Antonio Florentino Neto
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-24302008000100007
Universidade Federal
de Uberlândia, pesquisa financiada pela FAPEMIG (Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de Minas Gerais)
Heidegger esteve ao
longo de sua carreira acadêmica em contato com o pensamento e pensadores
asiáticos. Desse contato se desenvolve um dos mais instigantes e fecundos
intercâmbios da história da filosofia contemporânea. Uma troca de idéias, nessa
dimensão, pode ser compreendida, por um lado, quando se percebe o alcance da
influência do pensamento de Heidegger no universo acadêmico oriental,
principalmente na China, Coréia e Japão. Por outro lado, quando se constata que
no século XX a ida dos mais importantes pensadores asiáticos, principalmente
japoneses, para a Europa está vinculada direta ou indiretamente a Heidegger,
como mostrarei neste texto. Portanto, o caráter geral deste artigo se justifica
pela amplitude do tema e pela inexistência2 de publicações no Brasil que
abordem, ainda que introdutoriamente, estas questões.
Seis anos antes da
publicação de Ser e tempo, no ano de 1921, os cursos de Heidegger são
freqüentados, pela primeira vez, por um estudante japonês. Yamanouchi vai para
a Alemanha para assistir as aulas de Husserl e entra em contato com Heidegger,
que nesta época era professor assistente em Freiburg. Um ano depois seguem
outros dois japoneses para a Alemanha: Kiyoshi Miki e Hajime Tanabe. Ambos têm
vínculos diretos com o mais influente pensador japonês contemporâneo - Kitaro
Nishida3 - e freqüentariam os cursos de Husserl sob sua recomendação. A relação
entre o pensamento de Heidegger e o de Tanabe permanece desconhecida pela
filosofia alemã até hoje, enquanto que, para o pensamento japonês do século XX,
este encontro representa um marco significativo, visto que a filosofia
heideggeriana exercerá forte influência no pensamento de Tanabe, que por sua
vez influenciará, direta e indiretamente, todas as gerações posteriores da
Escola de Kyoto.
Em 1924, Tanabe
publica no Japão um artigo com o título A nova reviravolta na Fenomenologia - A
fenomenologia da vida de Heidegger4. Esse artigo, que é ao mesmo tempo um
relato e comentário de Tanabe sobre as conferências de Heidegger intituladas
Hermeneutik der Faktizität, proferidas no semestre de verão de 1923, é o
primeiro escrito sobre o pensamento de Heidegger e marca o início da recepção
da fenomenologia hermenêutica no Japão. Nesta publicação Tanabe aponta o
pensamento heideggeriano como uma nova direção dada à fenomenologia, direção
considerada como sendo a superação da perspectiva “idealista” da Fenomenologia
Transcendental de Husserl. Esta relação precoce entre Tanabe e Heidegger e seu
desdobramento em forma de influência tem resultados imediatos na receptiva cena
intelectual japonesa do início do século XX, como é o caso de Shuzo Kuki.
O mais conhecido
encontro de Heidegger com um filósofo japonês se dá em 1927, na casa de
Husserl, onde Heidegger entra em contato pela primeira vez com Kuki (cf. Light,
1987, p. 6). Esse encontro será seguido por vários outros e resulta na
publicação de escritos fundamentais para os dois filósofos: A Estrutura do Iki5
de Kuki e o texto mais particular de Heidegger com o título De uma conversa
sobre a linguagem entre um japonês e um pensador (Heidegger, 2004, pp. 71-120),
que Heidegger escrevera no final da década de 50, em forma de diálogo. Neste
texto, as questões que Heidegger e Kuki discutiram são retomadas e postas em
primeiro plano, o que faz de Kuki o personagem principal desse texto-diálogo
de Heidegger.
A influência de
Heidegger sobre o livro de Kuki poderia parecer insignificante se considerarmos
que o desenvolvimento da escola de Kyoto não seria imaginável sem o pensamento
heideggeriano. Pode-se observar na análise de Kuki sobre o termo Iki a
intensidade da troca de idéias entre a filosofia japonesa e a alemã, quando
Kuki recorre claramente a conceitos e métodos do pensamento ocidental, não
somente, mas principalmente, de Heidegger, em sua análise do termo japonês Iki.
O livro de Kuki é publicado em 1929. Porém, seus manuscritos datam de antes da
publicação de Ser e tempo, e o primeiro encontro entre Kuki e Heidegger ocorre
depois de 1927, o que mostra que Kuki já estivera em contato com a hermenêutica
ontológica antes deste primeiro contato direto com Heidegger e antes mesmo da
publicação de Ser e tempo. O que se explica, todavia, pelo fato de Kuki ter
lido a publicação de Tanabe sobre Heidegger.
Diretamente ligado ao
encontro de Heidegger com Kuki está o encontro de Heidegger com o germanista
japonês Tomio Tezuka, em 1954, na cidade de Freiburg. Heidegger descreve em seu
texto-diálogo De uma conversa sobre a linguagem entre um japonês e um pensador,
a conversa que tivera com Tezuka6. Este texto-diálogo tem início com o
comentário sobre a morte precoce de Kuki e se desenvolve com a retomada dos
temas que Heidegger tratara com Kuki, no final da década de 1920,
principalmente sobre a estética e sobre a língua japonesa. Apesar das
imprecisões de Heidegger sobre certos aspectos abordados neste texto (ver, por
exemplo, May, 1989, p. 27), ele se torna uma das fontes e referências mais
fecundas para o diálogo entre o pensamento oriental e ocidental na filosofia
alemã do século XX.
As idéias que
Heidegger desenvolve neste texto-diálogo surgem não só destas primeiras
conversas com Kuki. Muitos outros encontros importantes entre Heidegger e
pensadores japoneses acontecem antes de 1959, ano da publicação desta obra.
Entre outros, quero ressaltar, em especial, o encontro de Heidegger com
Nishitani, um dos principais expoentes da segunda geração da Escola de Kyoto,
que aos 24 anos de idade conclui seu trabalho de doutorado com o título O ideal
e o real em Schelling e Bergson, na Universidade de Kyoto. Em 1938/39 Nishitani
freqüenta os cursos de Heidegger, em Freiburg, onde apresenta um seminário
sobre Nietzsche e Mestre Eckhart.
Nishitani marca o
início da radicalização da análise do “nada absoluto” da Escola de Kyoto a
partir da crítica de Heidegger ao niilismo europeu, e ele apresentará um ousado
trabalho nos cursos de Heidegger sobre o conceito “nada” em Nietzsche e Mestre
Eckhart (Ohashi, 1989a, p. 34). Além de Nishitani, vários outros interlocutores
japoneses dessa geração, tais como Daisetz Teitaro Suzuki7 e Hisatamatsu,
contribuíram diretamente para a formação das referências de Heidegger sobre o
pensamento japonês.
Em seu texto-diálogo,
Heidegger faz não só a sua melhor auto-interpretação, mas também coloca, de
maneira clara, a pergunta sobre a essência do pensamento oriental. Este
texto-diálogo é, além disso, o auge da fase taoísta-zenbudista de Heidegger,
que tem início com seu trabalho, em conjunto com Hsiao, na tradução do
Tao-te-king. O envolvimento de Heidegger com a tradução deste livro clássico,
do chinês para o alemão, ocorrido no verão de 1946, explica, em parte, a
freqüente recorrência de Heidegger a conceitos e elementos taoístas8 a partir
de então, e é, pelo que se sabe até hoje, a única experiência de Heidegger com
a interpretação de textos em uma língua oriental. Esta experiência mal
sucedida, interrompida por dificuldades previsíveis, visto que Heidegger não
possuía o menor conhecimento do chinês ou japonês, se expressa em sua forma
mais elaborada em seu texto-diálogo.
No início do
texto-diálogo, Heidegger pergunta ao interlocutor japonês, ou seja, a Tezuka,
se os orientais precisavam recorrer a conceitos europeus para analisar sua
arte, como Kuki fizera.
Cito a seguir um
trecho deste diálogo:
J - Ao voltar da Europa, o conde Kuki
proferiu em Kyoto várias conferências sobre a estética da arte e da poesia
japonesa, publicadas posteriormente. Procurou considerar a essência da arte
japonesa valendo-se da estética européia.
P - Mas será que para tal propósito devemos
lançar mão da estética?
J - Por que não?
P - A palavra estética e o que ela evoca
provêm do pensamento europeu, da filosofia. A consideração estética deve ser,
assim, estranha ao pensamento oriental.
J - O senhor tem toda razão. Mas nós
japoneses precisamos recorrer ao préstimo da estética.
P - Para quê?
J - A estética nos empresta os conceitos
necessários para apreender o que nos chega na arte e na poesia.
P - Vocês precisam de conceitos?
J - Provavelmente sim. O encontro com o
pensamento europeu revelou uma incapacidade de nossa língua. (Heidegger, 2004,
pp. 71-72)
Esta passagem do
texto-diálogo toca em um ponto central da discussão sobre a diferença entre o
pensamento ocidental e oriental. Heidegger utiliza ali a expressão “estética
européia” e com isso parece deixar em aberto a possibilidade de uma “outra
estética”. Ao mesmo tempo é afirmada a impossibilidade de um olhar estético
oriental, visto ser a estética um recurso exclusivo do pensar filosófico
ocidental. Isto é, na verdade, uma decorrência das afirmações de Heidegger, de
que o conceito de “filosofia ocidental” seja uma tautologia (Heidegger, 1973a,
p. 212), visto ser a filosofia essencialmente greco-européia. A seqüência do
diálogo torna -se ainda mais interessante, quando Heidegger pergunta ao seu
interlocutor japonês, se ele utiliza um olhar estético filosófico para
compreender a arte japonesa. A resposta afirmativa é seguida pelo argumento de
que
a língua japonesa não
estaria em condições de entrar no mundo da filosofia ocidental. A língua
japonesa, ao entrar em contato com o universo cultural europeu, teria revelado
a sua deficiência.
P - Há algum tempo, com muita timidez,
chamei a linguagem de casa do Ser. Se, pela linguagem, o homem mora na
reivindicação do ser, então nós europeus, pelo visto, moramos numa casa
totalmente diferente da oriental.
J - Na suposição de que essas línguas não
apenas são diferentes, mas que possuem fundamentalmente outra essência.
P - Assim a conversa de uma casa para outra
se torna quase impossível.
Heidegger chama a
linguagem de casa do Ser (Heidegger, 1973b, p. 371) pela primeira vez no texto
“Carta sobre o Humanismo”, de 1947, ou seja, pouco depois de seu trabalho de
tradução de parte do Tao-te-king, em colaboração com Hsiao, do chinês para o
alemão. Esta denominação é repetida posteriormente, no texto-diálogo. Estes
dois momentos se dão após um contato muito próximo de Heidegger com o universo
do pensamento oriental e das línguas ideogramáticas.É importante ressaltar que
o trabalho de tradução do Tao-te-king é interrompido, como Heidegger argumenta,
em carta a Jaspers (Heidegger & Jaspers, 1992, p. 181), por ser, para ele,
a essência da língua chinesa totalmente estranha.
O pressuposto de
Heidegger sobre estranheza da diferença essencial entre as línguas européias e
as línguas orientais, especificamente do chinês e do japonês, é o que o permite
levantar o problema da impossibilidade da comunicação entre essas duas casas
tão distintas e conseqüentemente da possibilidade de se traduzir do alemão para
o japonês.
Tezuka, o
interlocutor no texto-diálogo, publicou em japonês, no ano de 1955, sua versão
sobre seu encontro com Heidegger, que somente no final da década de 1980 seria
traduzido para o alemão. O relato de Tezuka diverge em alguns pontos do diálogo
de Heidegger, e são justamente estas divergências que permitem uma instigante
análise sobre a postura de Heidegger diante do universo oriental,
principalmente sobre a língua japonesa. De acordo com o relato de Tezuka, ele
fora questionado por Heidegger sobre o caráter da língua e da arte japonesa.
Diante da resposta de Tezuka de que a arte japonesa aspira à “espiritualidade”
e à “sensibilidade”, Heidegger teria lhe perguntado se este aspirar à “espiritualidade”
não seria de natureza metafísica (Tezuka, 1989, p. 89). Tezuka responde que sim
e Heidegger teria concluído a reflexão comparando este “aspirar” da arte
japonesa com o caráter metafísico das idéias em Platão.
Para Tezuka,
Heidegger teria reconhecido o caráter metafísico da arte japonesa, o que
significaria, conseqüentemente, o reconhecimento da metafísica como a
manifestação do pensamento não somente greco-europeu, mas também oriental. A
análise de Tezuka sobre o diálogo com Heidegger não aponta dificuldades
significativas que pudessem inviabilizar o diálogo entre o universo oriental e
ocidental, e ele não se refere em momento algum a uma “deficiência” da língua
japonesa para considerações estéticas. De acordo com Tezuka, a reação de
Heidegger aos seus comentários deixa claro que os dois pensadores interpretaram
de maneiras muito distintas os principais temas tratados no encontro.
Hisamatsu e Nishitani
são os principais representantes da segunda geração da escola de Kyoto e marcam
também uma nova fase da recepção do pensamento de Heidegger. Tanto Hisamatsu
quanto Nishitani têm como ponto de referência fundamental o zen-budismo em
diálogo com a tradição filosófica ocidental, principalmente com a mística de
mestre Eckhart e as reflexões de Heidegger sobre o nada e o niilismo ocidental.
A nova fase da
filosofia japonesa moderna, que surge com Nishitani, marca também o momento
decisivo da passagem para a terceira geração da Escola de Kyoto que dialoga com
Heidegger. Com Nishitani são preparados os fundamentos para uma nova geração de
pensadores japoneses, que estarão em contato direto com todas as questões
filosóficas importantes para Heidegger. Ele é o último filósofo japonês da
Escola de Kyoto que pode ser considerado interlocutor de Heidegger, marcando
tanto o fim do diálogo direto com Heidegger, como também a passagem de Nishida
e Tanabe para uma nova geração, que surge com Ueda e Tsujimura, este último,
considerado o primeiro “discípulo” japonês de Heidegger e também o representante
mais importante da terceira geração da Escola de Kyoto.
A análise de
Tsujimura sobre a relação entre a “Pergunta sobre o Ser” em Heidegger e o “nada
absoluto” da Escola de Kyoto permanece ainda dentro da perspectiva de Hisamatsu
e Nishitani9. Porém, a radicalidade de sua reflexão se mostra ao admitir que
com Heidegger a perspectiva zen-budista se depara com a eminente necessidade de
se propor a pensar, também, a questão da essência da técnica no mundo moderno
(Tsujimura, 1983, p. 165). De acordo com Ohashi, nenhum outro filósofo japonês
teria sido tão fortemente influenciado pela filosofia de Heidegger como
Tsujimura (Ohashi, 1989a, p. 35), tendo ao mesmo tempo permanecido vinculado à
perspectiva inicial da escola de Kyoto.
Em 1969, quando
Heidegger comemora seu aniversário de 80 anos, Tsujimura é escolhido como
orador da comemoração. Quase 50 anos depois do encontro com Miki e Tanabe,
quase meio século de constantes contatos entre Heidegger e o pensamento
oriental, será um filósofo japonês quem terá a palavra na festa comemorativa do
aniversário do mais influente filósofo alemão do século XX. O motivo para isso
não poderia ser de cunho pessoal, pois Tsujimura não pertencia ao restrito
grupo de amigos íntimos de Heidegger. A relação entre os dois pensadores se
limitava ao plano profissional. Portanto, não existe outro motivo para este
convite, a não ser o reconhecimento de uma intensa e frutífera discussão
filosófica que Heidegger manteve, permanentemente, com o pensamento japonês.
Em seu discurso
Tsujimura ressalta a importância do pensamento de Heidegger para a filosofia
japonesa. Ele fala ainda sobre o perigo de uma pura europeização do pensamento
japonês, que recebia, há mais de um século, fortes influências da filosofia
européia. Para ele, a europeização do Japão foi um passo necessário na direção
do mundo moderno, da inevitável difusão da ciência e da técnica ocidental. Em
seu discurso, ele fala de um “perigo” que deve ser combatido, o perigo da pura
substituição da tradição japonesa, do zen-budismo, pelos valores europeus.
Neste sentido o pensamento de Heidegger significa, para Tsujimura a
possibilidade de uma profunda discussão entre o mundo tradicional oriental e a
filosofia moderna ocidental.
Ainda no discurso,
Tsujimura trata da questão referente às proximidades e às distâncias entre o
pensamento de Heidegger e o zen-budismo. Esta abordagem mostra que Tsujimura
tinha claro a fronteira entre as duas correntes de pensamento. Para ele, a
filosofia de Heidegger não apresenta influências consideráveis do pensamento
oriental, mas o pensamento japonês, especificamente o zen-budismo, pode
alcançar, em diálogo com o pensamento de Heidegger, um novo plano. Tsujimura
ressalta tanto as semelhanças como as diferenças entre o pensamento de
Heidegger e o zen-budismo, para mostrar que, com a filosofia heideggeriana o
pensamento tradicional japonês pode problematizar também a técnica moderna do
mundo industrial.
Como agradecimento ao
discurso de Tsujimura, Heidegger menciona o fato de ter tido a sua conferência
de1930, O que é metafísica?, traduzida para o japonês pelo então estudante do
ciclo básico Yuassa, e que esse mesmo estudante teria sido o único que não
confundira sua reflexão sobre o “nada” com o niilismo ocidental (Heidegger,
1989, p. 166). A afirmação de Heidegger de que um estudante japonês tenha
compreendido com excelência sua conferência aponta o reconhecimento, por parte
de Heidegger, de certa proximidade de sua filosofia com o pensamento japonês. O
fato de que essa conferência tenha sido interpretada como niilismo pelos
pensadores europeus representa para Heidegger um mal entendido. Suas reflexões
sobre o nada, no entanto, tornam-se tema principal para muitos outros
pensadores japoneses que estiveram em contato com o seu pensamento.
A quarta geração10 da
Escola de Kyoto se distancia significativamente das preocupações originais e se
dedica aos mais variados temas, tais como: estética, história da filosofia
ocidental, técnica, linguagem, tradutibilidade, e principalmente sobre a
influência do pensamento oriental sobre a filosofia ocidental, em particular
sobre Heidegger.
O problema da
tradutibilidade da filosofia européia, em especial da filosofia heideggeriana,
para o japonês, torna-se uma questão central para Ogawa (Ogawa, 1989, pp.
181-196) e Ohashi (Ohashi, 1989b, pp. 203-214), que escrevem vários artigos
sobre esse tema. A afirmação otimista de Ogawa quanto à possibilidade de se
traduzir a filosofia de Heidegger para o japonês é, na verdade, uma resposta à
dúvida de Heidegger quanto a esta possibilidade. Ogawa afirma que o ceticismo
de Heidegger sobre a possibilidade de se traduzir seu pensamento para o japonês
se funda em uma concepção equivocada de Heidegger sobre as línguas
ideogramáticas, principalmente sobre o japonês (cf. Ogawa, 1989, p. 192).
Com sua tentativa de
neutralizar a dura crítica de Heidegger e com isso tornar possível a tradução,
sem com isso ter que renunciar a toda filosofia de Heidegger, Ogawa se depara
com a discussão entre a concepção japonesa e a concepção européia de linguagem
e suas respectivas teorias sobre tradução. Em sua análise ele apresenta novos
elementos gramaticais, históricos da língua japonesa e suas experiências com
traduções, que permitem uma reflexão mais pontual sobre as objeções que podem
ser feitas aos limites das línguas ideogramáticas em relação ao pensamento
ocidental, referidos no diálogo de Heidegger.
As reflexões de Ogawa
sobre a tradutibilidade e as conseqüências destas reflexões representam um bom
exemplo do início de um diálogo entre o pensamento oriental e o pensamento
ocidental. Ele parte do princípio de que o ceticismo de Heidegger não é
completamente sem fundamento, porém mostra também que as afirmações de
Heidegger conduzem a paradoxos ainda mais complexos. De qualquer modo, o
provocativo texto-diálogo de Heidegger pode ser considerado o texto que
suscitou as discussões mais importantes nesta perspectiva e que podem ser
caracterizadas como as condições necessárias para o inevitável início do
diálogo entre o pensamento ocidental e oriental.
Referências
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Japan und Heidegger. Sigmaringen: Thorbecke.
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(1973a). Que é isto - a Filosofia. In Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural.
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“Humanismo”. In Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural.
_____(1989). Aus
Martin Heideggers Dankansprache. In Japan und Heidegger. Sigmaringen:
Thorbecke.
_____(2004). A
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K. (1992). Briefwechsel, 1920-1963. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann.
Light, S. (1987).
Shuzo Kuki and Jean-Paul Sartre, Influence and Counter-Influence in the Early
History of Existential Phenomenology. Carbondale and Edwardsville: Southerb
Illinois University Press.
May, R. (1989). Ex
oriente Lux. Stuttgart: Franz Steiner Verlag.
Ogawa, T. (1989).
Heideggers Übersetzbarkeit in ostasiatischen Sprache - Das Gespräch mit einem
Japaner. In Pöggeler/Papenfuss (Ed.), Zur Philosophischen aktualität
Heideggers. Frankfurt am Main: Vitorio Klostermann.
Ohashi, R. (1989a).
Die frühe Heidegger-Rezeption in Japan. In Japan und Heidegger. Sigmaringen:
Thorbecke.
_____(1989b).
Heidegger und “Graf” Kuki. Zu Sprache und Kunst in Japan als Problem der
Moderne. München: Iudicium.
Tezuka, t. (1989).
Eine Stunde bei Heidegger. In May, Ex oriente lux. Stuttgart: Franz Steiner
Verlag.
Tsujimura, K. (1983).
Martin Heideggers Denken und die japanische Philosophie. In Japan und
Heidegger. Sigmaringen: Thorbecke.
Endereço para
correspondência
E-mail:
floraneto@hotmail.com
Enviado em 25/5/2008
Aprovado em 30/6/2008
1 Este trabalho foi
apresentado no II Colóquio sobre o pensamento japonês que ocorreu no dia 15 de
dezembro de 2007, na sede da Fundação Japão, em São Paulo.
2A afirmação
categórica da inexistência de publicações nessa área se restringe ao universo
da filosofia e especificamente ao pensamento japonês contemporâneo.É provável
que existam artigos sobre o pensamento oriental no Brasil, mas o pensamento
japonês, particularmente a escola de Kyoto permanece, com exceção do grupo de
pesquisa sobre o pensamento japonês, que se reúne na Fundação Japão de São
Paulo, coordenado pelo Prof. Zeljko Loparic, muito pouco conhecido no meio
acadêmico brasileiro.
3Kitaro Nishida é
tido como o precursor do pensamento japonês contemporâneo e o principal
fundador da chamada Escola de Kyoto, que surge no Japão a partir da reabertura
do país para o mundo ocidental. O Japão, que rompera completamente as relações
com todos os outros países ocidentais, com exceção da Holanda, durante a dinastia
Edo (1600-1868), reabre as fronteiras para o mundo ocidental a partir de 1868,
data do início da dinastia Meiji. Com a reabertura do Japão, a filosofia
ocidental passa a exercer forte influência no meio acadêmico japonês, e o ápice
dessa influência é o surgimento da Escola de Kyoto, que se caracteriza grosso
modo por uma análise crítica da tradição filosófica ocidental, a partir dos
referenciais do zen-budismo japonês.
4 Este texto de
Tanabe foi publicado no Japão em 1924 e a primeira versão em alemão “Die neue
Wende in der Phänomenologie - Heideggers Phänomenologie des Lebens” só é
publicada em 1985, em Japan und Heidegger, uma coletânea de artigos dedicada à
relação de Heidegger e a Escola de Kyoto, editado por Hartmut Buchner, em
comemoração ao centenário de nascimento de Heidegger.
5 Kuki escreve um
trabalho sobre os diversos significados do termo japonês Iki a partir das
referências do pensamento ocidental, principalmente de Bergson e da
fenomenologia. La structure de l’iki, Paris 1976. Neste livro, Kuki aponta as
dificuldades de se abordar um tema tão particular como este, que está
intimamente vinculado à tradição chinesa-confuciana apresentando, ao mesmo
tempo, um caráter estético, moral e ainda elementos da vida urbana das gueixas
do período Edo.
6 Tezuka também
escreveu um relato de seu encontro com Heidegger, que fora publicado em
japonês, ainda na década de 50, e só traduzido em 1989 para o alemão. Esse
relato, publicado sob o título Eine Stunde bei Heidegger como o posfácio do
livro Ex oriente lux - Heideggers Werk unter ostasiatischem Einfluss, de
Reinhard May, oferece uma interessante perspectiva de análise, por apresentar
uma versão completamente distinta da de Heidegger. Essa diferença será
comentada mais à frente, neste artigo.
7Suzuki é um dos
principais divulgadores do Zen-budismo no Ocidente. Seus trabalhos já foram
traduzidos para quase todas as línguas ocidentais, inclusive para o português.
8O livro de Reinhard
May, Ex oriente Lux (1989), traz, pela primeira vez, uma análise sistemática
das passagens das obras de Heidegger que se referem ao pensamento oriental.
9Ou seja, ela ainda
estaria vinculada aos conceitos metafísicos da Escola de Kyoto, que fora
influenciada por Eckhart e Hegel. Principalmente no que se refere ao termo
Nada.
10 Ainda é muito cedo
para que se chegue a uma clara posição sobre a continuidade da Escola de Kyoto
até a quarta geração. De qualquer forma, Ryôsuke Ohashi e Tadaschi Ogawa são os
expoentes máximos desta possível geração.
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