Eugenie Herrigel
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I
Estabelecer, à primeira vista, um
paralelo entre o tiro com arco (seja qual for o conceito que dele se tenha) e o
Zen parece ser uma intolerável depreciação deste último. Embora, com generosa
complacência, aceitemos para o tiro com arco a qualificação de arte,
dificilmente alguém irá nela buscar outra coisa além da prática de um esporte.
Se assim pensar o leitor, esperará encontrar neste livro um relato sobre
façanhas assombrosas dos arqueiros japoneses, que gozam do privilégio de contar
com uma tradição venerável e ininterrupta do manejo do arco e da flecha. Apenas
há algumas gerações, o Extremo Oriente trocou os antigos meios de combate por
armamentos modernos, mas esse fato não impediu que eles continuassem presentes
na vida daqueles países. Pelo contrário, são cada vez mais amplos os adeptos
dedicados a tais práticas.
Não se poderá, então, esperar uma
descrição do modo peculiar da prática do tiro com arco, tal como ele é
praticado e consagrado no Japão como esporte nacional ? Não, porque esta
suposição está distante da realidade. O tiro com arco, no sentido tradicional,
isto é, respeitado como arte e honrado como preciosa herança cultural, não é
considerado pelos japoneses como simples esporte que se aperfeiçoa com um
treinamento progressivo, mas como um poder espiritual oriundo de exercícios nos
quais o espiritual se harmoniza com o alvo. No fundo, o atirador aponta para si
mesmo e talvez em si mesmo consiga acertar.
Para muitos leitores, essa abordagem
pode parecer enigmática. Como é possível que o tiro com arco, praticado no
passado como lutas mortais e sem se ter mantido sequer como esporte nacional,
tenha se transformado num sutil exercício espiritual? Para que servem, então, o
arco, a flecha, o alvo? Não se estará renegando a antiga, viril e honesta arte
do tiro com arco, ao transformá-la em algo nebuloso e impreciso, quase
fantástico?
É preciso lembrar que, depois de
perdida toda a utilidade nos combates e competições, o espírito dessa arte se
manifestou de maneira nítida e espontânea. Assim, é um erro afirmar-se que esse
espírito tenha surgido recentemente, uma vez que sempre foi inerente ao tiro
com arco, desde os seus primórdios. Mas sua técnica (depois de ter perdido
qualquer importância para o combate) não se converteu num passatempo ameno, sem
sentido e seriedade. A Doutrina Magna do tiro com arco nos diz outra coisa.
Segundo ela, desde os seus primórdios, trata-se de uma questão de vida e morte,
na medida em que é uma luta do arqueiro consigo mesmo. Essa forma de luta não é
uma medíocre contrafacção, mas sim o que inspira e sustenta toda a luta contra
o mundo exterior e, talvez, contra um adversário de carne e osso.
A natureza misteriosa dessa arte se
revela unicamente neste combate do arqueiro contra ele mesmo, e por isso seu
ensinamento nada tem de essencial, se prescindir da aplicação prática daquilo
que em seu tempo exigiam as lutas cavalheirescas.
Quem se dedicar, nos dias de hoje,
a esta arte, tem a vantagem de não sucumbir à tentação de ofuscar ou
simplesmente impedir — com a proposição de fins utilitários — a compreensão da
Doutrina Magna, por mais que oculte de si mesmo esses fins. Porque, e nisso
estão de acordo os mestres arqueiros de todos os tempos, a verdadeira
compreensão dessa arte só é possível àqueles que dela se aproximam com o
coração puro, despido de qualquer preocupação. Se se perguntar, desse ponto de
vista, aos mestres arqueiros japoneses sobre esse enfrenta-mento do arqueiro
consigo mesmo, sua resposta soará mais do que misteriosa. Porque para eles o
combate consiste no fato de que o arqueiro se mira e no entanto não se atinge,
e que por vezes ele pode se atingir sem ser atingido, de maneira que será
simultaneamente o que mira e o que é mirado, o que acerta e o que é acertado.
Ou, para nos utilizarmos de uma expressão cara aos mestres, é preciso que o
arqueiro, apesar de toda a ação, se converta num ser imóvel para, então, se dar
o último e excelso fato: a arte deixa de ser arte, o tiro deixa de ser tiro,
pois será um tiro sem arco e sem flecha; o mestre volta a ser discípulo; o
iniciado, principiante; o fim, começo, e o começo, consumação.
Para os ocidentais,
habituados a conceitos mais claros, tais formulações — familiares aos
habitantes do Extremo Oriente — são de difícil apreensão, levando quase sempre
à perplexidade. E por essa razão que convém irmos buscar sua origem longínqua.
Não é nenhum segredo o fato de
que no Japão as artes têm no budismo a sua raiz comum. Essa constatação é
válida tanto para a arte dos arqueiros, como para a pintura, para a arte
dramática, da esgrima, da cerimônia do chá e dos arranjos florais. Isso
significa, em primeiro lugar, que todas essas artes pressupõem — e, segundo sua
índole, cultivam conscientemente — uma atitude espiritual que em sua forma mais
elevada é característica do budismo, e determinam as características essenciais
que devem ter os sacerdotes que as difundem.
E importante
lembrarmos que ao, falar em budismo, não temos em mente o budismo meramente
especulativo (que, por ter sido divulgado em livros e artigos acessíveis, é o
único que o Ocidente conhece), mas o budismo dhyanas, chamado de Zen no Japão.
Mesmo naqueles que supõem conhecê-lo baseados em experiências marcantes e
poderosas, os órgãos habituais da compreensão não conseguem captá-lo, pois ele
não é uma simples especulação, mas experiência única que o intelecto não pode
conceber. Em resumo: só o conhece quem o ignora.
Com o objetivo de vivenciar essas
experiências, o budismo Zen segue por caminhos que, através de um recolhimento
metódico e sistemático, conduzem o homem a perceber, no mais profundo da sua
alma, o inefável que carece de fundo e de forma. Em relação ao tiro com arco, isso
significa (expresso de maneira bastante aproximada e talvez por isso passível
de uma interpretação errônea) que os exercícios espirituais suscetíveis de
constituir uma arte da técnica esportiva sejam exercícios místicos. O tiro com
arco não persegue um resultado exterior, com o uso do arco e da flecha, mas uma
experiência interior, muito mais rica.
Arco e flecha são, por assim
dizer, nada mais do que pretextos para vivenciar algo que também poderia
ocorrer sem eles; pois são apenas auxiliares para o arqueiro dar o salto último
e decisivo6. Assim, nada melhor nos ocorre do que recorrer a exposições dos
adeptos do Zen com o objetivo de nos aprofundarmos na compreensão desse
assunto. Assim, por
exemplo, D. T.
Suzuki, em seus Essays on Zen-Buddhism7, demonstrou que
a cultura japonesa e o Zen estão intimamente ligados, de maneira que as artes
japonesas, a atitude espiritual do samurai, o estilo de vida nipônico e até
certo ponto sua moral, sua estética e sua postura intelectual estão fortemente
impregnadas dos fundamentos do Zen. Por isso, são quase incompreensíveis para
quem não esteja familiarizado com ele.
Os livros de Suzuki, bem como
os de outros estudiosos do assunto, têm despertado um interesse significativo.
Todos concordam que o budismo dhyana — nascido na índia, e que depois de muitas
transformações atingiu sua maturidade na China — foi adotado e cultivado pelo
Japão, que dele fez uma tradição viva que subsiste até hoje. É com essa maneira
Zen de viver que nós iremos nos familiarizar.
Porém, em que pesem os esforços
empreendidos pelos divulgadores do Zen, é inegável que continua sendo muito
pouco o que nós, ocidentais, temos conseguido apreender da sua essência. Como
se se opusesse a toda penetração, nossas tentativas de explorá-lo mediante a
intuição e a empatia logo se deparam com obstáculos intransponíveis. Envolto em
trevas espessas, o Zen se nos apresenta como o
enigma mais estranho
proposto pela vida espiritual asiática: insolúvel e, não obstante,
irresistivelmente atraente.
A origem dessa penosa impressão
de inacessibilidade iremos encontrar na maneira como se tem apresentado o Zen
aos não-asiáticos. Nenhuma pessoa razoável irá exigir do budista zen, que vive
na verdade inconcebível e inexprimível, que ele tente apresentar sequer um
esboço das experiências que o libertaram e transformaram. Isso porque o Zen
está aparentado com o mais puro e contemplativo misticismo. Quem jamais teve
experiências místicas, está e ficará excluído. Essa lei, que rege todo
misticismo genuíno, não admite exceções, e o fato de que se dispõe de um número
muito grande de textos sagrados não entra em contradição com ela, já que estes
têm a peculiaridade de revelar seu sentido vivificante unicamente a quem já
vivenciou todas as experiências decisivas, de maneira que seja capaz de extrair
daqueles textos a confirmação daquilo que, independentemente deles,
experimentou.
Por outro lado, para o neófito,
aqueles textos nada significam, pois ele é incapaz de ler nas entrelinhas, o
que lhe causará grande confusão, mesmo que deles se aproxime com a maior
delicadeza e com o esquecimento de si mesmo. O Zen, como toda mística, é
acessível apenas ao verdadeiro místico, ou seja, a alguém que não está exposto
à tentação de obter, de maneira sub-reptícia, o que a própria experiência
mística nega.
Outrossim, a existência de alguém
que foi purificado pelo "fogo da verdade" é
suficientemente convincente para
que se possa fazer pouco caso dela. Assim, não exige muito quem, cedendo a
impulsos de uma grande afinidade espiritual, e em busca do poder que produz
resultados tão poderosos (não falamos aqui do mero curioso, é óbvio), espera
que o zen-budista descreva, pelo menos, o caminho que o conduziu à sua meta.
Nenhum místico, nenhum
zen-budista será mais o mesmo depois que houver dado o primeiro passo e atingir
sua autoperfeição. Quantas coisas terá de vencer e deixar para trás até que,
por fim, encontre a verdade... Quantas vezes será acometido, durante sua
caminhada, da sensação de estar aspirando o impossível... E, não obstante,
chegará o dia em que o impossível se transformará no possível e, mais ainda, no
natural. Então, não será lícito esperarmos uma descrição minuciosa de tão longa
e cansativa jornada que nos permita, pelo menos, perguntar se nos atreveremos a
percorrê-la?
Porém, tais descrições faltam
quase que por completo na literatura Zen. Isso se deve, por um lado, ao fato de
que o adepto do Zen se recusa sistematicamente a oferecer uma espécie de Manual
para alcançar a bem-aventurança, pois sabe pela própria experiência que ninguém
é capaz de percorrer o caminho do Zen e nem chegar ao seu final sem a ajuda de
um mestre. Sabe também como é decisivo que suas vivências, vitórias e
transformações, embora suas, sejam vencidas e modificadas muitas e muitas
vezes, até que tudo o que seja seu tenha sido aniquilado.
É somente a esse preço que ele
pode encontrar a base da experiência que, sintetizada na verdade universal, o
desperta para uma vida que não mais será sua vida pessoal, cotidiana.
Transmudado a esse estado, ele vive sem que seja ele que esteja vivendo.
Compreende-se, assim, por que o
adepto do Zen evita falar de si mesmo e da sua evolução. Não porque o considere
uma tagarelice imodesta, mas porque vê nisso uma traição ao espírito do Zen. A
simples decisão de dizer qualquer coisa a respeito do Zen exige um sério exame
de consciência, pois tem diante de si o célebre exemplo de um dos maiores
mestres que, interrogado sobre a natureza do Zen, permaneceu em silêncio,
imutável como se nada tivesse ouvido. Assim, é concebível que o adepto
verdadeiro sucumba à tentação de prestar contas sobre o que deu de si e sobre o que não lhe faz falta.
Diante disso, seria
irresponsável de minha parte oferecer fórmulas complicadas e paradoxais,
expostas em palavras de efeito. Meu desejo é, ao contrário, fazer reluzir a
essência do Zen através do modo como se manifesta numa das artes por ele
eleita. Esse reluzir não é, porém, a iluminação, na acepção de um termo tão
fundamental para o Zen, mas insinua, pelo menos, a presença de algo, como o
súbito clarão de um relâmpago longínquo que vemos através da neblina espessa8.
Apreendida deste modo, a arte do tiro com arco representa, por assim dizer, um
curso preparatório ao Zen, pois graças a ela é possível que um acontecimento à
primeira vista incompreensível se torne transparente, o que por si mesmo antes
era impossível.
Do ponto de vista factual,
partindo de cada uma das artes mencionadas anteriormente, é possível iniciar-se
uma caminhada com destino ao Zen. Contudo, parece-me que posso alcançar minha
meta de maneira mais eficiente se descrever a trajetória percorrida por um
discípulo da arte dos arqueiros.
Durante quase seis
anos de permanência no Japão, fui instruído por um dos mais eminentes mestres
daquela arte. Tratarei, aqui, de expor os acontecimentos ocorridos durante tão
longo aprendizado de maneira mais clara possível, pois estarei falando da minha
experiência pessoal. Mas para ser compreendido, ainda que de maneira aproximada
— porque mesmo a instrução preliminar oferece muitos enigmas —, nada mais posso
fazer além de relatar com detalhes todos os obstáculos que tive que vencer e
todas as inibições que fui obrigado a superar, antes de conseguir penetrar no
espírito da Doutrina Magna.
Falo de mim mesmo porque não vejo
outra possibilidade de atingir a minha meta. Pela mesma razão, limitar-me-ei a
descrever o essencial, para que ele se destaque com maior nitidez. E
abster-me-ei deliberadamente de descrever o ambiente onde se realizou meu
aprendizado e de evocar cenas fixadas na minha memória e, sobretudo,
de esboçar a figura
do meu mestre, em que pese o fascínio que ele ainda exerce em mim.
Limitar-me-ei a descrever a arte do tiro com arco, tarefa muitas vezes mais
difícil do que sua própria aprendizagem. E levarei minha exposição até o ponto
em que se vislumbram os remotos horizontes por trás dos quais o Zen respira.
II
C abe-me explicar por que me
dediquei ao estudo do Zen e por que, a fim de me facilitar seu estudo, me
propus a aprender a arte dos arqueiros. Já nos meus tempos de universitário,
como que animado por um misterioso impulso, ocupava-me com o estudo do
misticismo, não obstante viver numa época que demonstrava pouco interesse por
tais inquietações. Mas apesar de todos os meus esforços, sempre tive
consciência de que não poderia apreender os ensinamentos místicos de um ponto
de vista externo. Eu era capaz, é verdade, de compreender o que se pode chamar
de fenômeno místico primário, mas não me era possível transpor o círculo que,
como uma alta muralha, cerca o misterioso.
Na abundante literatura sobre o
misticismo, não encontrei o que buscava, e assim, desiludido e desanimado,
cheguei à conclusão de que só quem verdadeiramente se isola é capaz de aprender
o que significa isolamento, e só quem leva uma vida contemplativa está
completamente livre e desprendido de si para a união com o "Deus
supradivino". Eu compreendera que não havia outro caminho que conduzisse
ao misticismo, a não ser o da própria vivência e o do sofrimento. Se faltam
essas premissas, fica apenas o inconseqüente palavrório.
Como se chega a ser
místico? Como se alcança o estado do verdadeiro isolamento? Separado dos
grandes mestres pelo abismo dos séculos, o homem moderno, cujas condições de
vida são tão peculiares, poderá encontrar um caminho de acesso? Minhas
perguntas permaneciam sem respostas satisfatórias, embora eu soubesse da
existência de etapas e de estações de um caminho que prometia conduzir-me ao
meu objetivo final. Mas para percorrê-lo faltavam instruções metodológicas
precisas que pudessem, pelo menos durante algum tempo, substituir o mestre.
Porém, mesmo supondo que tais instruções existissem, seriam elas suficientes?
Será que elas só poderiam criar em nós a predisposição de receber aquilo que
nem a melhor metodologia pode oferecer, de modo que nenhuma preparação dada
pelo homem é capaz de impor à força a vivência mística? Diante de mim, as
portas permaneciam fechadas, mas eu não poderia deixar de forçá-las. E, quando
o desejo que eu teimava em manter ia desapare cendo, eu ansiava que ele
voltasse com maior intensidade.
Assim, logo depois de ter sido
designado professor-adjunto, quando me foi oferecida uma cátedra de história da
filosofia na Universidade Imperial de Tohoku, recebi, com particular alegria, a
oportunidade de conhecer o Japão e os japoneses e de entrar em relação com o
budismo, suas práticas contemplativas e sua mística. Eu já sabia que existiam
no Japão uma tradição cuidadosamente conservada, uma prática viva do Zen, uma
didática consagrada pelos séculos e, o mais importante, mestres possuidores de
uma assombrosa experiência na arte de orientação espiritual.
Tão logo me instalei
provisoriamente no meu novo ambiente, tratei de concretizar os meus desejos. De
início, trataram de me dissuadir, não sem mostrar grande perplexidade. Afinal,
não se tinha notícia de algum europeu que se houvesse dedicado seriamente ao
Zen e, como ele só poderia ser transmitido pela prática, eu não iria me
conformar em receber apenas ensinamentos teóricos.
Perdi muito tempo antes que
compreendessem por que queria dedicar-me ao Zen não-especulativo... Então me
informaram que, para um europeu, seria pouco menos do que inútil tratar de
penetrar no âmbito da vida espiritual asiática, a mais estranha do planeta, a
não ser que eu começasse a estudar uma das artes japonesas vinculadas ao Zen. A
idéia de ter que cursar uma espécie de escola primária me assustou. Eu estava
disposto a fazer qualquer concessão para poder aproximar-me paulatinamente do
Zen, e até o mais penoso desvio era preferível à ausência de um caminho.
Minha mulher aderiu,
sem muita hesitação, ao estudo de arranjos florais e à pintura, enquanto que
para mim era atraente o tiro com arco, pois eu supunha (erradamente, como
descobriria mais tarde), que minhas experiências com fuzil e pistolas seriam
úteis.
Pedi a um dos meus colegas, Zozo
Komachiya, professor de direito que, desde os vinte anos de idade, tomava aulas
de tiro com arco e era considerado o melhor conhecedor dessa arte na
Universidade, que me recomendasse como aluno ao seu preceptor, o célebre mestre
Kenzo Awa.
De início, o famoso mestre
recusou meu pedido, alegando que já se havia deixado convencer por um
estrangeiro para ensiná-lo e que os resultados foram muito desagradáveis. Por
isso, não estava disposto a aceitar um novo pedido, pois temia prejudicar o
aluno com o espírito peculiar dessa arte. Somente quando lhe assegurei que um
mestre que tomava tão a sério sua missão tinha o direito de tratar-me como o
mais jovem dos discípulos — porque eu não desejava aprender a arte para
divertir-me, mas para penetrar na Doutrina Magna —, ele me aceitou, a mim e à
minha mulher, como alunos. Era costume no Japão iniciar também as mulheres
nesta arte, motivo pelo qual a mulher do meu mestre e as suas filhas se
exercitavam assiduamente.
Assim começou um árduo e intenso
aprendizado, durante o qual participava como intérprete, para nossa
satisfacão, o
professor Komachiya, que com tanta insistência havia intercedido em nosso
favor, oferecendo-se quase como um avalista.
Por outro lado, a oportunidade de
assistir, na qualidade de ouvinte, às aulas de arranjos florais e de pintura
freqüentadas por minha mulher, me permitia obter, mediante comparações com
outras artes complementares, uma base mais ampla para auxiliar minha
compreensão.
III
Desde a primeira aula, fomos
alertados de que o caminho que conduz à arte sem arte é áspero. Primeiramente,
o mestre nos mostrou os arcos japoneses e nos explicou que sua extraordinária
elasticidade era resultado de sua construção peculiar e das características do
bambu, ou seja, do material de que eram construídos. Depois, ele nos chamou a
atenção para a forma nobre que possui o arco, de quase dois metros de comprimento,
quando armado com a corda, e que se manifesta de maneira surpreendente quanto
mais é tensionado. "Quando estira-mos a corda ao máximo", disse-nos o
mestre, "o arco abarca o universo, e por isso é importante saber curvá-lo
adequadamente". Em seguida, escolheu o melhor e o mais resistente dos seus
arcos e, numa atitude solene, fez a corda vibrar repetidas vezes, extraindo um
som ao mesmo tempo grave e agudo que, depois de se escutar algumas vezes,
jamais se esquece, tão original e irresistível é a maneira como ele chega ao
coração. Desde tempos remotos se atribui a esse som o misterioso poder de
afastar os maus espíritos: eu podia, então, compreender por que tal crença se
arraigara no povo japonês.
Depois dessa significativa
introdução, purificadora e consagratória, o mestre nos convidou a observá-lo
atentamente. Colocou uma flecha, estirou o arco de tal maneira que cheguei a
temer que não resistisse a encerrar o universo, e finalmente disparou. A cena
não só pareceu muito bela, como fácil de ser imitada. Então nos ordenou:
"Façam o mesmo, mas lembrem-se de que o tiro com arco não é destinado a
fortalecer os músculos. Não estirem a corda aplicando todas as suas forças, mas
procurando dar trabalho unicamente às mãos, enquanto os músculos dos braços e
dos ombros ficam relaxados, como se estivessem contemplando a ação, sem nela
intervir. Somente quando tiverem aprendido isso é que cumprirão uma das
condições para que o tiro se espiritualize."
Logo depois de pronunciar tais
palavras, tomou minhas mãos e guiou-as lentamente pelas fases do movimento que
em seguida teriam que executar, como para acostumar-me àquela nova experiência.
Logo na primeira
tentativa, realizada com um arco de resistência média, percebi que precisava
empregar muita força para curvá-lo. A isso se somava a dificuldade de que o
centro do arco japonês, ao contrário do europeu, não se encontra na altura dos
ombros, não oferecendo, por isso, uma espécie de ponto de apoio. Assim, uma vez
colocada a flecha, temos que erguê-lo com os braços quase estendidos, de tal
maneira que as mãos do arqueiro fiquem acima da sua cabeça. Por conseguinte,
não se pode fazer outra coisa a não ser separá-las uniformemente, à direita e à
esquerda, e, quanto mais se afastam uma da outra, mais descem, descrevendo
curvas, até que a esquerda, que sustenta o arco, se encontra com o braço
estendido à altura dos olhos, e a direita, que estira a corda, com o braço
dobrado à altura da articulação do ombro. A ponta da flecha de quase um metro
de comprimento sobressai muito pouco da borda exterior do arco, tão grande é a
sua envergadura.
O arqueiro deve permanecer
naquela posição durante alguns momentos antes de disparar a flecha. A força
necessária para sustentar o arco de maneira tão insólita fez com que em poucos
instantes minhas mãos começassem a tremer e a respiração ficasse mais difícil.
Durante semanas, essas reações se repetiram. O gesto de estirar o arco
continuou a exigir de mim grande esforço e, por mais que eu me exercitasse, não
chegou a espiritualizar-se. Para consolar-me, pensei que se tratava de um ardil
que por alguma razão o mestre não queria revelar-me, o que despertou minha
curiosidade.
Aterrado com obstinação ao meu
objetivo, continuei praticando. 0 mestre observava atentamente meus
esforços, corrigia serenamente
a rigidez da
minha postura, elogiava meu
zelo, censurava-me pelo
desperdício de energia e deixava-me
prosseguir. Vez por outra, exclamava em
minha língua:
"Relaxe-se!", enquanto
colocava os dedos nos pontos dolorosos
do meu corpo, sem nunca perder a paciência nem a afabilidade. Porém, chegou o
dia em que fui eu quem perdeu a paciência e lhe confessei que me
era simplesmente impossível
estirar o arco da maneira indicada.
"Se o senhor não consegue", replicou o mestre,
"é porque respira
de maneira inadequada. Depois de inspirar, solte o ar
lentamente, até que a parede abdominal
esteja moderadamente tensa,
retendo-o por alguns'
segundos. Em seguida,
expire da maneira
mais lenta e uniforme possível e, depois de um breve intervalo, volte a
aspirar rapidamente, continuando, assim, a inspirar e expirar com um ritmo que
pouco a pouco se instalará por si só. Se fizer isso de maneira correta, sentirá
que o tiro se torna cada vez mais fácil, pois essa respiração não só lhe
permitirá descobrir a origem de toda força espiritual, mas fará brotá-la como
um manancial cada vez mais abundante, irradiando-se pelos seus membros."
Em seguida, para me demonstrar o que havia dito, armou o seu forte arco e me
convidou a colocar-me por trás dele, a fim de poder apalpar-lhe os músculos dos
braços. Com efeito, estavam livres de tensão, como se não estivessem fazendo
esforço. Pratiquei a nova respiração sem
arco e flecha até ela se converter numa coisa natural. Até a leve tortura que
me acometera desde o início das aulas desapareceu.
Nosso mestre dava tanta
importância à expiração lenta e uniforme — que deveria desaparecer
paulatinamente — que, para melhor exercitá-la e controlá-la, fazia-nos
acompanhá-la de um zumbido. Somente quando, com o último vestígio do hálito, o
ruído também se extinguia, é que nos autorizava a voltar a inspirar. Ele dizia
que a inspiração une e reúne tudo o que é justo e a expiração libera e consuma,
vencendo toda restrição. Mas nós não éramos, então, capazes de compreender essa
linguagem.
Em seguida, o mestre passou
a relacionar a respiração com o tiro com arco, porque ela não se pratica como
um fim em si mesma. A ação contínua de estirar o arco e disparar a flecha se
dividia nas seguintes fases: segurar o arco, colocar a flecha, levantar o arco,
estirá-lo e mantê-lo no máximo de tensão e disparar. Cada fase se iniciava com
uma inspiração, apoiava-se no ar retido no abdome e terminava com uma
expiração. Tudo isso era possível porque a respiração se adaptara de maneira
natural, não apenas acentuando significativamente as diferentes posturas e os
movimentos, mas entrelaçando-os ritmicamente em cada um de nós, segundo as
características respiratórias individuais. Não obstante estar decomposto em
várias fases sucessivas, o procedimento de cada um de nós dava a impressão de
um acontecimento único, que vive de si e em si mesmo e que nem de longe pode
ser comparado com um exercício de ginástica, ao qual podem ser adicionados ou
substituídos gestos sem que lhe destruam o caráter e o significado.
Não me é possível recordar
aqueles dias sem deixar de lembrar como era difícil, no princípio, fazer com
que a respiração surtisse o efeito desejado pelo mestre. Eu respirava de forma
tecnicamente correta, mas quando, ao estirar o arco, me concentrava para que os
músculos dos braços e dos ombros permanecessem relaxados, a musculatura das
pernas se contraíam independentemente da minha vontade. Era como se me fizessem
falta uma base firme de apoio e uma postura sólida e, como Anteu9, tivesse que
extrair toda a minha energia da terra.
Muitas vezes, o mestre não
tinha outro remédio a não ser apertar subitamente algum músculo das minhas
pernas, em pontos particularmente sensíveis. Quando, numa dessas ocasiões, eu
lhe disse, à guisa de desculpa, que eu estava me esforçando para permanecer
relaxado, replicou: "Este é o seu maior erro: o senhor se esforça, só
pensa nisso. Concentre-se apenas na respiração, como se não tivesse de fazer
mais nada!" Entretanto, passou muito tempo antes que eu conseguisse
atender às suas exigências. Mas consegui. Aprendi a deter-me na respiração tão
despreocupadamente que às vezes tinha a sensação de não respirar, mas de ser
respirado, por estranho que pareça. E embora, nas horas de meditação, eu me
defendesse de tão extravagante idéia, já não podia duvidar que a respiração ocorria
exatamente como o mestre havia prometido.
Aos poucos e cada vez com maior
freqüência, à medida que se passavam os dias, consegui estirar o arco e
mantê-lo teso com o corpo relaxado, sem que pudesse explicar como aquilo estava
ocorrendo. A diferença qualitativa entre essas poucas tentativas satisfatórias
e as que com freqüência fracassavam fizeram com que eu começasse a entender o
que significava estirar o arco espiritualmente. Era este, pois, o quid da
questão: não se tratava de nenhum ardil técnico, que eu em vão queria
descobrir, mas de uma respiração nova, que me abria inusitadas possibilidades
de liberação. Não digo tais palavras impensadamente: sei muito bem como é
grande, nesses casos, a tentação de sucumbir a uma forte influência e, enredado
por uma falsa ilusão, superestimar o alcance de uma experiência que por si só é
insólita.
O sucesso obtido por essa nova
maneira de respirar era evidente demais, a despeito de todos os meus
escrúpulos, condicionados pela reflexão típica que fazem os espíritos
positivos. Eu já conseguia estirar, relaxadamente, o arco rígido do mestre.
Certa ocasião, durante uma
longa conversa mantida com o professor Komachiya, perguntei-lhe por que o
mestre havia observado impassivelmente e durante tanto tempo meus esforços
infrutíferos para estirar o arco espiritualmente. Não teria sido mais fácil que
ele tivesse me ensinado, desde o princípio, a respiração correta? "Um
grande mestre", respondeu-me, "tem que ser ao mesmo tempo um grande
educador, pois para nós esses atributos são inseparáveis. Se o aprendizado
tivesse sido iniciado com os exercícios respiratórios, jamais o senhor se
convenceria da sua influência decisiva. Era preciso que o senhor naufragasse
nos próprios fracassos para aceitar o colete salva-vidas que ele lhe lançou.
Creia-me, eu sei por experiência própria que o mestre conhece o senhor e cada
um de seus discípulos melhor do que a nós mesmos. Ele lê nas nossas almas muito
mais do que estamos dispostos a admitir."
IV
Depois de um ano inteiro de
exercícios, ser capaz de estirar o arco de forma espiritual, isto é,
vencendo-lhe a resistência sem nenhum esforço, não é um acontecimento
excepcional. Contudo, eu me achava satisfeito, pois comecei a compreender como
a técnica de defesa pessoal prostra o adversário sem despender nenhuma força,
apenas recuando, elástica e imprevistamente, aos seus esforços. É por isso que
essa forma de luta se chama arte gentil (tradução literal das palavras
jiu-jitsu), e o seu símbolo é o da água que sempre cede, mas jamais é
vencida. Não foi por outro
motivo que Lao-Tsé (10) disse que a vida autêntica se parece com a água,
que a tudo se adapta porque a tudo se submete.
Nas aulas do mestre, era hábito
dizer-se que quem não mostrava dificuldades no começo iria conhecê-las, de
maneira muito mais forte, durante o curso. Para mim, o início tinha sido
extremamente penoso. Eu não teria, então, o direito de ser otimista em relação
ao que me esperava, e cujos sacrifícios eu vislumbrava vagamente?
As aulas prosseguiram com o
aprendizado do disparo da flecha, que até o momento havia sido praticado
displicentemente, como se estivesse entre parênteses, à margem dos exercícios.
Não nos preocupávamos com o que sucedia com a nossa flecha. Era suficiente
cravá-la no disco de palha prensada que fazia as vezes de alvo, apoiado num
banco de areia. Acertá-lo não era nenhuma façanha, pois estava, quando muito, a
uma distância de dois metros.
Até então, quando me parecia
insuportável permanecer por mais tempo na tensão máxima, eu simplesmente
soltava a corda, para não aproximar as minhas mãos, que eu distanciara com tanto
esforço. Não pensem que a tensão me causava dor. Um protetor de couro no
polegar impede que a pressão da corda o moleste e que o arqueiro,
Eugenie Herrigel
(continua)
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