domingo, 12 de maio de 2013
PROUST E A LIBERAÇÃO DO TEMPO
Proust e a filosofia
Sara Guindani*
http://www.raf.ifac.ufop.br/pdf/artefilosofia_10/Pag_35_Proust_E_A_Filosofia.pdf
Proust parece não atribuir à fi -
losofi a mais importância do que a outras disciplinas que cobre de
ridículo (a etimologia, por exemplo). Ainda pior, Proust parece desconfi
ar de um poder negativo na fi losofi a: ela pode tornar-se um álibi
para nossas paixões e ambições terrenas. Invertendo todo idealismo,
a posição de Proust a respeito da fi losofi a se aproximaria, assim, da
posição de Nietzsche, que mostrou como a fi losofi a pode ser uma
máscara para toda hipocrisia e usurpação.
Esse lado desmistifi cador é presente em toda a obra de Proust,e faz parte de uma crítica mais geral da inteligência, a qual é um dos
aspectos mais conhecidos do autor da Recherche. É normal, portanto,
que a fi losofi a, como exercício de análise, de esforço intelectual, não
seja poupada. É necessário discernir, entretanto, se para Proust a fi losofi
a toda pode ser reduzida a essa atitude intelectualista que o vemos
criticar. Qualquer que seja a resposta, convido o leitor a desconfi ar
de todo julgamento taxativo a respeito do uso da ironia proustiana.
Essa ironia, com efeito, não corresponde sempre a uma visada crítica
negativa: ela anima, antes, o blasfemador que se atém a seus ídolos.
Insultar, desvalorizar, em suma, é ainda uma maneira de lhes conferir
sentido, de lhes adorar.
Assim, lembremos a angústia de Proust, em 1908, no momento
de começar seu romance. Ele se interroga: "Será preciso fazer um
romance, um estudo fi losófi co, serei um romancista?" Consideremos
igualmente como enorme sinal de admiração pelos seus professores
fi lósofos o exemplar dado a Darlu da tradução que fez de Ruskin,
e que contém a seguinte dedicatória: "Ao senhor Darlu, à minha
primeira admiração, que nenhuma outra jamais igualou depois, a homenagem
de reconhecimento respeitoso e afeição inalterável". Homenagem
em que é preciso acreditar que seja sincera, uma vez que,
num contexto totalmente diverso, isto é, no jogo de sociedade que se
tornará depois o famoso "questionário Proust", à questão "Quais são
os heróis da sua vida cotidiana?", ele responderá com os nomes de
dois fi lósofos: Darlu e Boutroux, este último, fi lósofo e professor na
Sorbonne, de quem Bergson foi aluno.
Encontramos, assim, solto, o nome um tanto temido de Henri
Bergson, o fi lósofo a quem, durante muito tempo, a obra de Proust
foi constantemente associada. Na verdade, desde que a associação entre
o romance proustiano e o pensamento de Bergson foi feita, o
romancista não hesitou em distanciar-se dela. Por exemplo, em uma
entrevista a Le Temps, em 1913: "[...] eu não teria vergonha alguma
em dizer ‘romance bergsoniano’ se acreditasse nisso, uma vez que,
em cada época, o fato é que a literatura possui a tarefa de ligar-se – a
posteriori, naturalmente – à fi losofi a dominante. Isso, no caso, não seria
exato, pois a minha obra é dominada pela distinção entre a memória
involuntária e a memória voluntária, distinção que não apenas não
fi gura na fi losofi a de Bergson como é combatida por ela". Na verdade,
em 1913, Proust conhecia muito mal a obra de Bergson, e suas
relações com ele se deviam, sobretudo, à proximidade familiar, uma
vez que Bergson se casara com uma prima de Proust. Nessa época,
Proust apenas havia lido de maneira superfi cial o segundo capítulo
de Matéria e memória. Será somente mais tarde, cansado da associação
automática de seu nome à obra de Bergson, que Proust expandirá
sua leitura do fi lósofo. Entretanto, ele o fará sempre para marcar a
diferença entre as duas obras e os dois pensamentos. Encontramos
um testemunho desse fato na Recherche, onde uma indicação deveras
tardia (1921) precisa um ponto muito importante de divergência
entre os dois autores. Proust decidira, então, introduzir em seu romance
a aparição marcadamente irônica de um fi lósofo norueguês.Esse fi lósofo seria, segundo a crítica, o sueco Algot Ruhe, tradutor
da obra de Bergson. Aqui, como em um diálogo de Platão, Proust
usa o fi lósofo norueguês para relatar uma conversa entre Bergson e
Boutroux, tomando ainda mais distância, assim, com relação àquele
que o perseguia há anos (na verdade, parece que Proust e Bergson
tiveram uma conversa similar, a propósito de suas insônias, à ocasião
da entrega de um prêmio: vê-se que Proust fez-se substituir na fi cção
por Boutroux, isto é, por um fi lósofo, como se esse fosse um de seus
fantasmas ocultos).
Na passagem da Recherche onde Proust introduz o nome de
Bergson, o narrador se atém à convicção bergsoniana sobre a sobrevivência
da alma. A questão da imortalidade devia preocupar Proust
quando da escrita dessa passagem, em 1921. Sentido aproximar sua
própria morte, ele não se deixa entregar, no entanto, a um vago desejo.
Ele não pode aceitar uma verdade que não lhe parece fundada
na razão, nem dada em uma experiência imediata. Para Bergson, e
podemos ler a esse respeito particularmente na conferência "A alma e
o corpo", publicada em A energia espiritual, a hipótese da imortalidade
da alma resulta da observação de que possuímos também as lembranças
daquilo que não recordamos, o que supõe que a vida mental
tenha uma extensão maior que a vida cerebral: "se, como procuramos
demonstrar, a vida material transborda da vida cerebral, se o cérebro
se limita a traduzir em movimentos uma pequena parte do que se
passa na consciência, então a sobrevivência se torna [...] verossímil"4.
A resposta de Proust é inapelável: "Apesar de tudo o que se
possa dizer da sobrevivência após a destruição do cérebro, reparo que
a cada alteração do cérebro corresponde um fragmento de morte.
Todos nós possuímos as nossas lembranças, se não a faculdade de
recordá-las, diz, segundo Bergson, o grande fi lósofo norueguês... Mas
o que é uma lembrança da qual não se recorda? Porém, vamos mais
longe. Não nos recordamos das lembranças dos último trinta anos;
mas elas nos banham por inteiro; por que então parar a trinta anos,
por que não prolongar até além do nascimento essa vida anterior?
Desde o momento em que não conheço toda uma parte das lembranças
que estão por trás de mim... que não tenho a faculdade de
chamá-las a mim, quem me diz que nessa massa desconhecida de
mim, não há recordações que remontam muito além da minha vida
humana?... Mas então, que signifi ca essa imortalidade da alma, que o
fi lósofo norueguês afi rmava a realidade? A criatura que serei após a
morte não tem mais motivos de se lembrar do homem que sou desde
o nascimento, assim como este último não se recorda do que fui antes
de nascer"5.
Por outro lado, Bergson nunca reconheceu afi nidades particulares
entre a sua obra e a de Proust. Em sua correspondência, ele chega
a ser bastante duro a respeito do primo: "[...] não se sai da leitura de
Proust com essa sensação de vitalidade aumentada que ordinariamente
deixam atrás de si as grandes obras de arte. De onde vem, então, o
valor artístico daquilo que ele escreveu? Talvez do fato de que ele nos
faz tomar consciência da observação interior, e, desse modo, ela nos
engrandece, apesar de tudo (de modo incompleto, é verdade)..." – e,
para aprofundar defi nitivamente o abismo entre a obra do fi lósofo e
a do romancista: "o pensamento de Proust tem por essência virar as
costas à ‘duração’ e ao ‘élan vital’" (carta a Henri Massis).
Na verdade, depois de um primeiro momento, em que os dois
nomes foram associados, a crítica passou a sublinhar, diversamente, as
numerosas diferenças entre os dois autores.
Vejamos, de início, como, em Proust, há a presença de algo que
poderia ser defi nido como intemporal. Penso que se trata meramente
de um primeiro aspecto da Recherche, e não de sua última palavra,
como indicarei mais adiante. É verdade, no entanto, que Proust fala
com frequência das ressurreições da memória involuntária como
"um pedaço de tempo em estado puro", "um minuto liberado da
ordem do Tempo", que nos permite reencontrar a "essência eterna"
das coisas. Evidentemente, essa contemplação da eternidade, essa
dimensão liberta do tempo, não pertence absolutamente ao pensamento
bergsoniano, onde, por exemplo, em O pensamento e o movente,
pode-se ler: "Mas como [os fi lósofos idealistas] acreditaram que a
inteligência operava no tempo, concluíram a partir daí que ultrapassar
a inteligência consistia em sair do tempo. Não viram que o tempo
intelectualizado é espaço, que a inteligência trabalha sobre o fantasma
da duração, e não sobre a própria duração [...] [que] não há que sair
do tempo (já saímos dele); cabe, ao contrário, reinserir-se na duração
e recuperar a realidade na mobilidade que é a sua essência"6.
Na verdade, o sentido do intemporal proustiano é bastante controvertido,
e parece que difi cilmente seja possível interpretá-lo como
algo que transcende absolutamente o tempo. Antes, seria razoável
pensá-lo como algo que é "liberado da ordem do tempo", que quebra
a inelutável cronologia do tempo, que torna possível, por um
instante, a ilusão da reversibilidade do tempo, mas que não é, no entanto,
fora do tempo, e sim em sua imanência. Dito assim, é verdade
que Proust joga muito com essas palavras de origem idealista, e que
numerosos críticos fi zeram disso a totalidade da concepção proustiana
do tempo.
Uma outra divergência evidente com Bergson é a tendência, e
mesmo a vontade proustiana de espacialização do tempo: para Proust,
o tempo é a quarta dimensão do espaço, que normalmente permanece
invisível e que cabe ao escritor tornar visível (a cada vez, por meio
de uma ressurreição da memória involuntária, é um lugar que ressurge:
Combray, Veneza, os Champs Élysées de sua infância). Esse tempo
que se trata de tornar visível é, evidentemente, o tempo espacializado
que Bergson rejeita como sendo a deformação que nossa inteligência
prática opera sobre o real.
Enfi m, um outro ponto fundamental de diferença entre os dois
autores concerne ao papel do esquecimento. Sabemos que, para Bergson,
a totalidade de nosso passado é conservada no subconsciente:
"creio que nossa vida passada está lá, conservada nos seus menores
detalhes, que nós não esquecemos nada, que tudo que alguma vez
percebemos, pensamos, quisemos, desde o primeiro despertar de nossa
consciência, persiste indefi nidamente". Essa memória integral é
apenas virtual, e suas lembranças, mesmo se jamais aparecerem em
nossa consciência, estarão sempre à espera de uma situação presente
que as atualize. A posição de Proust a propósito de nossas lembranças
não poderia ser mais diferente: "Porque a memória, em vez de um
exemplar em dobro, sempre presente a nossos olhos, dos diversos
fatos da nossa vida, é antes um Nada de onde, por instantes, uma
similitude atual nos permite extrair, ressuscitadas, lembranças mortas;
mas existem ainda mil pequenos fatos que não caíram nessa virtualidade
da memória e que permanecerão para sempre inverifi cáveis
para nós"7.
Fica bem claro, aqui, que, em lugar de um passado contínuo, temos
apenas um passado descontínuo e fragmentário. Para Proust, não
é, portanto, todo o passado que se conserva, mas o que é conservado
o é integralmente, com toda sua cor e seu calor afetivo.
O esquecimento, em Proust, tem um papel ativo e essencial
na memória profunda: ele impede a interpenetração dos estados de
consciência, preserva os momentos do passado em "vasos fechados".
Na verdade, é somente o esquecimento que torna possível as ressurreições
da memória involuntária. Com efeito, escreve Proust: "Caso
a recordação, graças ao esquecimento, não tenha podido contrair nenhum
laço, estabelecer nenhum vínculo entre si mesma e o momento
presente, se fi cou no seu lugar, em seu tempo, se manteve suas
distâncias [...] ela nos faz de súbito respirar um ar mais novo, precisamente
porque é um ar que respiramos outrora"8.
Pudemos indicar, aqui, tão somente, alguns pontos de divergência
entre os dois autores, mas se trata menos de pôr um contra
o outro, coisa que não teria sentido algum, do que mostrar que eles
se puseram a construir dois universos de discurso muito diferentes:
se o fi lósofo deve manipular cuidadosamente as antinomias de sua
ciência, o escritor pode desfrutar de uma liberdade maior, que não se
preocupa com contradições – aparentes ou não – que sua obra possa
produzir ao fazer-se.
O parentesco entre Proust e Bergson, segundo as palavras dos
próprios autores, deve, assim, limitar-se ao aspecto familiar. As preocupações
que animam os dois autores são, todavia, muito próximas,
malgrado suas respostas divergentes, e os situam em uma constelação
de sentido e de questões que é a do seu tempo.
Retornemos, assim, à dúvida que atormentava o jovem Proust:
"é preciso fazer um romance, um estudo fi losófi co, serei um romancista?"
A dúvida que a pequena anotação de Proust nos confessa (e
que nos diz, grosso modo: "sou um romancista ou um fi lósofo?") nos
faz compreender que os temas que preocupavam Proust não poderiam
ser mais próximos da fi losofi a: o enfoque da narração sobre as
infl exões carnais e mentais de nossa relação com o tempo, as refl exões
sobre o espaço, os paradoxos da memória e do esquecimento, só
para citar alguns. E, no entanto, a resposta dada, de fato, a essa dúvida
("sim, sou romancista") nos deve levar a considerar e a respeitar o
que é próprio dessa escoescolha e que torna a obra proustiana irredutível
a um estudo fi losófi co.
***
A fi losofi a de Proust, e aqui passamos à segunda acepção que demos
a ela, poderia, assim, ser interpretada como uma fi losofi a que a obra
de Proust encerra, ainda que seja pelo fato de tratar, como já o assinalamos,
de temas eminentemente fi losófi cos. Com efeito, Proust não
cessa, a partir do Pós-Guerra, de ser retomado e de obstinar os fi lósofos
segundo modalidades diversas. Por que os pensadores da segunda
metade do século XX tomaram, quase todos, como modelo, positivo
ou negativo, pouco importa, o romance de Proust, e não os de outro
autor? Um primeiro aspecto da resposta a essa questão poderia
dever-se ao que acabamos de abordar: a fi losofi a não era estranha a
Proust, e sua formação fi losófi ca seguramente haverá passado para sua
obra. Mas isso não basta. Vimos que a formação fi losófi ca de Proust
foi conduzida por professores de tendência idealista, inclinados a sobrevalorizar
o espírito em detrimento do corpo e da sensação. Não
é esse o aspecto do romance de Proust, entretanto, que interessou os
fi lósofos do Pós-Guerra. Qual será, portanto, a razão desse interesse
difuso da fi losofi a do Pós-Guerra por Proust?
Merleau-Ponty, nas anotações de seus cursos no Collège de
France, de 1958-1959 e de 1960-1961, afi rmou que estamos em um
estado de não fi losofi a. O que queria dizer com isto? Ele falava da
decadência da fi losofi a "expressa, ofi cial", isto é, da decadência de
uma certa maneira de fi losofar (a partir de noções como substância,
sujeito/objeto, causalidade). Segundo Merleau-Ponty, "depois de 100
anos, há um pensamento fundamental que não é sempre ‘fi losofi a’
explícita". E esse pensamento fundamental abarca todas as investigações
feitas pela arte. A fi losofi a ofi cial está atrasada em relação a
todas essas pesquisas. A fi losofi a, segundo Merleau-Ponty, encontrará
ajuda na poesia, na arte, na psicanálise: em uma relação muito mais
estreita com esses domínios, ela renascerá e reinterpretará seu próprio
passado metafísico. E é justamente em Proust que Merlau-Ponty vê a
ultrapassagem efetiva das antinomias daquilo que ele chama fi losofi a
"ofi cial". Em Proust, o modo de signifi cação torna-se indireto: "euoutros-
mundo deliberadamente confundidos, implicados um no outro,
expressos um pelo outro". O apelo a escrever lançado pelas coisas.
O que deve ser expresso, contudo, é o entrelaçamento dos opostos, e
isto não é dito positivamente, mas é algo que está entre as descrições
(o próprio Proust se engana quando fala de fi losofi a e crê exprimir
seu pensamento como uma fi losofi a relativista-cética). "Entre as mais
célebres aquisições de Proust está a coesão do tempo e do espaço tal
qual nós a vivemos".
Proust foi um autor muito amado pela fenomenologia. Houve
mesmo quem tentasse dele fazer um fenomenólogo ante litteram (cf.
Milan Kundera, "A teoria do romance"). Com efeito, Proust parece
antecipar, em parte, as pesquisas fenomenológicas. Ele é um dos
primeiros escritores a ter centrado sua obra sobre o sensível e a ter
questionado as relações entre o sensível e nossa consciência. Ele recusou
uma hierarquização rígida entre nossos diferentes estados de
consciência, uma vez que o fantasmático – aí incluídos a linguagem
e o sonho – e a sensação fi siológica tornam-se para ele duas partes
indissociáveis da relação ao mundo (lembrem-se da réplica à afi rmação
bergsoniana sobre o sonho, que pretendia que "a percepção
fabrica o sonho": para Proust, ao contrário, é o sonho que fabrica a
percepção).
Não se trata, no entanto, de transformar Proust em um precursor
ex nihilo. Proust encontra-se no mesmo movimento cultural e
de pensamento que nutriu a fenomenologia. Ele nasceu no fi nal do
século XIX, um período romântico, posteriormente impressionista,
atento à sensação. Sabemos, aliás, que a literatura já havia inaugurado,
ao longo do século XIX, esse tipo de cumplicidade ontológica entre
um sujeito imanente e um real que se deixa cada vez menos reduzir
a um objeto. Com Nerval, Baudelaire e Rimbaud, a questão da sensação
relacionada ao imaginário torna-se central. A fenomenologia
francesa toma seu impulso tanto do tecido literário que a precedeu
quanto da tradição fi losófi ca. A proximidade de relações entre Proust
e a fenomenologia teria de ser investigada, portanto, não somente
nas "dívidas" que Proust tem para com a fi losofi a, mas também nas
"dívidas" que a fi losofi a tem para com a literatura e a poesia.
De fato, os pensadores da segunda metade do século XX voltam-
se todos à questão da tensão frutuosa entre fi losofi a e literatura.
As modalidades dessa relação, contudo, foram muito heterogêneas.
A primeira atitude, que toma Proust como um companheiro
de rota, pode ser representada por Merleau-Ponty. A prosa e o pensamento
de Proust inervam o de Merlau-Ponty. Se o fi lósofo nunca
dedicou um texto inteiro a Proust, talvez seja por isso mesmo: seu
pensamento, sua escrita e a do escritor são de tal modo entrelaçadas,
de tal modo emaranhadas, que chegamos a ter difi culdade em distinguir
o que é do escritor e o que é do fi lósofo. Acontece de fato, às
vezes, que ao longo de um texto que nada tem a ver com a Recherche,
o fi lósofo retome suas formulações, sem mesmo indicá-lo. Ele escreve
em O olho e o espírito:
Visível e móvel, meu corpo está no número das coisas,
é uma delas; é captado na contextura do mundo, e sua
coesão é a de uma coisa. Mas já que vê e se move, ele
mantém as coisas em círculo à volta de si; elas são um anexo
ou um prolongamento dele mesmo, estão incrustadas
na sua carne, fazem parte de sua defi nição plena, e o
mundo é feito do próprio estofo do corpo9.
Aqui, Merleau-Ponty remete à frase de Proust: "um homem
que dorme toma em redor de si o fi o das horas, a ordem dos anos e
dos mundos".
Sabemos também que a metáfora, fi gura essencial na obra proustiana,
se tornará essencial também para o último Merleau-Ponty. Em
Proust, a metáfora está no começo mesmo da verdade: "a verdade
só começará no momento em que o escritor tomar dois objetos diversos,
estabelecer a relação entre eles, análoga no mundo da arte à
relação única da lei de causa e efeito no mundo da ciência, e encerrá
los nos anéis necessários de um estilo harmonioso. Ou quando, assim
como a vida, aproximar uma qualidade própria de duas sensações,
extraindo a essência comum a elas ao reuni-las, a fi m de libertá-las
das contingências do tempo, numa metáfora" 10.
Assim, para Merleau-Ponty, ao menos em suas últimas obras, O
visível e o invisível e O olho e o espírito, a metáfora é completamente
incluída na prática e na fatura fi losófi ca, deixando de ser um ornamento
ou a cereja do bolo fenomenológico, para vir a ser o que fi a e
exprime a trama secreta do real.
Tradução de Douglas Garcia e Anna Luiza Coli
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