Na primeira metade do século XX, um único homem, absolutamente sozinho, vai reduzir toda essa parafernália teórica e clínica sobre a loucura á algo menos que pó, e restituir á ela seu caráter de condição divina.
ANTONIN ARTAUD
Eu assisti a uma conferência de Artaud em 1947, um ano antes da morte de Artaud em Rodez em 1948. Artaud foi descrito por um pequeno círculo de admiradores parisienses, alguns em posições de destaque no mundo das artes, como um gênio que tinha ampliado a visão de Rimbaud do poeta vidente. Seu nome foi ate pronunciado por um admirador, conhecido como ‘’O ALQUIMISTA’’, como Arthur Rimbaud sem o HUR de Arthur e sem o RIMB de Rimbaud. E mais tarde este mesmo homem declarou que Artaud era, literalmente, a reencarnação de Rimbaud e seu sucessor espiritual. Entre os admiradores de Artaud estavam André Gide y Jean Louis Barrault. Gide afirmou que Artaud era um existencialista do desespero, e Barrault que foi influenciado por Artaud no teatro. O caso Artaud é um caso sutil, ambíguo, porque ele foi muito admirado por quase todas as pessoas de renome nas artes, mas foi banido e condenado pelas autoridades legais. Para mim, seu caso e seu destino foram alvo de uma considerável confusão, já que aceitando suas teorias colocamos o próprio corpo na frigideira social, e rejeitando-as atravessamos a vida de olhos vendados. Ele foi certamente o maior crítico da hipocrisia social que já li e por isso se tornou conhecido como um poeta ‘’MALDITO’’. Foi um drogado, um lunático, e levou tão longe a singularidade de suas idéias que se revoltou até mesmo contra o surrealismo, que era considerado uma revolta contra a sociedade derivada de uma revolta contra o rebelde ‘’Anatole France., que era lúcido demais, racional demais, para os primeiros dadaístas. E onde acabou toda essa revolta contra a revolta, senão numa das numerosas casas de loucos que estão sendo continuamente ocnstruídas neste país e noutros em nome desta causa mística, ‘’A SAUDE MENTAL’’.
O livro de Artaud que mais me impressionou foi o seu VAN GOGH, escrito em 1948, no qual ele condena todas as formas de psiquiatria e com isso toda autoridade organizada, uma vez que todos os países praticam a psiquiatria, inclusive o país das ‘’maravilhas socialistas’’. Neste livro, ele afirma que todo louco, todo indivíduo marcado e estigmatizado e, acredite, todos os loucos são realmente marcados e estigmatizados, É UMA PESSOA DE LUCIDEZ SUPERIOR CUJAS IDÉIAS A SOCIEDADE CONSIDERA INCOMODAS PARA ELA. Este livro me impressionou quando o li, em 1948, o ano da vitória de Truman sobre Dewey. Nessa época, eu ainda estava na universidade e os estudantes intelectuais, ou seja, aqueles que não eram a favor do basquetebol e que, de vez em quando, liam livros que não eram de leitura obrigatória, estavam em sua maioria interessados em Marxismo e folk-songs ou, os mais avançados, em Freud e Wilhelm Reich. E eu estava interessado em Artaud que era para mim o símbolo da verdadeira revolta que faz jus ao nome.
Para ilustrar o estado de espírito do corpo universitário naquela época, basta dizer que eu entrava numa sala de aula com um exemplar de Baudelaire e era imediatamente agarrado por uma estudante de literatura que parecia achar que eu era realmente Baudelaire em pessoa. Pouco depois disso me colocaram numa fábrica de loucos onde levei choques até renunciar a todas as minhas leituras, etc,etc. Mais tarde, os livros que permaneceram comigo foram roubados por diversos desordeiros locais e logo fui jogado em outra casa de loucos mais selvagem ainda.
O CASO DO CHAMADO LOUCO REVELADO POR ARTAUD E POR MAIS NENHUM OUTRO ESCRITOR É, NA VERDADE, O CASO DE SÓCRATES, QUE FOI CONDENADO Á MORTE POR SER AQUILO QUE NA SUA ÉPOCA ERA CONSIDERADO ''BRILHANTE'', QUER DIZER, NÃO-ESTÚPIDO. EU AFIRMO QUE NÓS VIVEMOS NUMA GERAÇÃO DE CHARLATANISMO EM TODOS OS NÍVEIS, PROPAGANDA ENGANOSA E CORRUPÇÃO GENERALIZADA, E QUE NÃO HÁ LUGAR PARA UM HOMEM HONESTO EM NENHUM DOS LADOS DA CORTINA DE FERRO.
Carl Solomon, ''De repente, acidentes''.
Post Scriptum
VAN GOGH, por Antonin Artaud
Os corvos pintados por ele, dois dias antes da sua morte, não lhe
abriram as portas de certa glória póstuma, como tampouco o fizeram
suas demais telas, mas abrem para a pintura pintada, ou melhor, para a
natureza não-pintada, a porta oculta de um mais-além possível, de uma
permanente realidade possível através da porta aberta por van Gogh
para um enigmático e sinistro mais-além.
Não é comum ver um homem, com o balaço que o matou já no seu ventre,
povoar uma tela de corvos negros sobre uma espécie de campo talvez
lívido, em
todo caso vazio, no qual a cor de borra de vinho da terra se confronta
violentamente com o amarelo sujo do trigo.
Mas nenhum outro pintor além de van Gogh teria achado, como ele o fez
para pintar seus corvos, esse negro de trufa, esse negro de ?banquete
faustoso? e, ao mesmo, tempo, como que excremencial das asas dos
corvos surpreendidos pelo resplendor declinante do crepúsculo.
E do que se queixa a terra sob as asas dos faustosos corvos, sem
dúvida faustosos só para van Gogh, suntuosos augúrios de um mal que já
não o afetará?
Pois ninguém, até então, havia conseguido converter a terra nesse
trapo sujo empapado de vinho e sangue.
O céu do quadro é muito baixo, aplastrado,
violáceo como as margens do raio.
A insólita franja tenebrosa do vazio que se ergue atrás do relâmpago.
Van Gogh soltou seus corvos, como se fossem os micróbios negros do seu
baço de suicida, a poucos centímetros do alto e como se viessem por
baíxo da tela,
seguindo o negro talho da linha onde o bater da sua soberba plumagem
acrescenta ao turbilhão da tormenta terrestre as ameaças de uma
sufocação vinda do alto.
E contudo o quadro é soberbo.
Soberbo, suntuoso e sereno quadro.
Digno acompanhamento para a morte daquele que em vida fez girarem
tantos sóis ébrios sobre tantos montões de feno rebeldes e que,
desesperado, com um balaço no ventre, não poderia deixar de inundar
com sangue e vinho uma paisagem, empapando a terra com uma última
emulsão, radiante e tenebrosa, com sabor de vinho azedo e vinagre
talhado.
Pois esse é o tom da última tela pintada por van Gogh, que nunca
ultrapassou os limites da pintura e evoca os acordes bárbaros e
abruptos do mais patético, passional e apaixonado drama isabelino.
É isso o que mais me surpreende em van Gogh, o mais pintor de todos os
pintores e aquele que, sem afastar-se do que chamamos de pintura, sem
sair dos limites do tubo, do pincel, do enquadramento do tema e da
tela, sem recorrer à anedota, ao relato, ao drama, à profusa ação de
imagens, à beleza intrínseca do assunto, conseguiu imbuir a natureza e
os objetos de tamanha paixão que qualquer conto fabuloso de Edgar Poe,
Herman Melville, Nathanael Haworthone, Gérard de Nerval, Achim von
Arnim ou Hoffmann em nada superam, no plano psicológico e dramático,
suas modestas telas,
telas que, por outro lado, são quase todas de reduzidas dimensões,
como se respondessem a um propósito deliberado.
Uma lamparina sobre uma cadeira, um sofá de palha verde trançada,
um livro no sofá
e está revelado o drama.
Quem vai entrar?
Será Gaughin ou algum outro fantasma?
A lamparina acesa sobre a cadeira de palha verde indica, ao que
parece, a linha de demarcação luminosa que separa as duas
individualidades antagônicas de van Gogh e Gaughin.
Relatado, o motivo estético da sua divergência talvez não ofereça um
grande interesse, mas serve para indicar a profunda divisão humana
entre os temperamentos de van Gogh e Gauguin.
Penso que Gauguin achava que o artista deveria buscar o símbolo, o
mito, ampliar as coisas da vida até o mito,
enquanto van Gogh achava que é preciso deduzir o mito das coisas mais
modestas da vida.
De minha parte, penso que tinha absoluta razão.
Pois a realidade é tremendamente superior a qualquer história, a
qualquer fábula, a qualquer divindade, a qualquer super-realidade.
Basta ter o gênio para saber interpretá-la.
O que nenhum pintor havia feito antes do pobre van Gogh,
o que nenhum pintor voltará a fazer depois dele,
pois acredito que desta vez,
hoje mesmo,
agora,
neste mês de fevereiro de 1947,
é a própria realidade,
o mito da própria realidade, da própria realidade mítica, que
está se encamando.
Assim, depois de van Gogh ninguém mais soube mover o grande címbalo, o
acorde sobre-humano, perpetuamente sobre-humano pelo qual ressoam os
objetos da vida real
quando se sabe aguçar suficientemente os ouvidos para escutar as ondas
da sua maré crescente.
Assim ressoa a luz da lamparina, a luz da lamparina acesa sobre a
cadeira de palha verde ressoa como a respiração de um corpo amante na
presença de um corpo de enfermo adormecido.
Soa como uma estranha critica, um julgamento profundo e surpreendente
cuja sentença van Gogh pode nos deixar adivinhar mais tarde, bem mais
tarde, no dia em que a luz violeta da cadeira de palha tiver acabado
de submergir o quadro.
E não se pode deixar de reparar nessa incisão de luz arroteada que
morde as barras da grande cadeira turva, do velho sofá cambaio de
palha verde, embora não seja percebida à primeira vista.
Pois o foco de luz está dirigido para outro lugar e sua fonte é
estranhamente obscura, como um segredo do qual só van Gogh tivesse
conservado a chave.
E se van Gogh não tivesse morrido com trinta e sete anos? Não chamo a
Grande Carpideira para me dizer com quantas supremas obras-primas a
pintura teria se enriquecido,
pois não consigo acreditar que depois dos Corvos van Gogh
viesse a pintar mais alguma coisa.
Penso que ele morreu com trinta e sete anos porque já havia,
desgraçadamente, chegado ao término da sua fúnebre e revoltante
história de indivíduo sufocado por um espírito maléfico.
Pois não foi por sua própria causa, por causa da doença da sua própria
loucura, que van Gogh abandonou a vida.
Foi sob a pressão do espírito maléfico que, dois dias antes da sua
morre, passou a chamar-se doutor Gachet, psiquiatra improvisado e
causa direta, eficiente e suficiente da sua morte.
Quando releio as canas de van Gogh para seu irmão, convenço-me
firmemente que o doutor Gachet, ?psiquiatra?, na verdade detestava van
Gogh, pintor; e que o detestava como pintor e acima de tudo como
gênio.
É quase impossível sr ao mesmo tempo médico e uma pessoa honesta, mas
é escandalosamente impossível ser psiquiatra sem estar ao mesmo tempo
marcado pela mais indiscutível loucura: a de ser incapaz de resistir
ao velho reflexo atávico da multidão que converte qualquer homem da
ciência aprisionado na turba numa espécie de inimigo nato e inato de
todo gênio.
A medicina nasceu do mal, se é que não nasceu da doença e não
provocou, pelo contrário, a doença para assim ter uma razão de ser;
mas a psiquiatria nasceu da multidão vulgar de pessoas que quiseram
preservar o mal como fonte da doença e que assim produziram do seu
próprio nada uma espécie de Guarda Suíça para extirpar na raiz o
espírito de rebelião reivindicatória que está na origem do gênio.
Em todo demente há um gênio incompreendido cujas idéias, brilhando na
sua cabeça, apavoram as pessoas e que só no delírio consegue encontrar
uma saída para o cerceamento que a vida lhe preparou.
O doutor Gachet não chegou a dizer a van Gogh que estava ali para
endireitar sua pintura (como ouvi o doutor Gaston Ferdiére, médico-
chefe do manicômio de Rodez, dizer que estava ali para endireitar
minha poesia), porém mandava-o pintar a natureza, sepultar-se na
paisagem pra evitar a tortura de pensar.
No entanto, assim que van Gogh voltava as costas, o doutor Gachet lhe
fechava o interruptor do pensamento.
Como quem não quer nada, mas com esse franzir a cara aparentemente
inocente e depreciativo no qual todo o inconsciente burguês da terra
inscreveu a antiga força mágica de um pensamento cem vezes reprimido.
Fazendo assim, o doutor Gachet não só proibia os malefícios do
problema,
mas também a inseminação sulfurosa,
o tormento da punção que gira na garganta da única passagem
com a qual van Gogh
tetanizado,
van Gogh suspenso sobre o abismo da respiração,
pintava.
Pois van Gogh era uma sensibilidade terrível.
Para convencer-se basta dar uma olhada no seu rosto, sempre ofegante
e, sob alguns aspectos, também um enfeitiçador rosto de açougueiro.
Como o de um antigo açougueiro, agora tranqüilo e aposentado dos
negócios, este rosto em sombras me persegue.
Van Gogh se auto-retratou em várias telas que, por melhor iluminadas
que estivessem, sempre me deram a penosa impressão de que havia uma
mentira ao redor da luz, que haviam retirado de van Gogh uma luz
indispensável para abrir e franquear seu caminho dentro de si.
E esse caminho, certamente, não era o doutor Gachet o mais capacitado
para indicá-lo.
Pois, como já disse, em todo psiquiatra vivente há um sórdido e
repugnante atavismo que lhe faz ver em todo artista e todo gênio à sua
frente um inimigo.
E sei que o doutor Gachet deixou para a história, com relação a van
Gogh, atendido por ele e que terminou por suicidar-se na sua casa, a
impressão de ter sido seu último amigo na terra, uma espécie de
consolador providencial.
No entanto, estou cada vez mais convencido que é ao doutor Gachet de
Auvers-sur-Oise que van Gogh ficou devendo aquele dia, o dia em que se
suicidou em Auvers-sur-Oise;
ficou devendo, repito, ter deixado a vida,
pois van Gogh era uma dessas naturezas dotadas de lucidez superior, o
que lhes permite, em qualquer circunstância, ver mais além, infinita e
perigosamente mais além que o real imediato e aparente dos fatos.
Quero dizer mais além da consciência que a consciência habitualmente
guarda dos fatos.
No fundo desses seus olhos sem pestanas de açougueiro, van Gogh
dedicava-se incansavelmente a uma dessas operações de alquimia sombria
que tomam a natureza como objeto e o corpo humano como vasilhame ou
crisol.
E sei que o doutor Gachet sempre achou que isso cansava van Gogh.
O que no doutor não era o resultado de uma simples preocupação
médica,
mas a manifestação de uma inveja tão consciente quanto inconfessada.
Pois van Gogh tinha chegado a esse estágio de iluminismo no qual o
pensamento em desordem reflui diante das descargas invasoras da
matéria
e no qual pensar já não é consumir-se
e nem sequer é
e no qual nada mais resta senão juntar pedaços do corpo, ou seja
ACUMULAR CORPOS
Já não é mais o mundo do astral, é o mundo da criação direta que é
recuperado desse modo, mais além da consciência e do cérebro.
E nunca vi um corpo sem cérebro fatigar-se por causa de telas
inertes.
Suportes do inerte - essas pontes, esses girassóis, esses teixos,
esses olivais, essas pilhas de feno. já não se movem.
Estão congelados.
Porém, quem poderia sonhá-los mais duros sob o traço seco que põe a
descoberto seu impenetrável estremecimento?
Não, doutor Gachet, uma tela nunca fatigou ninguém. São as forças de
um louco em repouso, não transtornado.
Eu também estou como o pobre van Gogh: parei de pensar, mas a cada dia
dirijo mais de perto formidáveis ebulições internas e gostaria de ver
algum terapeuta qualquer vir repreender-me porque me fatigo.
.....................................................................................................................
No momento de escrever essas linhas vejo o rosto vermelho
ensangüentado do pintor vir na minha direção, numa muralha de
girassóis eviscerados,
numa formidável combustão de fagulhas de jacinto opaco e relvas de
lápis-lázuli.
Tudo isso no meio de qualquer coisa como um bombardeio meteórico de
átomos em que cada partícula se destaca,
prova que van Gogh concebeu suas telas como pintor, apenas
e unicamente como pintor, mas um pintor que era
exatamente por isso
um formidável músico.
Organista de uma tempestade suspensa que ri na límpida natureza, uma
natureza pacificada entre duas tempestades ainda que, como o próprio
van Gogh, mostre claramente o que está para acontecer.
Depois de termos visto isso, podemos dar as costas a qualquer tela
pintada que já não terá mais o que nos dizer. A tempestuosa luz das
telas de van Gogh começa seu sombrio recitativo no momento exato em
que deixamos de contemplá-la.
Exclusivamente pintor, van Gogh, e nada mais,
nada de filosofia, nada de mística, nada de rito, nada de psicurgia
nem de liturgia,
nada de história, nada de literatura nem de poesia,
esses girassóis de ouro bronzeado são pintados; estão pintados como
girassóis e nada mais, mas para entender agora um girassol natural, é
obrigatório passar por van Gogh, assim como para entender uma
tempestade natural,
um céu tempestuoso,
uma planície da natureza,
de agora em diante é impossível não voltar a van Gogh.
Uma tempestade como essa caía sobre o Egito ou sobre as planícies da
Judéia semita;
talvez houvesse trevas semelhantes na Caldéia, Mongólia ou nas
montanhas do Tibet, as quais, pelo que sei, continuam no mesmo lugar.
E, no entanto, quando contemplo essa planície de trigo ou pedra,
branca como um ossário enterrado, sobre a qual pesa aquele velho céu
violáceo,não consigo mais acreditar nas rnontanhas do Tibet.
Pintor, não mais que pintor, van Gogh adotou meios de pintura pura e
nunca os degradou,
quero dizer que, para pintar, limitou-se a usar os recursos que a
pintura lhe oferecia.
Um céu tormentoso,
uma planície branca como cal,
telas, pincéis, seus cabelos ruivos, tubos, sua mão amarela, seu
cavalete,
ainda que todos os lamas do Tibet sacudam sob suas roupas o apocalipse
que prepararam,
van Gogh nos terá feito sentir antecipadamente o cheiro do seu
peróxido de nitrogênio numa tela que contém uma dose suficiente de
catástrofe para obrigar-nos a nos orientar.
Um dia ele decidiu não degradar o tema;
mas, quando se vê um van Gogh, já não se pode acreditar que haja algo
menos degradável que o tema do quadro.
Na mão de van Gogh, o tema de uma lamparina acesa num sofá de palha
com uma armação violácea diz muito mais que toda a série das tragédias
gregas ou dos dramas de Cyril Turner, de Webster ou de Ford que, além
disso, até hoje não foram encenados.
Sem querer fazer literatura, é verdade que vi o rosto de van Gogh,
vermelho de sangue na explosão das suas paisagens, vir a mim,
kohan
taver
tensur
purtan
num incêndio,
num bombardeio,
numa explosão
para vingar a pedra de moinho que o pobre van Gogh, o louco, teve que
carregar durante toda sua vida.
O fardo de pintar sem saber por quê ou para quê.
Pois não é para este mundo,
nunca é para esta terra onde todos, desde sempre, trabalhamos,
lutamos,
uivando de horror, de fome, miséria, ódio, escândalo e nojo e onde
fomos todos envenenados, embora com tudo isso tenhamos sido
enfeitiçados
e finalmente nos suicidamos
como se não fôssemos todos, como o pobre van Gogh, suicidados pela
sociedade!
Post Scriptum
O PESA NERVOS (Artaud)
O difícil é encontrar de fato o seu lugar e restabelecer a comunicação consigo mesmo. O
todo está em certa floculação das coisas, no agrupamento de toda essa pedraria mental em
torno de um ponto que falta justamente encontrar.
E eu, eis o que penso do pensamento:
A INSPIRAÇÃO CERTAMENTE EXISTE.
E há um ponto fosforescente onde toda a realidade se reencontra, porém mudada,
metamorfoseada — e pelo quê? — um ponto de mágica utilização das coisas. E eu creio
nos aerólitos mentais, em cosmogonias individuais.
Toda a escritura é uma porcaria.
As pessoas que saem do vago para tentar precisar seja o que for do que se passa em seu
pensamento são porcos.
Todo o mundo literário é porco, e especialmente o desse tempo.
Todos aqueles que têm pontos de referência no espírito, quero dizer, de um certo lado da
cabeça, em bem localizados embasamentos de seus cérebros, todos aqueles que são mestres
em sua língua, todos aqueles para quem as palavras tem um sentido, todos aqueles para
quem existem altitudes na alma, e correntes de pensamento, aqueles que são o espírito da
época, e que nomearam essas correntes de pensamento, eu penso em suas tarefas precisas, e
nesse rangido de autômato que espalha aos quatro ventos seu espírito, — são porcos.
Aqueles para quem certas palavras têm sentido, e certas maneiras de ser, aqueles que
mantêm tão bem os modes afetados, aqueles para quem os sentimentos têm classes e que
discutem sobre um grau qualquer de suas hilariantes classificações, aqueles que crêem
ainda em "termos", aqueles que remoem ideologias que ganham espaço na época, aqueles
cujas mulheres falam tão bem e também e que falam das correntes da época, aqueles que
crêem ainda numa orientação do espírito, aqueles que seguem caminhos, que agitam
nomes, que fazem bradar as páginas dos livros — são os piores porcos.
Você é bem gratuito, moço!
Não, eu penso em críticos barbudos.
Eu já lhes disse: nada de obras, nada de língua, nada de palavra, nada de espírito, nada.]
Nada, exceto um belo Pesa-nervos.
Uma espécie de estação incompreensível e bem no meio de tudo no espírito.
E não esperem que eu lhes nomeie esse tudo, que eu lhes diga em quantas partes ele se
divide, que eu lhes diga seu peso, que eu ande, que eu me ponha a discutir sobre esse tudo,
e que, discutindo, eu me perca e me ponha assim, sem perceber, a PENSAR — e que ele se
ilumine, que ele viva, que ele se enfeite de uma multidão de palavras, todas bem cobertas
de sentido, todas diversas, e capazes de expor muito bem todas as atitudes, todas as nuanças
de um pensamento muito sensível e penetrante.
Ah, esses estados que nunca são nomeados, essas situações eminentes da alma, ah, esses
intervalos de espírito, ah, esses minúsculos malogros que são o pão de cada dia de minhas
horas, ah, esse povo formigante de dados — são sempre as mesmas palavras que me
servem e na verdade eu não pareço mexer muito em meu pensamento, mas eu mexo nele
muito mais do que vocês na realidade, barbas de asnos, porcos pertinentes, mestres do falso
verbo, arranjadores de retratos, folhetinistas, rasteiros, ervateiros, entomologistas, praga de
minha língua.
Eu lhes disse que não tenho mais minha língua, mas isto não é razão para que vocês
persistam, para que vocês se obstinem na língua.
Vamos, eu serei compreendido dentro de dez anos pelas pessoas que farão o que vocês
fazem hoje. Então meus gêiseres serão conhecidos, meus gelos serão vistos, o modo de
desnaturar meus venenos estará aprendido, meus jogos d’alma estarão descobertos. Então
meus cabelos estarão sepultos na cal, todas minhas veias mentais, então se perceberá meu
bestiário e minha mística terá se tornado um chapéu. Então ver-se-á fumegar as junturas das
pedras, e arborescentes buquês de olhos mentais se cristalizarão em glossários, então verse-
ão cair aerólitos de pedra, então ver-se-ão cordas, então se compreenderá a geometria
sem espaços, e se aprenderá o que é a configuração do espírito, e se compreenderá como eu
perdi o espírito.
Então se compreenderá por que meu espírito não está aí, então ver-se-ão todas as línguas
estancar, todos os espíritos secar, todas as línguas encorrear, as figuras humanas se
achatarão, se desinflarão, como que aspiradas por ventosas secantes, e essa lubrificante
membrana continuará a flutuar no ar, esta membrana lubrificante e cáustica, esta membrana
de duas espessuras, de múltiplos graus, de um infinito de lagartos, esta melancólica e vítrea
membrana, mas tão sensível, tão pertinente também, tão capaz de se multiplicar, de se
desdobrar, de se voltar com seu espelhamento de lagartos, de sentidos, de estupefacientes,
de irrigações penetrantes e virosas, então tudo isto será considerado certo, eu não terei mais
necessidade de falar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário