrita em uma
época na qual os guerreiros poderiam ter sumido por não serem mais necessários,
visto que os conflitos haviam quase cessado completamente. Mas Yuzan faz uma abordagem
na qual mostrava que a existência dos samurais não se resumia a fins
bélicos.Afirma que em tempos de paz o cavaleiro deveria se dedicar ao estudo da
caligrafia, aperfeiçoamento das artes bélicas entre outras atividades,
abandonando a figura dos primeiros guerreiros japoneses das guerras civis,
analfabetos e rudes. Dentro da sua obra, cria duas ordens com duas divisões
cada: a primeira ordem se divide em oficiais e soldados e a segunda, em
exército e assuntos de batalhas. Notamos haver preocupações
marciais,ocupando-se da formação do corpo do exército para depois preocupar-se
com a batalha. Yuzan ressalta serem essenciais três qualidades ao guerreiro: a
lealdade, a boa conduta e o valor (YUZAN, 2004, p. 31). A obra se resume a um
manual com regramento para a classe samurai, não podendo ser chamado de uma
compilação ética ou moral. Há grande preocupação com a etiqueta seguida pelos
samurais no cotidiano, ou seja, ênfase nas relações sociais e regras de etiqueta,
com ausência da exposição de qualquer rito cerimonial específico ou explicação aprofundada
dos conceitos usados. Essa característica estritamente prática de pensadores como
Yuzan com a postura dos samurais é decorrente da interpretação do confucionismo
Sorai no qual a ética seria o caminho para se atingir o homem superior. A ética
assume um caráter muito específico de regramento da vida sem a necessidade de
dar sentido às coisas ou de ser utilitarista.
The second school,
which started at nearly the same time as the first, iscalled the School of
Oyomei, from the Japanese pronunciation of Wangyangming, the name of its
founder. This remarkable man was a greatgeneral as well as scholar who lived in
China at the beginning of thesixteenth century, under the Ming dynasty. He
never ceased to discourseeven during the brilliant campaigns in which he was
victorious over therebels in Southern China. His philosophy was an advance on
the Neo-Confucianism of Shiuki, whose doctrines, however, he accepted in the
main.His principal contribution lay in his definition of knowledge. With him
allknowledge was useless unless expressed in action. To know was to be.Virtue
was real in so far only as it was manifested in deeds. The wholeuniverse was
incessantly surging on to higher spheres of development,calling upon all to
join in its glorious advance. To realize their teachings itwas necessary to
live the life of the sages themselves, to consecrate one'
whole energy to the
service of mankind. Thus he brought Confucianismagain into its true domain,
that of practical ethics. (OKAKURA: 1904, pp.74-75)
A vertente Ôyômei foi
a que mais teve influência no Período Tokugawa tardio e no Período Meiji. Tal
corrente de pensamento afirmava que o conhecimento era intuitivo, não racional
e inato a todos os homens, ao contrário da corrente Sorai, que afirmava ser a
bondade inata ao homem. Isso gera diferenças de interpretação, visto que a
Ôyômei admitia uma leitura mais abrangente que a Sorai: o homem não tinha
conhecimento apenas da bondade,mas de tudo que fosse pertencente ao campo da
moral. Há o reforço do caráter virtuoso doshomens de que todos nasciam
conhecendo a diferença entre o bem e o mal, afastando a ideia de que o agir
virtuoso fosse algo adquirido pelo hábito. Também afirmavam que o conhecimento
e a ação eram duas coisas distintas, mas que deveriam ser entendidas como algo
único devido à condição de dependência entre ambas para que pudessem existir,
uma consequência direta da condição humana de possuir conhecimento inato. Por
tê-lo, o homem sempre seria agente da ação, eliminando a possibilidade de
passividade humana. Aquele que não atua no meio social não teria conhecimento,
mas como todos têm esse conhecimento desde o nascimento, deveriam agir, sendo
impossível encontrar alguém que não agisse e detivesse conhecimento inato sobre
o bem e o mal. Nesses termos, os samurais, tendo conhecimento moral, eram
obrigados a exercerem atitudes corretas na sociedade, daí o argumento para
criticar aqueles que agissem imoralmente ou que cometessem crimes. A moral se
baseava na garantia incondicional de que todos sempre procurariam agir
corretamente.
III
Durante o Período
Meiji, a criação e uso do sistema ético dos samurais no Japão adotou uma
finalidade que ia além da sistematização de valores morais como regramento da vida
cotidiana, foi também um meio de difusão da política nacionalista que ainda
nessa época não apresentava as características fascistas que viria a ter
durante o Período Taisho e Período Showa. O bushidô
foi um termo cunhado
para representar a ética dos samurais japoneses e podemos assumi-la como
releitura de termos como
shidô
e
kakun
com a finalidade de
auxiliar na criação de uma identidade nacional para a unificação de todos os
povos do arquipélago
nipônico. O processo
de unificação nacionalista do Japão partia de uma imagem idealizada de herói,
encontrada no samurai, a qual fornecia uma releitura confucionista dos códigos
de condutas desses guerreiros como base da ética seguida pelas pessoas.Houve um
processo pelo qual o bushidô deixou de ser apenas o conjunto de preceitos morais
seguidos pelos guerreiros, formado por normas e instruções desenvolvidas
segundo os interesses e valores dos clãs aos quais pertenciam, para tornar-se a
ética do povo japonês independente da classe social que ocupasse. Essa
releitura do bushidô fazia parte de um movimento conservador que não propunha
mudanças sociais, visto que incentivava a hierarquia social proveniente do
sistema feudal, nem fazia referências a qualquer aspecto político. A
Restauração Meiji em si foi um movimento conservador tendo em vista que as mudanças
no campo político beneficiaram grande parte da classe política existente, concentrando
os esforços na substituição do sistema de produção econômico. Por causa da
pluralidade de clãs e famílias que tinham samurais prestando serviços,fica
difícil afirmarmos qual vertente do confucionismo predominava ao final do
PeríodoTokugawa. Autores como
Inoue Tetsujirô
(1855-1944) adotaram
como fundamentação ética o pensamento confucionista Ôyômei, baseado em Motoori
Norinaga.
Tetsuro Watsuji
(1889-1960), como Inoue, era defensor dessa
vertente e se contrapunha à interpretação de
Inazo Nitobe
(1862-1933) sobre o
bushidô e o acusava de fazer uso da vertente Sorai, além de inserir muito
valores ocidentais e cristãos na sua versão da ética japonesa. A versão de
Nitobefoi a primeira a chegar ao ocidente após a abertura dos portos por meio
da obra
Bushido – The Soul of Japan
, publicada em 1899
nos Estados Unidos. As interpretações de Inoue e Watsuji chegaram à Europa
posteriormente por publicações traduzidas. Uma das últimas versões do bushidô a
ser difundida no mundo foi a tradução e comentários de
Yukio Mishima
(1925-1970), a obra
Hagakure
de Yamamoto
Tsunetomo, que podemos interpretar como uma reinterpretação ultranacionalista
do bushidô de Inoue. Contudo, todos compartilham da mesma ideia de bushidô:
como sendo um código de conduta seguido pelos samurais.
Bushido, then, is the
code of moral principles which the knights wererequired or instructed to
observe. It is not a written code; at best it consists of a few maxims handed
down from mouth to mouth or coming from the pen of some well-known warrior or
savant. More frequently it is a code unutteredand unwritten, possessing all the
more the powerful sanction of veritabledeed, and of a law written on the
fleshly tables of the heart. It was foundednot on the creation of one brain,
however able, or on the life of a single
personage, however
renowned. It was an organic growth of decades andcenturies of military career.
(NITOBE: 1972a, p. 25)
Devemos ter em mente
que o termo como nos é apresentado, bushidô, é uma construção do Período Meiji,
sendo difícil encontrarmos na literatura anterior a essa época noJapão
referência explicitas ao termo. A forma mais conhecida era a de
kakun
6
, entendida como
preceitos familiares que deveriam ser seguidos por todos os que fizessem parte
de determinado clã ou família. Podemos tomar como exemplo as artes marciais
japonesas, agregadas como
budô
no mesmo período, as
quais um praticante, ao tomar aulas com um instrutor, passava a fazer parte da
família, ou seja, a organização por clã ainda era comum no Japão e tal
concepção perdurou após o Meiji. A interpretação de Inoue sobre o termo bushidô
com influência do confucionismo
Ôyômei
foi utilizada para
reforçar o nacionalismo até 1903. Dessa data em diante passou a ter um tom mais
agressivo e serviu de apoio ao movimento imperialista japonês. A ética dos samurais
foi utilizada por Inoue para pregar a unicidade da cultura japonesa e a
superioridade frente às demais, transformando-a em propaganda e incentivando a
discussão sobre a ética marcial (BENESCH, 2011, p. 173). Segundo Benesch, a
leitura do bushidô de Inoue deve seguir cinco pontos:
Inoue’s
bushidō
theories were marked
by five primary elements: a closerelationship with the military as an educator
and ideologist; ultranationalismand the emphasis on a unique Japanese spirit;
pronounced anti-foreignismframed in the rhetoric of Japanese superiority;
aggressive intolerance of other views as a self-appointed defender of
“orthodoxy”; and the exaltationof Yamaga Sok
ō
as one of the most
important thinkers in Japanese history.(BENESCH: 2011, 177)
A postura de Inoue
estava mais próxima das pretensões políticas japonesas da época,diferentemente
da versão de Nitobe que propunha a cooperação internacional entre os países
O apoio ao
militarismo no Japão era explícito nas obras mais tardias, pois entendia que
esse seria o melhor caminho para que o país pudesse buscar novas fontes de
energia, tendo em vista que o arquipélago não possui recursos naturais em
abundância se comparado aos países vizinhos e continentais. Ele também apoiou o
surgimento do ultranacionalismo baseado em uma concepção pura do ser japonês,
excluindo qualquer interferência estrangeira, principalmente o cristianismo,
que julgava incompatível com a forma de pensar autêntica dos japoneses. Tudo
isso ajudava a alimentar um forte xenofobismo, fazendo com que sua interpretação
do bushidô se aproximasse do fascismo. Como apontado por Benesch (2011), a
postura política de Inoue sempre foi concordante com os objetivos
governamentais,exemplificado pela sua postura contrária ao suicídio em meados
dos anos 1903, mas até ofinal da década de 1920 mudou completamente, entendendo
que o suicídio quando praticado por militares ou civis seriam sinônimos de
austeridade e amor quando praticados em benefício da pátria.Vemos o uso
instrumental da concepção de ética para Inoue, cujo foco principal é a
propaganda nacionalista xenófoba. Nitobe, por sua vez, fez um discurso
conciliador, com o intuito de aproximar os países de cultura ocidental com o
Japão. Em seus discursos, privilegiava a cooperação internacional e não a
imposição de vontade de uma ou outra nação.Enquanto representante do Japão na
Liga das Nações, de 1920 até 1926, defendeu seus argumentos sem contar com
total apoio do governo japonês, sendo esse um dos principais motivos para o seu
desligamento desse cargo. Em textos posteriores, afirmava que o Japão deveria
evitar o militarismo e o comunismo, pois tanto um como outro levariam à ruina
do país. Entendia que para o Japão se tornar uma potência econômica era
necessário estabelecer alianças políticas com as principais potências
econômicas mundiais, além de incorporar algumas pequenas mudanças sociais e
políticas para facilitar a aceitação do Japão. Notamos que Inoue e Nitobe
defendiam posições inconciliáveis, porém, compartilhavam o bushidô como sistema
ético.
A versão do bushidô
de Nitobe se tornou mais difundida no ocidente, e um dos principais pontos que
chamam atenção na obra é a presença da imagem idealizada do samurai como um
herói nacional que deveria servir de modelo de identidade nacional a todos os
japoneses visando à unificação de todos os povos do arquipélago. Nesse aspecto,
temos a aproximação de sua obra com o idealismo romântico de Carlyle, tendo em
vista que esse processo de identificação do samurai como um ser iluminado, um
homem superior que tem como objetivo atingir a plenitude de caráter ao mesmo
tempo em que ilumina todas as boas almas, é comum ao movimento romântico
alemão.Outro aspecto da obra de Nitobe são os flertes com a obra Reflexões
sobre a Revolução em França de Edmund Burke por haver a defesa do continuísmo
da classe aristocrática japonesa por meio da hereditariedade. Temos a defesa da
propriedade privada e que por meio da desigualdade entre os homens causada pela
existência de uma estrutura social hierarquizada seria o meio de garantir a
continuidade da propriedade.
“O poder de perpetuar
nossa propriedade em nossas famílias é um de seuselementos mais valiosos e
interessantes, que tende, sobretudo, à perpetuaçãoda própria sociedade.”
(BURKE: 1982, 83)
Contudo, a ética dos
samurais pela visão de Nitobe não seria apenas a defesa de um historicismo
conservador, sendo a sociedade algo imutável e cristalizado no tempo. Diferentemente
de Inoue, nessa abordagem do bushidô encontramos a influência do evolucionismo
social de Herbert Spencer, que atuará de duas maneiras dentro da obra:
primeira, as virtudes cultivadas pelos samurais deveriam ser entendidas como
indício do
contínuo processo de
evolução social inclusive dentro da sociedade industrializada e,segunda, o
caráter conservador era fruto direto desse processo de evolução, afastando qualquer
interpretação de que a ética como proposta pelo autor poderia assumir aspectos negativos.Assim,
podemos resumir que o bushidô de Nitobe propôs uma ideologia construída artificialmente
com traços de historicismo conservador e nacionalismo romântico, utilizada para
fomentar a criação de uma identidade nacional em todo o arquipélago com o
intuito de unificá-lo, surgindo uma nação forte, sem se debruçar aos apelos do
fascismo ou do imperialismo. Tanto o bushidô de Nitobe quanto o de Inoue ou de
seus contemporâneos nunca tiveram um uso real, ou seja, nunca foram utilizados
pelos samurais japoneses durante a era feudal
IV
Vemos que a “ética
samurai” desenvolvida no Japão durante o Período Meiji foi uma construção
intelectual tendo como base o confucionismo. Dentro do contexto histórico em
que surgiu, teve dois papéis: dar regramento à vida dos cidadãos e ser um
instrumento para a criação da identidade nacional. Ambos os papéis contribuíram
com a política nacionalista desenvolvida pelo governo japonês.A versão do
bushidô de Nitobe foi voltada exclusivamente ao público ocidental. As
interpolações cristãs e referências ocidentais facilitaram o processo de
divulgação dos valores japoneses, favorecendo indiretamente o estabelecimento
do contato entre Japão e os países ocidentais, que culminaria com acordos
econômicos e políticos. Também foi responsável pela construção idealizada do
samurai e do cidadão japonês e ainda tem influência na versão hodierna do
indivíduo japonês.Inoue, ao contrário de Nitobe, estava mais preocupado com
questões ligadas à política japonesa. Por isso, podemos afirmar que a sua
leitura da “ética samurai” expressada pelo bushidô tinha como objetivo
principal responder aos anseios da política militarista eimperialista japonesa.
No fim da vida, seu discurso ajudou a cunhar o pensamentoultraconservador no
Japão, algo que somente findou com a morte de Yukio Mishima.Comparado com
Nitobe, Inoue fez uma construção mais artificial e frágil, sendo
possívelnotarmos volatilidade dos conceitos usados ao longo de toda sua obra
devido às drásticas
mudanças de postura
referente a assuntos complexos como o suicídio, defendido nos últimostextos
como expressão da grandiosidade de caráter e do espírito guerreiro japonês.
È qui evidente il
tentativo di instaurare un dibattito interculturale fra Orientee Occidente
sulla base dell’ammissione dell’inferiorità della culturagiapponese nei
confronti di quella europea, in pieno acordo con la volontà diconfronto che
anima in parte ancora il tardo período Meiji. Il bushidô, le cuivirtù sono
tutte di carattere “sociale” è destinato a scomparire in un’epoca incui si è
spostato l’accento sul valore dell’individuo, e si sono introdotte lefilosofie
che su di esso si basano (principalmente l’utilitarismo e ilmaterialismo
empirista di stampo inglese) con le quali soltanto ilcristianesimo, con il suo
codice morale “individualistico”, può convivere. Laconvergenza fra gli ideali
del bushidô e quelli del cristianesimo è possibile perché esiste una
sostanziale “identià moralle della specie umana, nonostantei tentative
costantemente fatti per rendere più grande possibile la distinzionefra
cristiani e pagani”. Il modo in cui Nitobe intende affrontare il problemadel
dibattito interculturale può essere meglio chiarito tramite il ricorso a
dueesempi di comparazione fra i costumi giapponesi e quelli
occidentali.(MONCERI: 2000, 51)
Nessas versões do
confucionismo de um ponto de vista marcial japonês do século XX,temos a
construção de uma identidade nacional voltada à unificação dos povos que
habitavamo arquipélago nipônico. O samurai é reinterpretado como o herói
nacional, aquele que serviráde modelo às gerações futuras, guiando-os em um
caminho de rigor moral rumo ao estadomais elevado da condição humana e da vida
em sociedade.
Referências
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