terça-feira, 16 de abril de 2013

BARROCO COMO GNOSE


O século do Barroco é um tempo de experiências distintas de vivências religiosas, todas interessadas em restaurar o poder configurativo e coesivo das crenças do cristianismo. A sensibilidade barroca admite  a fratura entre as ordens do transcendente e do imanente, a distância aparentemente invencível entre o sagrado e o temporal, mas quer de alguma forma superá-las. Braudel ressalta este objetivo do Barroco,dirigindo o foco de análise para a vertente nascida no Mediterrâneo, na Itália e na Espanha. Se o Barroco parece ter o gosto da morte, dos mártires, do sofrimento, apresentado com realismo, se ele parece abandonar-se ao ‘’desengaño’’ espanhol, acentua Braudel, é para melhor encontrar o detalhe , para melhor construir a veracidade dos dogmas, do Purgatório, da Virgem, da Eucaristia, da Trindade e das noções do cristianismo mediterrâneo, dramático e estranho aos povos do norte.

Na mesma direção, Chaunu verá o Barroco como algo mais do que simples contra-reforma. Ele seria a verdadeira reforma Católica, que descobre o modo de expressão arquitetural, plástico e estético adequado á teologia dos clérigos, á representação intelectual das elites e ás necessidades da sensibilidade popular. Na raiz do Barroco, o alargamento da Europa e do ‘’orbis terrenarum’’, a passagem da física estática das qualidades para o universo da física matematizante, o abandono do conhecimento essencial em troca da visão fenomenológica dos objetos, alterando de modo radical a perspectiva humana sobre o universo. No plano da analogia, prossegue, o absoluto passa a se identificar com o infinito, e A COMPOSIÇÃO ABERTA E COLOSSAL apresenta-se como registro da infinitude descoberta pela ciência da época. Nas regiões mais aburguesadas, a resposta religiosa rejeita as soluções estritamente gnósticas, contemplativas ou mais espontâneas do catoliscismo, desdobrando-se como ‘’ascese intramundana’’, como rejeição do mundo que se transfigura na vontade fáustica de dominá-lo, de acordo com Max Weber.  A ascese intramundana rejeita os valores do mundo aristocrático ao mesmo tempo que reconhece a pequenez e a indignidade do homem, criando o cenário para o desenvolvimento de um tipo específico de heroísmo, inspiração da figura do ‘’honnête homme’’ com sua ‘’maitrise de soi’’. Constantemente desafiado e posto á prova, o virtuoso elabora inconscientemente um sentido fáustico para a vida, buscando superar-se através do autocontrole e da racionalização de seu ambiente. O puritanismo protestante, com as suas doutrinas da ‘’sola fidei’’ e da predestinação, é o exemplo típico desta atitude que prospera em especial ao longo do século XVII. 

(...)

Essa transformação da experiência religiosa em ascese intramundana não ocorre apenas nas regiões dominadas pelo protestantismo. Na França, o jansenismo segue um percurso semelhante, explorando de modo particular as premissas agostinianas para uma reforma religiosa distante da concepção do Concílio de Trento e do programa universalizante dos jesuítas. Jansenius parece aceitar a teoria da predestinação, nega a doutrina tridentina e jesuítica da valorização das obras humanas para a valorização para a justificação diante de Deus e recusa a teoria do livre-arbítrio do catoliscismo, identificando-a como elemento de corrosão da vida religiosa em sua pureza e integridade. As proposições de Jansenius, apropriadas por Antoine Arnaud, encorpam um movimento religioso que logo provoca as suspeitas de Richilieu e Roma. Mas Port Royal não é puro misticismo ou o Santo Agostinho do início do cristianismo, , e o jansenismo acaba seduzido pela ambição da explicação racional do mundo, explorando uma lógica do pensar distinta daquela da escolástica. Em Lettres Provinciales, Pascal, - matemático e o grande moralista do Barroco - não se limita a discutir as questões do Estado de Graça. O viés agostiniano funciona como premissa para determinar o duro e verdadeiro caminho de ascensão espiritual e para o ataque á moral de ocasião dos jesuítas, ambiente ecológico do probalismo escolástico.


( El probabilismo es una doctrina de teología y filosofía moral cristiana, basada en la idea de que es justificado realizar una acción, aún en contra de la opinión general o el consenso social, si es que hay una posibilidad, aunque sea pequeña, de que sus resultados posteriores sean buenos, optando así por la libertad. Este concepto se desarrolló en medio del ambiente escolástico español de la llamada Escuela de Salamanca, entre fines del siglo XVI y fines del siglo XVII, siendo defendido principalmente por teólogos jesuitas, que lo propagaron por toda Europa y América. La decadencia definitiva del probabilismo vino en el siglo XVIII, época en que la doctrina fue duramente criticada por los jansenistas y por Blaise Pascal en su libro Cartas provinciales.)(W)


Essa moral de ocasião dos jesuítas se afastava dos mandamentos severos das Escrituras para salvar, a qualquer custo, o poder da igreja institucional e o absolutismo papal. A moral relaxada e o probalismo seriam os instrumentos de uma ‘’negociação com o mundo’’ - ao contrário de sua rejeição - resultando para os fervorosos numa afronta aos mandamentos de Deus, á pureza da religião e á autarquia da razão.

Este espírito ascético modelava as expressões estéticas do Barroco aburguesado, manifestando-se através de formas opressivas de erotismo, de monumentalismo, valorizando ainda um naturalismo liberto de antropocentrismo. Lembrando Spitzer, Merquior denota o sensualismo barroco como tradução artística do Verbum Caro Factum, do mistério da Encarnação, signo do qual o Barroco aburguesado não teria escapado, deixando transparecer formas de ostentação e transfiguração, o que temperava  a natureza gnóstica do Barroco pela abertura á inquirição racionalista do mundo.



As formas de expressão estética e de experiência religiosa das regiões mais aburguesadas se contrapunham àquelas desenvolvidas nas áreas sob o domínio do poder aristocrático, como a Ibéria, a Itália e as partes da Alemanha reconquistadas pela contra-reforma. Nestas regiões, a religiosidade barroca, estimulada pela reforma tridentina, tentará arquiteturas variadas para a religação da vida humana ao transcendente. Os gestos exagerados e dramáticos das liturgias, a ênfase nas penitências massivas e espetaculosas, a monumentalidade arquitetural, enfeitada por volutas que parecem não terminar, a linguagem ‘’desregrada’’ e veemente das manifestações coletivas e individuais, sinalizam uma alteração radical na direção da relação tradicional entre o sagrado e o temporal. Se antes a teologia e a metafísica asseguravam a realidade do universo como cascata de luz que jorrava ‘’de cima’’, como emanação divina que conectava  interna e objetivamente as diversas jurisdições do Kósmos, o súbito distanciamento do sagrado impunha á subjetividade humana a tarefa de reconstruir, ‘’de baixo para cima’’, esta ordem fragmentada e partida do mundo. O Barroco religioso ibérico, de modo geral, é a dramatização deste anelo pelo companhia divina e desejo de reconstrução de uma harmonia aparentemente perdida. Seu exagero, seus gestos, seus ritos e suas expressões estéticas, parecem ter sempre o objetivo de enlaçar o sagrado, de trazê-lo para a proximidade dos homens, ensaiando uma espécie de abraço cósmico em Deus como fuga da solidão luterana.


Rubem Barbosa Filho

TRADIÇÃO E ARTIFÍCIO (iberismo e barroco na formação americana)

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